CARTA DE BRAGA – NÃO PERCAM O TRANSPORTE! – por ANTÓNIO OLIVEIRA

 

 

Final de ano costuma ser tempo de balanços, os relatórios sinistros de faltas e existências ou, para usar um termo mais corriqueiro, de comparar o deve e o haver, um vício que estes tempos sacralizaram, onde estão incluídos tanto os cêntimos (isto falando de dinheiros) como os capitais (isto falando de pecados)!

De uma maneira ou de outra, está em jogo quase sempre, a noção de lucro, quer as de coisas a abater sem prejuízo, ou das coisas a abater aos prejuízos, aquando da vinda da ATA(*) ou da chegada a alhures, depois da derradeira partida.

Há que fazer ou prestar contas desta caminhada, por haver sempre um contabile, um contador dos números botados nos balanços, como fomos adestrados desde pequeninos, voz a condizer com o ar grave com que nos ensinavam estas coisas.

Também me lembro que no meu tempo (odeio esta expressão!), andar nos estudos significava aprender um ofício para ocupar um lugar no comércio ou na indústria com escolas a condizer até no nome, ou ir para o liceu estudar humanidades, a melhor via para aprender a governar, a ferramenta ideal para vir a ser um doutor e seguir tal via.

Se pensarmos bem, a desigualdade onde a maioria de nós foi criada e instruída, converteu-se num dos maiores problemas das sociedades actuais e não me parece ver nas figuras públicas do universo onde gravitamos, uma preocupação sincera para ultrapassar este obstáculo.

Pelo contrário, os que falam num sistema de educação preparado para todos e numa real igualdade de oportunidades, onde não haja o lamentável (para não dizer outra coisa!) hábito de compra e venda de favores, são considerados ingénuos, líricos e até chamados intelectuais, um palavrão que, nos últimos tempos, foi relegado para a prateleira das antiguidades e dos anacronismos.

Ocorreu-me tudo isto quando li um parágrafo da novela que um amigo a está a tentar e aqui deixo:

Dois dias antes de me meter no comboio para vir, entrei numa catedral. Não havia muita gente mas o cheiro a incenso quase me deitou abaixo. Ao chegar junto do altar principal, entrou um padre, mitra e paramentado, acompanhado de meia dúzia de monjas. Virei-me para um altar lateral e estavam a entrar umas dezenas de turistas, eram turistas com certeza pela quantidade de flashes disparados de imediato em fotos de todas as qualidades, em grupo ou individuais. Ainda não havia a moda da selfie mas a diferença era nenhuma! Então, o padre paramentado e as religiosas começaram a entoar (estaria tudo combinado?) um canto lento, sofrido e agónico, plenamente adaptado aos domínios do pecado, as jurisdições onde os ministros do Alto têm o seu múnus. Entrei ali para tentar falar com os meus pais, pois num lugar como aquele, tranquilo e virado para Deus, poderia ter alguma ajuda! Só encontrei a cópia mal conseguida de uma sociedade sem tempo nem futuro, cristalizada num passado bem vendido como grandioso! As três últimas filas, antes da saída, estavam cheias de velhas e velhos ajoelhados, penando da alma, dos joelhos e do resto do corpo, desfiando lágrimas e rosários e, lá à frente, o padre e as monjas agonizavam cânticos com ruído de flashes! Aquele não foi nem é já lugar para mim! Os meus deuses descansam-me nas pedras, nas árvores, na música encantatória do vento e da passarada entre as árvores, ou na das águas a escorrer nas beiras das serras!

Não quero ser acusado de herético mas recordo que chamam isso a quem não alinha nestas ou outras formatações como as das tragicomédias dos passeios citadinos de caloiros acolitados pelos tais doutores (da mula ruça!), nos primeiros dias das universidades. Está ali a tomada de posse dos continuadores dos esquemas onde fomos crescidos e educados.

Mas, a propósito de balanços e a condizer com o parágrafo que transcrevi, lembro-me da resposta que Woody Allen deu a quem lhe perguntou se acreditava no paraíso. Já não sei se as palavras foram exactamente estas, mas o que quis dizer foi mais ou menos isto, “Sim, mas a pergunta a fazer é se fica muito longe do centro e qual o horário da abertura?”

Um bom balanço do ano e não percam o transporte!

(*) Autoridade Tributária e Aduaneira

 

António M. Oliveira

Bom Ano!

 

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

1 Comment

  1. E meu querido Amigo, apesar das ditas mudanças, todos estes “artifícios” servem apenas para “iscanar a bista, como antigamente se dizia na minha aldeia, ou seja “arregalar o olho”, como quando se assistia às procissões, pelas ruas engalanadas de grinaldas de flores presas por fios aos “paus de festa”, (também como lá se dizia). O engodo progrediu, (talvez devesse dizer “engodos”), os “sinais do tempo” também!
    Grande abraço!
    Maria Mamede

Leave a Reply