Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
Republicanismo e direito ao sentimento nacional
Por Armando Steinko
Publicação autorizada pelo autor
As esquerdas independentistas, e também as confederalistas que colaboram estreitamente com aquelas, construem as suas estratégias políticas sobre dois grandes equívocos. O primeiro afeta a análise do Estado e o segundo afeta o fenómeno identitário. É o segundo que vamos discutir aqui, mas, na realidade, ambos estão muito próximos entre si.
O principal argumento dos independentistas de todas as cores, e que os confederalistas de Podemos/En Comú Podem repetem, é que “os catalães”, “os bascos”, etc. têm uma identidade própria, e que isso nos obriga a reconhecer a Catalunha, Euskadi etc. como sujeitos nacionais diferenciados.
Não há dúvida de que este sentimento afeta uma parte importante da população catalã, basca, etc., mas a questão é: porque é assim?
Para a direita nacionalista e confederalista tipo Herrero de Miñón[1], a resposta é fácil: o direito natural, a alma coletiva nascida em conjunturas históricas remotas, a própria existência do sentimento e coisas assim são argumentos suficientes. Mas a esquerda precisa evitar esta questão, porque abordar a sua resposta empurra-a, mais cedo ou mais tarde, para um discurso idêntico ao da direita. Porque a verdade é que a explicação nacionalista/confederalista do facto identitário tem pouco a ver com a esquerda, mas acima de tudo, é baseada numa visão “falsa” do próprio facto identitário que, se bem que encaixe na visão da direita, resulta incompatível com a tentativa de abordar a história sem recorrer à metafísica.
A realidade é que as identidades se modificam de forma espontânea e transmitem-se de uma geração para outra através da família e da comunidade, mas acima de tudo elas são construídas politicamente, de preferência através da escola e dos meios de comunicação. Antonio Santamaría demonstra na sua “Convergència Democrática de Cataluña: das origens à reviravolta soberanista”[2] como a Covergencia i Unió tem feito isso ao longo dos últimos trinta anos com os resultados que estão à vista. Esta experiência demonstra, como muitos outros, a natureza politicamente construída das identidades modernas, embora seja compreensível que uma pessoa nascida nos anos do pujolismo e criada num ambiente nacionalista considere essa construção de identidade não como uma construção política, mas como uma dinâmica “natural” que contrasta com o alegado artifício do “Estado espanhol”.
Mas ser “real” para eles não significa que seja “verdadeiro”. O facto de que as jovens gerações crescidas na Catalunha e uma boa parte da esquerda estatal não tenham consciência de que as identidades se constroem politicamente não prova nada, exceto que o problema da identidade não está resolvido em Espanha.
Nas sociedades capitalistas contemporâneas, os laços familiares e comunitários são cada vez mais débeis frente à influência da escola e dos meios de comunicação, o que aumenta o peso das identidades nascidas de decisões políticas, de um projeto político consciente, sistemático e planeado a longo prazo. Se assim for, a questão central é esclarecer por que no resto de Espanha a tarefa de uma nova construção identitária não foi abordada desde 1978.
A resposta não é difícil: enquanto os nacionalistas bascos e catalães aproveitaram o Estado das autonomias para fazê-lo, não houve forças políticas com uma projeção estatal que fizessem o mesmo para a nação de nações. O ponto de partida não era fácil porque, enquanto Adolfo Suárez e os conservadores tipo Herrero de Miñón reconheciam a legitimidade e a continuidade institucional da Generalitat da Catalunha e também dos foros bascos, inclusive antes da aprovação da Constituição de 1978, não fizeram o mesmo com a legalidade republicana. As forças pós-franquistas eram demasiado fortes em Madrid, para que os partidos de tradição democrática-republicana pudessem fazer valer os seus critérios. Sob a ameaça de um golpe de estado, sem identificar a importância do problema e deixando-se levar pela inércia imposta pelos pactos da Transição, que incluíam forte apoio em Madrid aos nacionalistas conservadores, os partidos políticos herdeiros das tradições democrático-republicanas optaram por evitar o problema, por não incluir nos seus programas a construção de uma nova identidade adaptada aos tempos e às conjunturas do momento, incluindo a sua necessária coexistência temporal com a monarquia. Ao fazê-lo, aprovaram a conformação de um dualismo de identidade no país: enquanto galegos, bascos, catalães e até andaluzes, canários e valencianos lançaram as bases para a construção de novas identidades mais ou menos fortes, integradoras ou excludentes, ninguém se ocupou em Madrid para fazer o mesmo para o conjunto da Espanha, algo novo, inclusivo e tendencialmente republicano que pudesse dar frutos a médio e longo prazo.
Na verdade, o que aconteceu nos anos da Transição é que as forças políticas do Estado adotaram acriticamente a posição de Azaña em 1932. Azaña estava ciente de que os fatores aglutinantes emocionais não são componentes periféricos, mas sim fundamentais para qualquer projeto político. Ele também compreendeu que a língua está no cerne desses fatores aglutinantes, com o que a questão linguística e tudo o que traz atrás dela se tornou chave para o encaixe territorial da Catalunha e do País Basco. A língua serviu para segmentar arbitrariamente um conjunto de “nacionalidades históricas” de outras que não eram dignas desse título porque não terem uma língua própria. E isso apesar do facto de que, como qualquer linguista sabe muito bem, a diferença entre um dialeto e uma língua é também o resultado de uma decisão política, pelo que não pode servir de ponto de partida para construir um projeto político, mas, quando muito, como ponto de chegada.
O erro de Azaña, repetido pelos partidos democrático-republicanos que fizeram a transição de 1978 e apoiado com entusiasmo pelos nacionalistas de todas as cores, foi pensar que as identidades são variáveis a-históricas, coisas fixas e imutáveis que devem ser levadas em consideração para tomar decisões políticas em torno delas. Em vez de assumir que são criações políticas que exigem um projeto e uma execução de médio prazo, Azaña tratou-as da maneira acima referida mas, cuidado, com a peculiaridade de que só reconheceu a sua existência para uma parte do território da República.
“A diferença política mais notável que encontro entre catalães e castelhanos” declarou no seu discurso transcendental nas Cortes de 27 de maio de 1932: “é que nós, os castelhanos, vemos tudo no Estado e quando o Estado está esgotado tudo acabou, enquanto os catalães, que são mais sentimentais, ou são sentimentais e nós não, colocam entre o Estado e a sua pessoa uma porção de coisas suaves, amorosas, amáveis e encantadoras que os afastam um pouco da presença severa, abstrata e impessoal do Estado“. Como é possível sustentar isto, dizer que os “castelhanos” não têm direito a um sentimento identitário?
O que se escondia atrás deste esquema são várias coisas. Por exemplo, os conteúdos metafísicos de uma parte do movimento regeneracionista castelhano que Azaña provavelmente queria enfrentar, aceitando, no entanto, aqueles que estavam igualmente presentes em outros territórios do Estado. Mas o principal era provavelmente o medo de Azaña de que os monárquicos e os espanholistas ganhariam a batalha da identidade se o melão dos “sentimentos” fosse aberto ao sul do Ebro. Era uma posição claramente defensiva que contrasta com a importância que o primeiro Presidente da República, o conservador Niceto Alcalá Zamora, atribuiu à construção de uma identidade republicana em todo o território do Estado. O programa de identitário republicano nunca foi levado adiante, embora se tenha imposto de forma espontânea durante os meses da guerra civil e que levou a uma nova abordagem de todas as identidades particulares para salvar militarmente a República.
O que Azaña expressou no Congresso é o esquema que muitos progressistas espanhóis continuam a pensar e apoiar: “eles” têm o direito de construir uma identidade própria, mas “nós” não o temos. Ou melhor: se o fizermos, arriscamos ter que lidar com o rançoso espanholismo que certamente acabará por ganhar a partida. Os dois pesos e duas medidas de Azaña, que sofreu uma enorme deceção quando contemplou a escassa solidariedade demonstrada pelos nacionalistas bascos e catalães com a República nos anos de guerra, apesar do muito que se implicou para dar lugar aos estatutos catalães e bascos, é a semente das políticas de “factos diferenciais” que se impôs na Transição.
A Constituição de 1978 é um quadro aberto e eclético sobre a questão identitária, porque não especifica, não se atreve a especificar “o que é básico e o que todos os espanhóis têm em comum”, como o professor de direito constitucional catalão Marc Carrillo assinalou de forma crítica. A esquerda defensiva e profundamente complexada nesta questão tomou a seguinte decisão: juntemo-nos como convidados de segunda ao carro da construção identitária de catalães, bascos etc, para que ninguém pense que somos espanholistas. Esse terror de cair nas garras do espanholismo é o que os levou não só a um seguidismo, primeiro identitário e depois político, das opções independentistas, mas até a fazer o trabalho sujo ao independentismo sacrificando o seu próprio projeto político republicano-federal. O terror como desculpa para não fazer nada, e subir-se ao carro de projetos políticos que bloqueiam o próprio para não se ser varrido pela história, não há algo de síndrome de Estocolmo?
O que fazer? Muito fácil: abordar a tarefa política de construir uma identidade inclusiva e comum a todos os cidadãos espanhóis, não se resignando a que dois terços da população se tenha que conformar com a “presença severa, abstracta e impessoal do Estado”. Com o que precede, é fácil entender que, quando os governos se viram incapazes de cumprir os grandes postulados civilizadores da Constituição de 1978 na sequência da crise de 2008, se produzisse uma forte crise identitária no país e uma explosão de “identidades periféricas” visando preencher os vazios que ninguém se tinha preocupado em preencher durante os trinta anos de bonança constitucional. A crise tem, pelo menos, uma vantagem: obriga, finalmente, a todos os partidos de tradição republicano progressista a admitir que o problema identitário não desaparece ignorando-o, ou entrando no carro dos projetos alheios, antes tem que ser abordado como um programa político próprio e central. A alternativa à atual contemplação acomplexada da construção identitária do nacionalismo catalão e basco – as áreas mais ricas do Estado – pode apoiar-se na recuperação do património cultural da regeneração que coagulou politicamente na Segunda República.
É um acervo em parte raivosamente moderno e que alimentou todos os regeneracionismos ao mesmo tempo: o castelhano, o catalão, o andaluz, o galego e, num sentido um tanto diferente, também o basco. Porque se o regeneracionismo, a renaixença, o rexurdimento e o berpizkude apareceram quase que simultaneamente ao longo da segunda metade do século XIX, é porque os problemas a que tentavam dar resposta eram muito semelhantes em todas as partes da Espanha: o divórcio entre país real e país oficial, a mistificação do passado absolutista dentro do discurso oficial, a calcificação do sistema político turnista, a corrupção local e o esvaziamento do sufrágio, etc. Muitas das ideias regeneracionistas que cristalizaram no projeto republicano ligam-se a reivindicações centrais da esquerda no presente: a reinvindicação do trabalho versus renda; a descoberta da natureza e da paisagem em diferentes condições históricas mas comparáveis em muitos sentidos; a “intra-história” unamuniana, isto é, a visibilidade do invisível, daqueles que não contam e não vão votar, mas que contribuem com uma parte fundamental do excedente que a sociedade inteira consome e que hoje sofrem as piores consequências das políticas de ajuste Não é admissível envolver hoje sem mais todos esses invisíveis e aqueles que os defendem na roupagem do termo “povo” porque, ao contrário do que aconteceu no passado, os setores privilegiados do nacionalismo incluem-se nessa categoria, distorcendo-a completamente. Mas eles estão aí.
O meu ponto é claro: todos os espanhóis, e não apenas os catalães, os bascos, os galegos e os pós-franquistas, temos o direito a ser “sentimentais”. Mas o “sentimentalismo progressista” não pode ser excludente, supremacista, antidemocrático e puramente emocional como aquele que está a arruinar a convivência sem fornecer qualquer solução aos problemas das pessoas. A nova identidade tem que se apoiar num discurso racional, escrupuloso com factos históricos, ainda que seletivo quando se trata de reivindicá-los como referências. Tem que se basear numa visão solidária de culturas e “povos” bem compreendidos, num discurso republicano-federal, adquirir uma fina consciência do problema linguístico.
Eu poderia retomar aquele momento remoto do século XIX, no qual os quatro ou cinco “renascimentos” se bifurcaram politicamente, apesar de nascerem de problemas comuns, uma bifurcação fatídica que enfraqueceu o projeto republicano enquanto reforçava a falta de solidariedade e a cultura da Espanha Única. Muitas das suas peças acabaram integradas hoje num discurso supremacista semelhante ao de muitas direitas europeias, um discurso no qual uma ideia pervertida de “povo” se impõe à ideia republicana de “cidadão”. A ideia de cidadania não exclui o direito ao “sentimento nacional”, mas impõe mantê-lo sob controlo, subordiná-lo à racionalidade que emana de ideias algo “frias” – não necessariamente – embora precisamente por isso universais: as ideias de liberdade, igualdade, solidariedade e fraternidade. Não é apenas um programa para a Espanha: é também para todo o mundo. Na verdade, é o único que pode impedir que a atual crise civilizadora, ambiental e social degenere num caos autodestrutivo de toda a humanidade.
________
[1] NT Político e jurista espanhol, um dos chamados pais da atual Constituição espanhola de 1978.
[2] https://www.foca.akal.com/libro/convergencia-democratica-de-catalunya_30866/