CARTA DE BRAGA – “…e guarda o telemóvel!” – por ANTÓNIO OLIVEIRA

 

Costumo juntar-me com alguns amigos num café simpático e onde podemos juntar duas mesas sem qualquer reclamação do gerente. Ali falamos das pequenas coisas que podem ajudar a vencer o desgaste do tempo e que, como em todos os grupos do género, servem também para manter laços e rotinas que ainda resistem aos avanços das tecnologias.

Na última vez, depois do café obrigatório, o Sousa dá o ponto de partida para uma conversa animada, ao contar que um engenheiro qualquer dos EUA encontrou o maior número primo de que se tem conhecimento! Uma coisa com um tamanho monstruoso, mais de 23 milhões de dígitos!

– E o que tem isso a ver para a minha felicidade? pergunta o Silva, ao mesmo tempo que desliga o telemóvel e logo acrescenta, sem dar oportunidade de o Sousa lhe responder, nem o tempo que me resta de vida chegaria para o escrever! confirmando o rezingar permanente e, na maior parte dos dias, até com ele mesmo.

– Não precisas, porque o teu computador pode fazê-lo por ti! Tal número é usado para criar os códigos que dão segurança a todas as conversações e trocas de correios feitas na net e mesmo as do teu telemóvel! diz o Sousa.

– Está bem, mas de certeza que o Trump vai dar estragar ou dar mau uso a esse tal primo!

Mas também logo começou uma troca de opiniões sobre estes tempos, sobre o avassalador domínio da imagem e do uso permanente dos telemóveis ignorando pessoas, lugares, situações e conveniências e ainda sobre a promoção de tipos como o grosseiro americano da presidência, sempre apoiado no bater as teclas do twitter.

Debate esclarecedor também, por termos chegado à conclusão de que o ser humano tem de enfrentar um novo desafio, o do abstracto, da imaginação e da criatividade, mas dependente de voltar a encontrar lugar para a leitura, por só nela se conseguir encontrar uma explicação para o antes e depois das coisas, porque o óbvio da imagem quer explicar tudo no pouquíssimo tempo que a indústria mediática permite.

Na realidade, nesta sociedade cada vez mais dependente da comunicação imagética, o maior problema reside na distinção entre a atenção e a ignorância e entre perceber e ser percebido. Só assim se pode explicar um modo de vida que rejeita o diferente e procura a homogeneização, tentando com a selfie, mas ao lado de alguém com nome, ultrapassar a dimensão da rua porque, diz Innerarity, qualquer montagem cultural é um mercado de atenção e celebridade!

Por isto mesmo, hoje parece ser insuportável passar despercebido e assumir a invisibilidade porque, os media demonstram-no a toda a hora, onde não há imagem há apenas irrelevância!

É o domínio do poder igualizador da indústria mediática, que transferiu a noção do espectáculo para a rua, transformando-o numa mera representação entre as pessoas através da imagem, talvez a nova forma de expropriação e alienação da sociabilidade humana.

– Mas voltemos ao tal número primo! interrompe o Silva, mais uma vez. O Trump pode dar cabo dessas coisas todas! Ele não o percebe, por nem ter nada que se possa usar debaixo daquela pala loira!

– Pois! E isto também serve para ti que só sabes refilar e nunca estás em lado nenhum! George Steiner, que até devias conhecer, recorreu recentemente a Aristóteles, para afirmar que se não queres estar na política nem descer à praça pública por preferires o descanso da tua vida privada, também não te podes queixar se os bandidos te vierem a governar! Uma afirmação e uma verdade com séculos!

– Também não é tanto assim!

– Volto a responder-te com Steiner! Se tens medo de te enganar, nunca conseguirás enfrentar grandes desafios! O pior é que sempre houve e haverá provas de que o erro se pode evitar! Pensa nisso e guarda o telemóvel!

António M. Oliveira

 

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

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