DORINDO CARVALHO E O MISTÉRIO DO HOMEM NA PINTURA, por JOSÉ FERNANDO TAVARES

 

José Fernando Tavares

 

A exposição retrospectiva que Dorindo Carvalho intitulou «Sinfonia do corpo em vários movimentos (1963-2017)», formada por cinquenta obras de desenho e de pintura concebidas a partir de várias técnicas e em diferentes suportes, é representativa do contributo do pintor para a expressão artística do seu tempo: o período compreendido entre a segunda metade do século XX e o primeiro quartel do século XXI, ou seja, o presente. Diríamos: a pungente actualidade.

É certo que nem sempre as fronteiras temporais nos permitem compreender a complexidade de uma obra artística, mas é certo também que o artista é uma consequência, simultaneamente material e espiritual, do tempo que o viu nascer. Basta pensar que o século XX foi o receptáculo alquímico (se assim o podemos designar) no qual se conjugaram e se complementaram todas as dissonâncias e todos os contrapontos da actividade criadora, principalmente no que respeita às tendências e às manifestações artísticas veiculadas, quer pela arte plástica quer pela poesia quer pela música.

Será, talvez, na arte plástica que essa multiplicidade de experiências, testemunhadas através da história da arte e dos movimentos estéticos que a configuram, pode justificar em maior, ou menor grau, essa dissonância contrapontística que a inteligência crítica do homem contemporâneo consegue ordenar, convertendo esse caos irradiante e contaminador, na ordem e no sentido último dessa ordem. Já não será novidade que toda a história da arte representa a deflagração do caos, sobretudo se o entendermos como o sinal de uma pegada cósmica. Não obstante a distância cosmológica que separa o artista criador da compleição do próprio Cosmos, já não podemos duvidar dessa marca, dessa «pegada» que o artista deixa no seu tempo, configurando-a nessa realidade visionária a que chamamos a «posteridade», seja ela próxima ou distante.

Já há muito nos temos vindo a referir à dimensão humanística da obra de Dorindo Carvalho, dimensão que volta a manifestar-se de forma esclarecedora nesta retrospectiva. Julgamos saber (e julgamo-lo desde há muito) que a importância e a (eventual) perenidade de uma obra artística (e agora referimo-nos à criação pictórica) é afirmada por essa mesma dimensão, sobretudo se essa obra for o resultado de dois caminhos: por um lado, o resultado de uma interrogação fundamental em torno do lugar do homem no espaço civilizacional a que pertence; por outro, a perspectiva estética através da qual essa interrogação é formulada. Sem que, talvez disso, Dorindo Carvalho se tivesse apercebido, o resultado do seu trabalho pictórico tem sido, de forma constante e ininterrupta, a permanente questionação acerca do lugar que o homem tem vindo a ocupar nesse espaço, supostamente privilegiado, da civilização e da inteligência ao qual toda a humanidade julga pertencer por direito próprio, mercê, não apenas do papel da evolução histórica e civilizacional, mas também dos atributos da inteligência.

Dessa multiplicidade da expressão plástica, o artista está a prolongar o seu testemunho através da surpreendente vitalidade que tem vindo a demonstrar através dos projectos que continua a conceber e a concretizar. Mas é o homem, e sempre o homem, o centro das suas preocupações estéticas. Não podemos falar propriamente na arte do retrato num sentido strictu sensu, pois é o homem na sua totalidade interior, bem como na sua totalidade de correspondências com o mundo, que aqui o espectador encontra. Esta não existência do retrato individual, particularizado, leva-nos a considerar a presença daquilo a que podemos chamar a «abstracção figurativa». Esta noção, supostamente contraditória, corresponde à constatação de uma confluência de múltiplas perspectivas, todas elas centradas no ponto de fuga da obra plástica. É-nos, assim, legítimo referir, a presença do homem na plenitude do seu mistério interior, mistério cuja decifração poderá ser encontrada na relação com o tempo, pois não é possível compreender a humanidade sem esta inter-relação temporal e histórica. Mesmo se considerarmos a existência autónoma do espírito, veiculada através da introspecção e do isolamento intencional, temos que considerar outrossim as raízes que prendem a humanidade à sua matriz original, muito à semelhança do que acontece com as grandes árvores das florestas tropicais.

Já o título desta exposição nos remete para uma multiplicidade na representação do homem. Não podemos considerar somente a representação exterior, embora seja para esta que o nosso olhar converge em primeiro lugar. Trata-se, de facto, de uma sinfonia de corpos: estes desfilam diante do nosso olhar como se contemplássemos uma pauta musical nas suas diferentes tonalidades sonoras, acompanhadas pelos cambiantes da cor, ou simplesmente pela pureza da forma acompanhada pela linearidade do seu contorno. É o caso da série de quadros a que intitula Os limites «in» visíveis do corpo, nos quais apenas apreendemos o contorno dos corpos, como se nada existisse para além deles. Mas é na posição do corpo, seja ela estática ou em movimento, serena ou expectante, seja na reverberação do grito ou no enigma do silêncio, que podemos vislumbrar a existência de algo mais: essa substância que confere sentido à humanidade e à qual podemos chamar «espírito», pois jamais um corpo se basta a si próprio por mais simples que se afigure a sua representação plástica. E dizemo-lo desta maneira porque o corpo mais não é do que a representação simbólica do ser que o enforma, esse ser ainda desconhecido (porque de difícil definição) mas que identificamos como pertença nossa: o corpo representado assemelha-se ao espelho onde vemos projectada a nossa imagem real. É a partir desta íntima identificação que o simbolismo da representação pictórica adquire o seu sentido mais amplo, sendo justamente o observador expectante que define um sentido à obra, tal como acontece através da leitura da obra de arte literária.

Na série acima enunciada, Os limites «in» visíveis do corpo (aqui parcialmente exposta), produzida no alvor do novo século, essa presença do contorno a definir a forma, contorno acentuado através da sólida determinação do traço (característica que sempre marcou a arte pictórica de Dorindo Carvalho), poderá ser compreendido como uma provocação (inconsciente e não intencional, bem entendido), não apenas às coordenadas convencionais que regem o olhar do observador, mas também a um momento da história da arte moderna propriamente dita, nomeadamente da história da pintura europeia oitocentista, momento decisivo que ficou oficialmente conhecido como Impressionismo. Se, neste movimento estético, a abolição do contorno em benefício da cor representa o paradigma da liberdade criadora na pintura, Dorindo restitui à forma a compleição do traço e quase converte a cor numa necessidade colateral, se bem que não menos significativa no contexto da composição.

Esta circunstância de carácter estético (na qual a aparente negação da herança impressionista é apenas circunstancial) não retira à pintura de Dorindo Carvalho a sua actualidade, dado que se observam na obra do pintor outros momentos nos quais se afirma esse perene princípio da liberdade criativa. Veja-se a tela que o artista intitulou Deusa do Orinoco, na qual a presença figurativa do corpo é diluída e fragmentada na pujança da cor e na multiplicidade da forma. A presença do traço, longe de ser uma negação da suspensão da cor, diluída no espaço da tela (o que será o mesmo que dizer no espaço que é o mundo em si mesmo, na sua grandeza e na sua pujança germinadora da vida) sem a delimitação das fronteiras da forma, corresponde à iluminação de um caminho, a delineação de um percurso que é também um destino: o destino que subjaz à criação estética, a qual se confunde com o destino do próprio artista.

A simbólica abstracção da imagem, tal como também ocorre na música, corresponde à depuração da ideia a ela subjacente até ao seu mais ínfimo limite significativo. Não é por acaso que Dorindo intitula esta exposição como uma «sinfonia de corpos em vários movimentos». Se esta última palavra fosse substituída por «andamentos» (andamentos musicais, bem entendido) o sentido global do título manter-se-ia na sua pluralidade significativa.

O século XX, o verdadeiro século das «luzes», empurrou a filosofia para os domínios da arte. Os novos sistemas filosóficos (se é que eles existem) deixaram de figurar nos grandes tratados e tornaram-se visíveis na abstracção plástica e na poesia, como já o haviam sido nas obras sinfónicas de Wagner e de Beethoven. O novo século já nasceu com a determinação de pôr em prática o plano de uma conjura antiga (que se justifica por um acentuado pragmatismo, veiculado pela emergente e assombrosa revolução tecnológica) cujo objectivo seria o de retirar à Filosofia o seu magistério escolar e académico em nome da sua suposta «inutilidade». E, se nos referimos àqueles dois monstros do Romantismo alemão, não é apenas porque a Filosofia se afirmou naquela língua e naquela cultura, mas também pelo facto de a sua obra possuir a pureza da Ideia, a mais fina depuração da abstracção estética: em ambos os compositores avulta a complexa relação do homem com o Absoluto e com o divino; em ambos, mantém-se intacto o mistério da redenção bem como o sulco imortal da Paixão, esse mistério maior que permite o florescimento da arte em todos os momentos da história da humanidade.

Esta fugaz aproximação do pensamento com a arte é-nos particularmente útil para que possamos conferir uma dimensão racional à pintura de Dorindo Carvalho. De resto, qualquer observador atento é obrigado a ultrapassar o domínio visual da ordem plástica e a inteirar-se do seu conteúdo mais abstracto; ou melhor, da abstracção plena veiculada pelas (nem sempre lineares) opções estéticas do artista. Dir-se-ia que, em cada série de composições produzida pelo fulgor criativo de Dorindo, se opera uma revolução: uma revolução interior, íntima, discreta, silenciosa, mas jamais invisível. Reside aqui, talvez, a força da sua pintura: a (feliz) conjugação entre o visível e o invisível, circunstância que (talvez) tivesse permitido ao artista mover-se fora dos circuitos comerciais de modo a produzir uma obra autónoma, livre das «modas» e das influências.

É desta maneira que podemos compreender essa pequena revolução operada pela série (exposta parcialmente) da qual fazem parte as composições que intitulou Retrato transfigurado (1985) e Fragmentos de uma ruptura aparente (1986). Em ambas as composições avulta a proeminência do traçado grosso a circunscrever a forma arredondada dos corpos. É na composição de 1985 que se vislumbra essa múltipla presença do humano, uma presença que parte da singularidade do indivíduo para a pluralidade espiritual que o enforma. A exposição da nudez, tópico comum na pintura de Dorindo, acompanhada pela face poliédrica da figura, confirma essa outra dimensão que está para lá do indivíduo, confirmando que o homem não se basta a si mesmo; que a sua existência não começa e não termina no ciclo biológico da vida. Em ambas as composições os corpos parecem formar algo que se assemelha a um puzzle, como se estivessem fragmentados em diferentes dimensões. São figuras sofredoras que expõem tragicamente a sua nudez; figuras que atingiram o limite da sua realidade e se transfiguraram para habitar outros universos de modo a afirmar a sua existência. Ao rosto poliédrico atribuiu-lhe o pintor a categoria da transfiguração, sem dúvida o fenómeno que acompanha os limites da realidade, para se converter numa realidade paralela. Quanto maior o poliedrismo do rosto, maior será o sofrimento que dele emana.

Esta trágica transfiguração repete-se nas duas obras de 2017, ambas intituladas Autorretrato sem nada 1 e 2. Se na série acima referida se vislumbra a condição trágica do homem perante a inexorabilidade da sua nudez e do seu desespero perante a morte e o seu progressivo afastamento da vida, nestas duas composições avulta, em toda a sua pungência e em toda a sua brutalidade, a condição trágica da humanidade perante o esvaziamento interior provocado pelo peso insidioso da solidão. O espectador confronta-se, uma vez mais, com a incómoda nudez dos corpos, uma nudez que simboliza a mais dura dimensão da verdade, talvez a verdade última do homem: a sua nadificação perante a grandeza titânica do Cosmos.

É no primeiro autorretrato desta série que se observa a presença desta dimensão cósmica experimentada pelo próprio pintor. Trata-se, acima de tudo, de um sentimento; um sentimento muito particular que marca o seu tempo de agora: é o momento da solidão extrema; o momento do confronto com a obra de uma vida inteira; o momento do confronto com uma condição que é comum a toda a humanidade. A nudez com que o pintor se representa é a expressão da sua humildade face ao incomensurável. A presença de três luas, na parte inferior da tela, sobre um fundo escuro, dir-se-ia o espaço sideral, acompanha um sol incandescente, irradiante, que parece fugir da tela e que ilumina a mão da figura. É a fugaz iluminação da mão da criação: a mão de uma divindade fragilizada perante a adversidade da condição de ser homem.

Não menos inquietante é o segundo autorretrato da série. É uma composição na qual avulta o contraste da sombra e da luz, embora se observe uma clara predominância da sombra. Esta obscuridade está aqui de modo a acentuar a própria nudez com a qual o pintor volta a representar-se, desta vez com uma venda nos olhos e a abraçar-se a ele próprio, num gesto de igual humildade perante a imensidão do Cosmos. As mãos, de uma dimensão desmedida perante a escala do corpo a que pertencem, assemelham-se às asas recolhidas de um pássaro nocturno que vigia, expectante, a presença incómoda do caçador; um pássaro suspenso perante a contingência da morte ou da estiolação. É o mesmo sentimento que, do mesmo modo, predomina na composição. A venda branca (imaculadamente branca, diríamos) é a única veste que o pintor se preocupa em representar, como se estivesse intencionalmente a aludir às vestes brancas daqueles que, no passado, eram levados à força para o patíbulo. A presença da venda sobre os olhos, mais do que uma representação da suposta «cegueira» do pintor, é também a representação do final de um ciclo que marca o acto da criação, esse acto supremo que sempre caracterizou a existência do pintor, esse portentoso criador de imagens que sempre surpreendeu o seu público, por mais restrito que ele seja.

A arte de Dorindo Carvalho continua a surpreender-nos: observa-se na sua pintura, desde o seu início, a invulgar consciência de uma dimensão cósmica que determina o destino e o mistério da humanidade. Essa consciência conduziu-o a um grande número de experiências no domínio da representação simbólica, desde a expressão realista, dos idos de 1960, à expressão mais abstracta do presente, conferindo a cada tela, a cada desenho, o elemento decisivo que iria contribuir para a sua sinfonia pessoal: essa partitura (igualmente cósmica, metafísica) que contribuiu para a criação de uma irradiante e policroma sinfonia do corpo em múltiplos andamentos.

2 Comments

  1. Dorindo é um artista polivalente, extremamente livre em sua criatividade. Orgulho-me muito de ter tido alguns poemas ilustrados por ele aqui, na nossa “Viagem”.
    Cumprimento, portanto, o José tavares, por seu belo texto, e o meu querido amigo Dorindo Carvalho, grande artista que tanto admiramos.

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