DOIS TEXTOS DE OUTROS TEMPOS, TEXTOS DEDICADOS À MINHA NETA ALÍCIA, EM PARTICULAR, A TODOS OS JOVENS DA SUA IDADE, EM GERAL – por JÚLIO MARQUES MOTA

Dois textos de outros tempos, textos aqui dedicados à minha neta Alícia, em particular, a todos os jovens, em geral. Para a minha neta em particular porque é o primeiro ano da sua vida em que aborda as questões de filosofia, dois textos respetivamente de Platão e de Aristóteles. O de Platão sobre conhecimento, sobre a aprendizagem de conhecimentos, o segundo, de Aristóteles, sobre as relações de amizade, sobre a amizade profunda, o que hoje começa a ser uma raridade.

A caverna, a saída da luz de uma fogueira na caverna para a luz do Sol, é toda uma trajetória de vida pessoal, de busca, de sofrimento e de alegria pelo encontro com o conhecimento, simbolizado pela luz do Sol. Uma subida, da caverna para a luz do sol, uma subida que podemos supor por uma escada fixa na base e no topo apenas, e de muitos degraus, com suficiente largura nos seus múltiplos degraus. Um conhecimento que se faz, se alcança, se interioriza, por patamares. É isto o que acontece com cada estudante, de degrau em degrau, ano após ano, passagem após passagem. Para isso é preciso lucidez, coragem, resistência, abnegação, sobretudo quando se estudam algumas matérias de que não se gosta, mas que fazem parte da área científica a que se pertence, ou se carece de apoios externos para não fraquejar nessa subida. Aquelas são características que ela claramente possui, reconheçamo-lo. Esperemos que as mantenha na sua trajetória pessoal e mais, que fortaleça essas mesmas características. E porquê? Porque degrau a degrau, estádio após estádio, patamar após patamar, há sempre escolhos que nos podem dificultar a passagem ao degrau seguinte ou mesmo a tropeçarmos e a cair da escada para fora, para fora da vida, para fora da escada que nos leva ao conhecimento, à luz do Sol, no dizer de Platão. E à medida que se sobe na escada do conhecimento, os perigos que nos espreitam são crescentes e por isso a capacidade de nos contrapormos a estes perigos também tem de ser crescente. É por isso que o atingir o conhecimento exige capacidade de sofrimento, resistência, motivação, e uma maturidade crescente, inerente ao próprio processo de conhecimento. Por isso, Platão terá razão quando nos diz que, por vezes é necessário alguma pressão, até pelo sentido de obrigação para consigo próprio.

De entre os escolhos, sublinhemos:

a) os maus programas, e quando maus são desadequados. Muitos são-no e, como exemplo, basta-nos citar os manuais de matemáticas do 8º, 9º e 10º ano, e por isso são desmotivantes, bloqueadores do desejo de subir na escada do conhecimento.

b) os maus professores ou o mau sistema de ensino, uma vez que, como assinala Platão, “o processo de sair da caverna é processo de aquisição de conhecimentos, de educação, e este é um processo difícil; na verdade, requer apoios e, às vezes, até mesmo força”. Sensibilidade e suficiente atenção e empenho para os apoios necessários para que os estudantes que por diversas razões estão à beira de patinar e ficar em qualquer dos patamares, não desistam de prosseguir o seu caminho de sair da caverna e atingir a luz do sol, são características que se começa a não ver nas escolas, não porque não façam parte da bagagem de muitos professores, não que estes não estejam empenhados em garantir estes mesmos apoios, mas sim por culpa de uma certa conceção de ensino que não lhes dá tempo sequer para as porem em prática.

c) o problema de circulação de droga pelas escolas, que flui nestas como a cerveja numa boa cervejaria cheia de gente e num dia de calor, e este fluir não é feito geralmente por gente pobre, não é não, contrariamente ao que poderíamos pensar. Um problema já grave neste momento, mas que tudo aponta que se vai tornar muito grave ainda, sob a pressão do que já se faz na América com a liberalização das drogas para fins recreativos.

d) o problema de uma sociedade que começa a ver os jovens apenas, ou sobretudo, como agentes de consumo a quem tudo deve ser sugestionado e que pretende que estes vejam o seu particular período de vida como um período de pura festa. Se dúvidas há, veja-se a desregulamentação sobre as diversões noturnas, ou a propagação de concertos onde tudo ou quase tudo pode ser permitido. Exemplo emblemático disto mesmo é a cidade de Coimbra na semana da Queima das Fitas, sob todos os aspetos, inclusive no abuso, extremo abuso de álcool.

e) as solicitações constantes à dispersão como as redes ditas sociais que muitas vezes são redes sociais de nada, e nisto sublinhemos as más companhias, a companhia daqueles que desistiram de subir os degraus da íngreme escada da vida e ficam num qualquer patamar, se é que não saem mesmo da escada. Esses nunca querem abandonar sozinhos, procuram companhias. E com o número destes a aumentar, assim se vai criando e ampliando uma subclasse permanente de gente que comporta um conjunto totalmente diferente de conotações para uma sociedade que se quer democrática, que se quer justa.

Mas isto acaba por nos levar a Aristóteles, à necessidade de optar por amizades profundas, de nos afastarmos das más companhias e de rejeitarmos os falsos amigos, os amigos que nos dão sempre razão, mesmo quando a não temos.

Sobre a amizade diz-nos este filósofo:

  1. “Na pobreza, assim como nos outros infortúnios, as pessoas supõem que os amigos são o seu único refúgio. E a amizade é uma ajuda para os jovens, salvando-os do erro, assim como também para os idosos, tendo em conta os cuidados que necessitam e a capacidade diminuída de ação decorrente de sua fraqueza; é uma ajuda também para aqueles que no auge da sua realização de ações nobres, pois “dois que estão juntos” são mais capazes de pensar e agir “.

  2. Cultivar a amizade do bem, esse tipo de relações baseia-se numa apreciação mútua das virtudes que a outra parte considera importantes. São as próprias pessoas e as qualidades que elas representam que fornecem o incentivo para que as duas partes estejam em relação de amizade umas com as outras. Ao invés de ser de curta duração, tal relacionamento geralmente dura até ao fim, e geralmente existe um nível básico de bondade requerido em cada pessoa para que ela exista em primeiro lugar.

  3. É muito mais provável que cada um de nós se ligue a esse nível com alguém quando se vê o outro numa situação difícil ou o viu crescer ou se os dois enfrentaram dificuldades mútuas juntos.

  4. Quando se respeita uma pessoa e se preocupa com ela, então fica-se feliz por estar com ela. Se se trata de uma pessoa suficientemente boa para justificar essa relação, então essa relação é também de utilidade para ambos.

  5. Estas relações exigem tempo e intenção, mas quando florescem, são feitas com confiança, respeito, admiração, muita admiração. Eles trazem consigo algumas das alegrias mais importantes que a vida tem para nos oferecer.

Dois textos que têm muito a ver com os nossos filhos e netos de hoje, dois textos que, por essa razão, dedico a sua publicação à minha neta Alícia, em particular, e a todos os jovens da sua idade, em geral. Dois textos cujos ensinamentos, espero eu, sejam ou venham a ser uma espécie de lição, de guia, para os mais novos e que, uma vez interiorizados, lhes sirvam como um pequeno farol na subida da caverna para a luz do sol.

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