PEPETELA, “SUA EXCELÊNCIA, DE CORPO PRESENTE” – UMA LEITURA por MANUEL SIMÕES

 

 

Pepetela (Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos) nasceu em Benguela em 29 de Outubro de 1941, e é filho de pais portugueses, já nascidos em Angola. Estudou no Colégio dos Maristas em Sá da Bandeira (actualmente Lubango), passou mais tarde pela Universidade de Lisboa e completou em Argel, já integrado no MPLA, os estudos de História e Sociologia. Em entrevista concedida a Michel Laban (Angola. Encontro com Escritores, vol.II, Porto, 1991), exprime o início da consciência do que era a discriminação no sistema colonial: «Chego ao Lubango e encontro uma sociedade em  que o racismo era a nota predominante, em que a separação era nítida – então isso chocou-me. Aí, eu comecei a tomar consciência […]. Então, aí sim, foi uma opção consciente, eu comecei a compreender realmente».

Pepetela – o pseudónimo adopta uma palavra do quimbundo, kipepetela, que quer dizer “pestana” – é um conhecido romancista angolano, com uma obra consagrada (Prémio Camões 1997), desde a alegoria Muana Puó, escrita em 1969 mas publicada em 1978, do didactismo da novela As aventuras de Ngunga (1972), até aos romances que traduzem a emancipação social e as etapas da construção do novo país: Mayombe (1980), Yaka (1985), romance histórico em que a metáfora da máscara africana traduz a consciência das raízes e da identidade; ou Lueji, o nascimento de um império (1990). A sua narrativa evolui, como se sabe, da componente épica para uma perspectiva crítica, muitas vezes conotada com a situação político-social do seu país, e disso nos damos conta em A Geração da Utopia (1992) ou noutros romances que se lhe seguiram: Predadores (2005), Se o passado não tivesse asas (2016), por exemplo, até ao mais recente Sua Excelência, de corpo presente (2018), de que a seguir se falará.

O novo romance, na sequência de outros discursos do autor, é uma fábula que confirma a sua incursão por elementos distintivos do realismo fantástico. O teatro da acção é fixado no velório de um presidente africano, o qual, durante o cerimonial de dois dias, reconstrói o passado e idealiza como será o futuro próximo, depois da sua morte. O defunto “observa” do caixão os movimentos dos políticos, das muitas mulheres que teve em vida, da primeira-dama (“a palanca negra”) e dos numerosos filhos, e, ao começarem as últimas cerimónias, «esperava que me deixassem o caixão aberto, para poder assistir de palanque” (p. 253). E como, na altura do funeral, estava a decorrer uma manifestação de rua («abaixo os corruptos, abaixo a ditadura, abaixo a polícia, ladrões para a cadeia»), toda a gente do velório se pôs em fuga, depositando o caixão na lixeira da cidade («presidente enlixado»), ficando em suspenso a questão de se saber se um dia acabariam por fazer o funeral de Estado.

É o próprio defunto-narrador que, a dado momento do seu “monólogo” (na verdade “dialogava” com o seu informador-bófia), fornece a identificação do partido/governo: «partido maioritário e sempre triunfante nas eleições, ainda com o saldo positivo de ter obtido a independência, muitos anos atrás, e vencido todas as guerras civis» (p. 94). Esta descrição concede ao leitor a tentação de interpretar uma tal referência como uma alusão concreta a episódios conhecidos que a História já arquivou, o que parece ser corroborado por muitos fragmentos do romance, como no momento em que o informador privilegiado o punha «ao corrente […] dos desfalques na administração feitos por gente importante das transferências ilícitas de capitais tóxicos para os paraísos fiscais, dos crimes de sangue por amor ou desamor» (p. 202), como se fossem coisas desconhecidas do presidente-defunto.

Aqui, como em muitas outras sequências, se introduz a ironia, a qual percorre os interstícios do texto e que encontra talvez a sua máxima expressão quando o defunto reflecte a propósito da manifestação que gritava palavras de ordem «absolutamente inaceitáveis numa democracia avançada» (p. 254). Apesar das coincidências com exemplos conhecidos, seria redutora a leitura que confinasse o romance a um particular país. O romance é muito mais abrangente, ainda que a perspectiva incida sobre um país africano onde vigora o nepotismo e um sistema totalitário de governo. Mas a geografia tende a alargar-se, e não só a um continente que herdou os “tiques” do colonialismo e a divisão classista da sociedade.

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