Acho que foi apenas há um par de anos, que percebi finalmente a noção de capital e o sentido do capitalismo. Foi, não se riam, numa tarde assoladora de agosto castelhano, sob umas árvores, olhando o céu azul entre as folhas, na escassa fresca, de uma piscina pública.
O mérito não foi do ar, nem das árvores, nem se tratava de um golpe de calor. A cousa é que estava a ler uma velha biografia do grande Morgan. Não do famoso corsário e governador galês, quanto do não menos temível John Pierpont Morgan, J.P. Morgan, o titã da banca e as finanças, o senhor dos ferro-carris e do aço, o rei de Wall-Street, o imperador económico dos USA na passagem do XIX ao XX, e mais conhecido hoje pelo seu colecionismo.
Aquele era um livro que comprara nalgum momento bem antes, atraído pela capa poderosa e pela editora, mas que como tantos outros fora deixando para alguma ocasião, com tempo. O volume, de letra pequena e papel amarelo pelos anos, é uma tradução de Manuel Pumarega, ao castelhano, da biografia escrita por John K. Winkler (Morgan the Magnificent: The Life of J. Pierpont Morgan (1837–1913)), publicada originalmente na Vanguard Press, a editora capital da esquerda norte-americana dos anos 20-40 do século XX.
A tradução castelhana: Juan K. Winkler, Morgan el Magnífico (Madrid, 1931) sairia na também pioneira Ediciones Oriente, uma das emblemáticas editoras de avançada republicana de esquerda, na ativa Espanha livresca dos anos 20-30 do século XX.
Oriente (a luz que vinha do Leste e brilhava após 1917), nascera um pouco à contra da cultura da Revista de Occidente, que impulsava Ortega y Gasset. O projeto, nascera a fins dos anos vinte, como iniciativa cultural-formativa de um grupo de novos intelectuais de esquerda, escritores e ativistas da pequena burguesia golpeada pela crise, radicalizada e em risco de desclassamento, inseridos nos apaixonantes debates, a respeito na nascente URSS, da revolução, e do papel dos intelectuais, com a esquerda proletária e o anarquismo. Na procura de um espaço que lhes permitisse salvar a censura prévia vigente para imprensa periódica, decidiram publicar novidades estrangeiras de ideias radicais, traduzidas, e bem apresentadas em formato livro (que a partir de 200 páginas não passava censura) e toparam, com uma edição cuidada, capas de vanguarda, propaganda profissional e venda por subscrição direita a todos os lugares da Espanha, um inesperado sucesso e mercado, renovando um espaço editorial que pronto se dividiria em iniciativas com variantes ideológicas e diversas estratégias comerciais, nas que publicariam as mais diversas, escandalosas e modernas temáticas e as principais vozes da esquerda estrangeiras e espanholas.
As 313 páginas da biografia são uma preciosidade descritiva, detalhista e não hagiográfica do duro homem de negócios. O caráter, a pessoalidade particular, o comportamento, fisionomia e gestos aparecem bem refletidos no livro. Porém, o melhor é a contextualização económica e histórica, na sociedade norteamericana em construção, de cada um dos episódios do ascendente triunfo de Morgan e das crises económicas, batalhas especulativas, jogo de Monopoly na vida real, e análise dos jeitos dos outros capitalistas competidores.
Especialmente significativas são as descrições dos grandes pânicos de 1857, 1873, 1893, 1907… precedidas pelas operações especulativas de mercados em expansão, sempre ilimitada, até justo antes de cada crack e seguidas pelas decisões arriscadas, improvisadas, despóticas e impulsivas, que deixariam ainda mais ricos aos mais espelidos, achegados ou afortunados; mais pobres os trabalhadores e convulso o país e de mais em mais o mundo inteiro.
Provavelmente a leitura dos diversos episódios económicos e aventuras referenciados no livro resultariam especialmente significativos para os leitores no contexto após 1929, pelo menos quanto resultam hoje, no contexto após 2008.
Afinal a mensagem que transcende é simples: as crises são simplesmente capítulos no triunfo dos grandes capitalistas. A transformação da economia e os seus desastres é efeito da acumulação e reborde nos setores no momento na dianteira, regidos e controlados pelos interesses especulativos dentro da religião imparável da acumulação, investimento, e procura de mais capital.
As pessoas importam pouco, são apenas peças na engrenagem da produção e consumidores, o resto, sobram. O que importa é a mais-valia; a poupança na produção, na logística, no armazém, na venda, no pessoal; as trapacearias nas contabilidades, as operações no limite do legal na bolsa, as informações privilegiadas, os contatos, os subornos, as práticas de monopólio e gangsterismo, as campanhas propagandísticas com o controlo dos mass média e dos representantes políticos, da lei e o sistema judicial, o tudo vale na procura do benefício, e o investimento e reinvestimento de benefícios constante e exponencial, baseadas no crédito e a confiança, no futuro promissor.
E dado que o capitalismo significa acumular mais e mais capital, a acumulação só é possível em poucas mãos, quanto menos, mais capital acumulado. A acumulação em poucas mãos enriquece os menos e provoca um desclassamento em cadeia. Assim, por lógica, o capitalismo é o contrário do reparto, favorece uma pequena grande burguesia, escraviza no possível a mão de obra, condiciona o consumidor, e procura destruir a pequena burguesia e a classe média.
Por isso a pequena burguesia e a classe média trabalhadora (no sentido mais amplo), são refratárias ao capitalismo, são conservadoras, desconfiadas e paralisam, para esticar e dar uso, o capital acumulado. Não reinvestem compulsivamente, e quando combinados com uma certa formação, também não consumem acrítica e descontroladamente.
Uma classe média civilizada, valoriza o tempo e a formação, pode tomar decisões e escolhas a respeito do mercado laboral e das suas condições de trabalho, vivenda, família. E também consome criticamente. Ao dispor de tempo e de capital pode se permitir o luxo vedado de escolher, de perder tempo procurando produtos em várias lojas, discriminando o que compra.
Escolha, que para a maior parte da gente trabalhadora é impossível, a liquidação das condições laborais e sociais das classes populares, sujeitas a precarização e a ausência de oportunidades no mercado laboral e condicionadas, não apenas por uma simples questão de ingressos, quanto também de horários e de responsabilidades domésticas, que a encaminha (e ata, com o seu impacto sobre os hábitos ou a alimentação) à compra rápida e dirigida nas grandes superfícies em trajetos compatíveis com a jornada laboral.
Resulta interessante hoje repassar a atualidade daqueles tantíssimos livros radicais produzidos no contexto da Grande Crise dos anos trinta e também dos filmes durante tantos anos considerados naives, como aqueles na escola do Frank Capra, com as suas caricaturas icônicas de capitalistas ferozes, com despótico e antipático caráter a imagem de Morgan (magnificamente interpretados por Edward Arnold) e aqueles heróis populares que se resistem à loucura coletiva e permanecem céticos ante a religião capitalista.
Nesse sentido um dos meus filmes favoritos é You Can’t Take It with You (Do mundo nada se leva, 1938), aquela comédia romântica no contexto da Grande depressão, com choque entre os poderosos Kirby e os extravagantes Vanderhof–Sycamore. Visionada hoje, sabendo o que acontecia na época e aconteceu pouco depois, crise, destruição da classe média, despejos, especulação, ascenso dos fascismos, Guerra mundial; e o que hoje acontece, na Europa, na América, na Espanha, em Portugal, no Brasil, desassossega talvez mais do que faz rir.
És uma enciclopédia de conhecimento…