CARTA DE BRAGA – ‘Democracias e papel maché’- por ANTÓNIO OLIVEIRA

O indiano Idries Shah deixou um enorme espólio literário, tanto no conhecimento da filosofia oriental como do pensamento sufi e é considerado, por isso mesmo, um dos mais importantes elos de ligação entre o Oriente e o Ocidente.

Deixou publicados mais de uma trintena de títulos, salientando-se os ensaios sobre sufismo, psicologia, espiritualidade e ainda mais de três centenas de contos. Usufruiu da amizade e da admiração de grandes escritores ocidentais como Jorge Luis Borges, J.D. Salinger e Doris Lessing.

Por isso também, não resisto a resumir aqui, um dos seus contos mais conhecidos:

«Nasrudine, um personagem da tradição medieval sufi, tão tolo como sábio, convenceu um vizinho avarento a emprestar-lhe uma panela que o outro tinha por muito valiosa. Ele cedeu mas não se esqueceu de o avisar para lha devolver intacta.

Devolve-a no dia seguinte e, lá dentro estava uma outra panela, valiosa também mas mais pequena, ‘parida pela tua’, explica Nasrudine. O avarento salta de contente com o lucro do empréstimo.

Uns dias depois, torna a pedir a panela ao vizinho, mas passam os dias e Nasrudine sem a devolver. O avarento vai a casa dele que, vestido de luto, explica ‘Tal como disse que a panela tinha parido, também digo que a tua panela morreu! Chora agora, como te alegraste-então’»

É apenas um conto de raiz oriental, mas talvez sirva para documentar como o crescimento notório dos conflitos (cerca de 70 países envolvidos em guerras) como as correntes e os sentimentos anti-humanistas (mais de 750 movimentos insurgentes entre os quais se contam os da extrema direita) são testemunho do crescente desprezo pelas democracias (?) que ainda existem, bem como pelo menosprezo implícito e cada vez mais expresso às ligações com o que resta das classes em que elas se apoiaram!

E, no Mediterrâneo, a morte dos migrantes cresceu mais de 20%, depois do salviniano encerramento dos portos italianos.

Convém pensar que, de tudo isto, também não se pode desdenhar a ideia de que a política tende a transformar-se (ou a arrastar para) um permanente e confrangedor conflito de rua, entre Nasrudines habilidosos e bolsonaros, contra possidentes amorais e avarentos, onde nem razão nem factos terão qualquer importância.

Basta observar e confirmar as práticas dos promotores de fake news, ou os trumposos ataques a tudo o que é ou tenta ser jornalismo sério (o outro comanda ele!), que estão a tomar conta da informação e da comunicação mundiais.

Sabe-se também, em grande parte por isso mesmo, que os conflitos assumem hoje as mais variadas e desvairadas formas de ultranacionalismo, racismo, sexismo, xenofobia, rivalidades étnicas ou religiosas e outras mortíferas perversões.

Talvez todas estas ‘coisas’ sejam também a razão principal de uma afirmação recente do Papa Francisco, ‘Todas as ditaduras começaram por adulterar a comunicação, ao colocar a informação nas mãos de pessoas sem escrúpulos

E, por outro lado ainda, Roberto Saviani, autor do livro ‘Gomorra’ sobre a mafia napolitana que o levou a ser ameaçado de morte e a quem um tal salvini ameaçou tirar a protecção policial pelas críticas que lhe faz, dá mais valor àquela afirmação ao escrever ‘Cada palavra tem consequências, mas cada silêncio também, afirmou Sartre! O silêncio, hoje, é um luxo que não nos podemos permitir; o silêncio, hoje, é insuportável

Estão assim este mundo e este tempo, em que parece até já não haver lugar para a meia dúzia de palavras de uma simples e apropriada sentença de Idries Shah, ‘Dá sempre mais do que tiras!

Tirar já parece ser uma instituição, olhe-se para onde se olhar, por ousarem e conseguirem tirar e, muitas vezes roubar, o único predicado que se devia usar para designar um ser humano, a dignidade!

Os exemplos são permanentes e constantes e, para além de todos os trumposos que se arrogam a desvergonha da ética e da verdade, não se podem nem devem esquecer a Pensilvânia, a Irlanda, o Mediterrâneo, o Iémen, a Palestina e os conflitos reais e potenciais (Brasil?) por esse mundo fora, a maioria dos quais nos devia envergonhar a todos!

E quem dá hoje?

Os almoços grátis nunca passaram de um embuste embrulhado em papel maché, aquele que é feito de uma pasta de jornais amassados, rasgados e esmagados.

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

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