Depois do meu texto para a revista Nova Síntese, n.º 13, «O Neo-Realismo no Teatro de Amadores», que considerei também como o n.º 14 desta série, tendo em conta que o seu conteúdo se insere de igual modo neste modesto contributo para uma futura História do Teatro de Amadores, vou dar conta da construção de uma história incluída num dos espectáculos de «Os Hipopótamos», intitulado «Os Hipopótamos improvisam».
Eu era um dos responsáveis pelo Grupo da Biblioteca, dos Serviços Sociais da CGD e, nessa qualidade, tinha contacto com autores e editores e, um dia, o Luís, dono da Livraria Ler, em Campo de Ourique, disse-me: «Acabo de editar um livro que tenho aqui para te oferecer por saber que vais gostar». Receber um livro de presente é sempre agradável, mas um livro de que gostamos ainda o é mais.
O autor do livro era o Arsénio Mota, que eu sabia ser um jornalista do Jornal de Notícias por ter lido algumas das suas crónicas publicadas naquele jornal, mas desconhecia a sua obra literária. O título do livro era/é muito sugestivo: «Um País de Pequenos Burgueses – Burlescarias II» (1) e, iniciada a sua leitura, li-o de seguida, interrompendo a sua leitura apenas para as refeições, num fim-de-semana.
A vida palpita naquelas crónicas e a escrita do Arsénio era/é detentora de um português que nos cativa e de tal maneira que não resisti a entrar em contacto com o autor. Combinámos um encontro para a cidade do Porto, onde o Arsénio residia e reside, não consentindo ele que eu fosse para um hotel, sem me conhecer pessoalmente, dispensando-me o apartamento de que era proprietário na Rua de Monsanto, o que, confesso, me fez na altura muito jeito à carteira.
Iniciou-se aqui uma amizade profunda que ainda perdura, com quase 45 anos, tornando-se, a partir daí, num contacto permanente e que nos levou a vários projectos em conjunto.
Desse livro retirei uma excelente crónica, «Um Pícaro na cidade» (2), com a intenção de a transformar para palco, o que fiz, resultando um texto demasiado longo e com um ritmo que não me agradou.
Dei o resultado do meu trabalho ao Costa Ferreira, acompanhando o texto com o livro do Arsénio. Após uma leitura rápida, quase em diagonal, o Costa Ferreira diminuiu-lhe o tamanho e «destruiu» o que eu tinha feito em cerca de uma hora, resultando o texto que vou transcrever e que viria a ter uma aceitação muito boa não só do Grupo de Teatro, primeiro, mas depois também do público que assistiu ao espectáculo. A minha versão era mais fiel à crónica, mas não muito.
Primeiro, vamos ler a crónica do Arsénio Mota (3):
e agora vamos à adaptação teatral, que espero venha a ser apenas um exemplo de como fazer este tipo de exercício.
Começo por transcrever o texto de ligação de uma história para outra, da autoria de Costa Ferreira, de modo a introduzir o episódio teatral adaptado da crónica, declarando desde já que a infidelidade ao autor é flagrante, ou seja, roubou-se a ideia do Arsénio Mota e construiu-se um episódio teatral —construiu o Costa Ferreira— que na altura nos permitiu dizer o que pretendíamos, julgando eu que o pícaro de que fala o Arsénio podia muito bem ser o que apresentámos em palco, mas o Arsénio, após ver o espectáculo, disse-me ter gostado do que viu e não fez quaisquer reparos à nossa «traição», bem pelo contrário. Claro, seria (será) também possível seguir sem grandes alterações a crónica.:
Adaptação teatral de «Um Pícaro na Cidade»
(…)
Actor
Paciência! Afinal ela não passa de uma burguesa, eu julguei que o teatro a tinha libertado, mas enganei-me. No entanto há na nossa terra pessoas que têm a coragem de ser como são, mas é gente que não vê filmes comerciais, que não vai ao teatro de bulevar, que não foge da sua própria natureza. Vamos ver um tipo desses para nos refrescarmos.
(Sai)
Episódio de «O Vagabundo» (4)
VAGABUNDO
Das casas que ninguém construiu
me deram esta para morar:
COMENTADORA
ficou-me o céu como tecto (5)
e o vento como lençóis…
VAGABUNDO
Dos trapos que atiram fora
me permitiram um para eu vestir.
Das chuvas que caem do tecto do meu lar
me consentiram abafos para as quatro estações.
COMENTADORA
(Ah, se não fosse às vezes fazer sol…)
VAGABUNDO
Das mulheres que ninguém quer
me negaram a última de todas,
COMENTADORA
a última de todas as mulheres!
VAGABUNDO
E quando notaram que eu parecia um homem,
COMENTADORA
pois tinha
ouvidos para ouvir
e olhos para ver,
VAGABUNDO
em todas as estradas do mundo
me gritaram:
COMENTADORA
— Mendigo, vai ver o fim das estradas todas do mundo!
VAGABUNDO
E eu fui. Vi campos e praias, banhei-me nos rios, molhei os pés no mar. Subi a montes e desci a vales. Depois fiquei na cidade, na cidade onde há ruas em que raras vezes entra o vento e que me abrigam. Onde há muito lixo a que posso chamar meu. (Com grande ar) O lixo dos campos é mais pobre e por isso deprime-me. Além disso o camponês tem o hábito de se vestir o melhor que pode e parecer asseado. Hoje nas cidades há gente janota que se veste o pior que pode e gosta de parecer suja. Ficam portanto mais perto de mim. Eles compram calças e desbotam-nas para parecerem velhas, estas que eu trago são autenticamente velhas, portanto valem mais do que as deles; estes meus cabelos estão compridos e sujos a valer e eu juro que nenhum barbeiro elegante mos despenteou assim.
COMENTADORA
Porque será, que é moda a gente rica vestir-se de pobre?
(Depois de uma pausa em que o VAGABUNDO olha a plateia a sorrir)
VAGABUNDO
Eles já não têm a coragem de ser publicamente ricos. Se um camponês se lavar, se vestir o melhor que pode e quiser entrar num restaurante rico, põem-no na rua, ou pelo menos recebem-no mal, mas se eu entrar assim com as minhas «jeans» sujas, o meu «chandail» roto e a minha autoridade, eles julgam-me intelectual, chamam-me senhor doutor e dão tratos à memória para ver se se lembram de quem eu sou. O que é preciso é autoridade. Autoridade para parecer célebre, autoridade para que nos julguem poeta, autoridade para parecer rico. Ora autoridade é coisa que não me falta.
COMENTADORA
De cabeça levantada!… De olhar trocista!… Fitando o mundo num desafio!… Ele é capaz de avançar contra tudo e contra todos porque se sente senhor de um direito.
VAGABUNDO
Eu fui roubado muito antes de nascer, porque o meu avô já era pobre, por isso tenho direito a viver de graça. Hoje vou almoçar bem.
(Mímica dos empregados de mesa que arranjam dispositivo e servem almoço. Entretanto:)
COMENTADORA
O nosso homem lê a enorme lista do restaurante de luxo. Nomes estrangeiros, comidas desconhecidas, só percebe: acepipes, sopas, peixes, carnes. Aponta com o dedo para três coisas e logo lhe abrem diante dos olhos outra lista enorme que ele folheia: aperitivos, vinhos brancos, vinhos tintos, verdes, «champagnes»…
VAGABUNDO
Este aperitivo… este vinho branco… este vinho tinto… este Porto.
(Mímica do serviço e do almoço. Entretanto:)
COMENTADORA
Sabor estranho, sabor diferente, sabor que provoca o apetite e sempre mais apetite! Vinho frio, vinho quente, vinho que dá vontade de beber! Calor e coragem de viver, misturam-se no sangue do vagabundo. Uma alegria desconhecida sobe-lhe do estômago ao cérebro, corre-lhe pelo corpo no sangue aquecido. É nestes momentos que, aqueles que têm dinheiro para pagar a conta, sentem a verdadeira beatitude de viver. O Vagabundo sente mais coragem, sente uma certeza ainda maior de que está a comer comida que lhe foi roubada, a ele, ao pai dele, ao avô dele. Sente-se a tomar posse daquele peixe sem espinhas que se desfaz na boca de mistura com o molho rico e esquisito; daquela carne tenra, sem ossos, nem nervos, que se vai transformar em força dele, em saúde dele, em coragem de viver. Açucar derrete-se-lhe na boca aquecido pelo Porto velho. Os braços e as pernas estão entorpecidos, mas é um enturpecimento bom, que cheira a saúde, a força, a alegria de viver. Depois de tudo isto, que admira que ele tenha a coragem do escândalo? Desde que entrou no restaurante, até acabar a sua refeição, passou o tempo que não se sentiu nos ponteiros do relógio, que não se viveu em preocupação e esforço, tempo em que se sentiu satisfeito, farto, forte, firme, feliz… que admira pois que no fim se levante e como quem anuncia uma batalha que vai vencer, uma revolução que vai ganhar, uma sentença justa que por fim vai ser cumprida… ele diga…
VAGABUNDO (Erguendo-se. Alto)
Não tenho dinheiro para pagar a conta.
1.º CRIADO
O que é que V. Ex.ª disse?
VAGABUNDO
Não tenho dinheiro para pagar a conta.
2.º CRIADO
V. Ex.ª está a brincar connosco!
VAGABUNDO
Porquê?
(Ficam os três imóveis em quadro)
COMENTADORA
Os criados não podem acreditar. E no entanto ele está mal vestido, está vestido como um pobre. Ele é desconhecido naquele restaurante, é a primeira vez que ali entra, mas os criados não podem acreditar porque ele tem autoridade, a mesma autoridade que têm as pessoas que desde pequenas se habituaram a dar ordens a criados, que nunca sofreram privações, porque é que ele, sendo um miserável vagabundo, tem esta autoridade?
(Pausa)
(O quadro anima-se)
VAGABUNDO (Alto)
Já disse que não tenho dinheiro para pagar.
1.º CRIADO (Baixo)
Por favor não faça escândalo!
2.º CRIADO (Baixo)
Este restaurante pode perder umas centenas de escudos, mas não pode sofrer um escândalo.
1.º CRIADO
É um restaurante que só recebe gente conhecida.
2.º CRIADO
É um restaurante onde nunca entrou um vagabundo.
VAGABUNDO
Mas eu entrei.
1.º CRIADO
Pois então faça favor de sair.
2.º CRIADO
Pelas traseiras, que é mais discreto.
1.º CRIADO
Pela porta da cozinha, que é mais seguro.
2.º CRIADO (Alto)
Faça V. Ex.ª o favor…
1.º CRIADO
Queira V. Ex.ª passar.
2.º CRIADO
Por aqui é mais perto.
1.º CRIADO
Acompanha-o tu que eu vou atender a mesa n.º 2.
(Só a COMENTADORA fica iluminada)
COMENTADORA
Volto a perguntar: porque é que ele, tendo sido sempre um pobretana, teve autoridade para convencer os criados daquele grande restaurante que era um tão grande senhor, que nem tinha a necessidade de se vestir bem? Porque é que ele tem autoridade?
(Ilumina-se o VAGABUNDO)
VAGABUNDO
Porque sou um homem livre.
COMENTADORA
O que quer isso dizer?
VAGABUNDO
Não tenho vergonha de ser pobre, uso a pobreza como uma bandeira. Não tenho vergonha de ter fome, uso a fome como uma arma. Não tenho vergonha de ser. Sou o que sou e o que eu sou, quando se vê bem, é um remorso para a gente rica, é um escândalo e o escândalo num restaurante de luxo é mais caro para os donos do que foi o meu jantar. O escândalo estraga a digestão dos clientes ricos que sustentam aquele restaurante.
COMENTADORA
E se fores a um restaurante pobre?
VAGABUNDO
Aí já é diferente.
(Barulho de ambiente de um restaurante barato, ruído de pratos, vozearia)
VAGABUNDO (A uma CRIADA)
Joaquinzinhos com açorda e uma meia caneca de branco que estou com pressa.
CRIADA
Já vai… (Para o balcão) Sai uma açorda com «jaquinzinhos»… Meia caneca de branco da casa.
PATRÃO (Que fala para dentro)
Uma açorda com «jaquinzinhos»… Toma a caneca de branco.
(Muda de serviço)
COMENTADORA
Aqui come-se devagar. A comida tem o valor do esforço que custou a ganhar. Olha-se para a comida com respeito, olha-se para o prato cheio, com amor. Dói vê-lo esvaziar-se aos poucos. À hora da comida fala-se mais alto, não há contramestres a darem ordens, não há cadências a cumprir, não há obras a acabar, os minutos não contam, só conta a hora que se tem livre, hora sagrada, hora preciosa, que é preciso saborear lentamente.
VAGABUNDO (Parando de comer)
Os «jaquinzinhos» estalam na boca. Comem-se com espinhas e tudo, não se perde nada, são corpos de seres que viveram, que foram mortos e fritos para eu comer. Isso dá-me importância. Há quem mate seres vivos para me sustentarem, para sustentarem a fera que há dentro de mim.
COMENTADORA
Os homens ricos provocam guerras para enriquecerem mais, matam homens para conquistarem terras e mercados, os homens pobres matam carapaus para continuarem a viver. Isto é um escândalo de que os homens ricos não têm medo, é um escândalo antigo a que se chama história, que se conta com humor em certos livros, que se ensina nas escolas às crianças para elas se habituarem à ideia de um dia virem a matar homens para comerem carapaus.
(Mímica da comida. A CRIADA apresenta a conta)
VAGABUNDO
Não tenho dinheiro para pagar.
CRIADA
Ai, ai, ai! Deixe-se de fitas e pague a conta que é melhor para si.
VAGABUNDO
Já disse que eu não tenho dinheiro para pagar.
CRIADA
Quer que eu chame o patrão?
VAGABUNDO
Chame lá quem quiser. Dou um doce a quem me tirar do bolso um tostão.
( A CRIADA vai dizer qualquer coisa em voz baixa ao PATRÃO, que depois se aproxima do VAGABUNDO)
PATRÃO
Então que brincadeira vem a ser esta?
VAGABUNDO
Não é brincadeira nenhuma, não tenho dinheiro para pagar.
PATRÃO
Então você quer comer e não quer pagar?
VAGABUNDO
Não. Eu tenho de comer e não tenho com que pagar, o que é diferente.
PATRÃO
Vá trabalhar para a estiva que eu não sustento malandros.
VAGABUNDO
Não tenho trabalho sempre e tenho fome todos os dias.
PATRÃO
Basta de paleio: ou paga ou chamo a polícia.
VAGABUNDO
Não tem medo do escândalo?
PATRÃO
Qual escândalo qual carapuça. Escândalo é cada qual comer sem trabalhar.
(Silêncio de instantes)
VAGABUNDO (Erguendo-se devagar)
Nisso tem você muita razão, esse é o grande escândalo, mas nos restaurantes ricos o escândalo é ser-se pobre.
PATRÃO (Afastando-se)
Oh senhor guarda, faça o favor de vir aqui.
(Só a COMENTADORA)
COMENTADORA
No dia seguinte, o nosso homem responde no tribunal dos pequenos delitos.
(Escuridão de instantes)
(JUIZ à mesa, ESCRIVÃO, o VAGABUNDO, o PATRÃO, o DEFENSOR OFICIOSO)
DEFENSOR OFICIOSO (Enfático)
Aqui tem, Senhor Doutor Juiz, o quadro patético da vida deste homem, deste infeliz homem, deste pobre homem. Quer o cristianismo que a gente o considere nosso irmão. É pois baseado neste sentimento de fraternidade, que nos é imposto pela nossa qualidade de cristãos, que peço para ele a maior benevolência.
VAGABUNDO (Calmo)
Eu peço justiça.
DEFENSOR OFICIOSO (Autoritário e em voz baixa)
Cale-se, eu é que sou o seu advogado.
VAGABUNDO
Eu não o chamei.
DEFENSOR OFICIOSO
Sou o seu advogado oficioso, fui nomeado.
JUIZ
O queixoso, por favor…
PATRÃO
Saiba V. Ex.ª que sou eu, Senhor Doutor Juiz.
JUIZ
Ora, pelo que vejo dos autos, o que você quer é que lhe paguem a conta.
PATRÃO
Isso mesmo, Senhor Doutor Juiz. A minha casa não é o da Joana.
JUIZ
Muito bem. A quanto monta?
PATRÃO
Saiba V. Ex.ª que são quarenta e cinco mil réis, com o vinho incluído.
JUIZ
Portanto, se receber quarenta e cinco mil réis, o Senhor retira a queixa?
PATRÃO
Pois está bem de ver que sim.
JUIZ
Muito bem. Agora quero dirigir umas palavras ao réu: atendendo ao seu bom comportamento passado, ao facto de você não ter cadastro e ainda e sobretudo ao facto de nós vivermos numa sociedade cristã, onde a palavra caridade não deve ser uma palavra vã, eu vou dar-lhe mais uma oportunidade de se tornar um cidadão útil, trabalhador, respeitador da propriedade alheia, resignado com a sua sorte. Vou deixá-lo ir em paz e para isso… (Executando) dou do meu bolso ao queixoso a quantia de quarenta e cinco escudos para que ele retire a queixa.
DEFENSOR OFICIOSO (Entusiasmado)
V. Ex.ª é um magistrado modelar!
(Lentamente, o VAGABUNDO aproxima-se do JUIZ e dá-lhe uma bofetada. Grito de espanto de todos. Escuridão)
(Luz)
VAGABUNDO
Não, eu não quero a vossa caridade, eu não quero a vossa justiça cristã e doce.
COMENTADORA
Queres antes ficar preso?
VAGABUNDO
Preso por eles, continuo a ser um homem livre. Solto, na rua, pela caridade deles serei um homem preso à sociedade deles. Terei perdido autoridade que fez com que no restaurante de luxo me tivessem confundido com um homem rico. Quem dá compra a obediência de quem recebe. Eu disse que não a esta sociedade.
COMENTADORA
Ficarás só.
VAGABUNDO
Só como um maltês no descampado alentejano, só como todo o trabalhador explorado, como os desempregados todos do Mundo.
COMENTADORA
São milhões.
VAGABUNDO
Então eu não estou só.
COMENTADORA
Mas que podes tu fazer? Que utilidade teve a bofetada que deste ao Juiz?
VAGABUNDO
Teve para mim uma grande vantagem, eu fiquei igual a mim próprio, igual a todos os revoltados, igual a um maltês no descampado alentejano. [Só ele iluminado. Poema “Canção de «Maltês»”, de Manuel da Fonseca (6)].
Bati à porta do «monte»
porque sou um deserdado
CORO
E chovia nessa noite
como se o céu fosse um mar
entornando-se na terra.
COMENTADORA
— Quem abre a porta a desoras
morando num descampado?
VAGABUNDO
E continha o rafeiro que ladrava
na ponta do meu cajado.
CORO
Mas veio abri-la o lavrador
com a espingarda na mão,
VAGABUNDO
e pôs um olhar altivo
tão no fundo dos meus olhos
que as minhas primeiras falas
foram assim naturais:
CORO
— guarde a espingarda, senhor,
VAGABUNDO
sou um homem sem trabalho.
Fui secar-me à lareira.
E a filha do lavrador,
que era uma moça perfeita,
ficou a olhar de gosto
a minha manta rasgada
e o meu fato de «maltês».
COMENTADORA
E com licença do pai,
VAGABUNDO
Estendeu-me um canto de pão
com azeitonas maduras.
Não aceitei como esmola;
CORO
antes roubar que pedir:
VAGABUNDO
paguei com a melhor história
da minha vida sem rumo.
CORO
Foi uma paga de rei.
VAGABUNDO
Prà filha do lavrador,
tinha muito mais valia
a história que lhe contei
CORO
que o trigo do seu celeiro,
VAGABUNDO
pois estava a olhar de gosto
a minha manta rasgada.
COMENTADORA
E quando o fogo da lareira
ia aos poucos esmorecendo
VAGABUNDO
agradeci como é de uso;
despedi-me até mais ver
e fui dormir prò palheiro
que é palácio de «maltês».
Despedi-me até mais ver
CORO
que a gente da minha raça
mal o sol tenta nascer
ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
VAGABUNDO
Assim me deitei ao canto
a esperar pela manhã.
(Escuro)
ACTOR 1 (Só em cena),
É muito bonito dizer um poema de um grande poeta.
ACTRIZ 1 (Entrando)
É muito bonito dizer não a uma sociedade injusta.
ACTRIZ 2 (Entrando)
É muito bonito um homem julgar-se livre.
ACTOR 2 (Entrando)
É muito bonito um homem aguentar a fome.
ACTOR 3 (Entrando)
É muito bonito dizer não orgulhosamente.
ACTOR 4 (Entrando)
Mas é preciso antes de mais nada viver.
ACTRIZ 3 (Entrando)
Sem ser preciso dizer sempre que não.
ACTOR 5 (Entrando)
Sem ser preciso passar fome.
ACTRIZ 4 (Entrando)
Sem ser preciso estar só.
ACTRIZ 5 (Entrando, dirigindo-se a todos)
E quando é que nós vamos viver normalmente?
TODOS
Quando todos os homens forem livres.
ACTOR 4 (De costas para o público e para o Actor que fez de VAGABUNDO)
A tua história do vagabundo tem um defeito. É apenas a história de um homem só
ACTOR 1
De um homem que se escapa pelas malhas da rede.
ACTOR 2
Como uma sardinha mais pequena do que as outras.
ACTOR 3
Se abrirmos a rede e deixarmos escapar todas as sardinhas, os homens deixam de comer peixe.
ACTOR 1
Exactamente, se abrirmos a rede e deixarmos escapar todos os homens, os capitalistas deixam de nos comer a nós.
ACTOR 2
Mas isso é muito difícil.
ACTOR 5
Mas isso é que deve ser o nosso objectivo.
ACTOR 3
Para isso é preciso olhar para mais longe.
ACTRIZ 5
Não pensarmos só nos nossos problemas individuais.
ACTRIZ 1
Pensarmos na nossa freguesia.
ACTRIZ 4
Na nossa cidade.
ACTRIZ 3
No nosso país.
ACTRIZ 5
No nosso planeta.
ACTOR 3
É exactamente isso. Do outro lado do mar, lá nas Américas, homens que são sem dúvida camaradas nossos, fizeram e representaram um texto colectivo, que podia muito bem ter sido criado pelos nossos camaradas pescadores da zona de Sines.
ACTOR 4
Porque não havemos nós de fazer esse texto?
ACTOR 1
Aproveitamos essa oportunidade para prestarmos daqui homenagem ao povo explorado de Porto Rico.
ACTRIZ 5
E vamos ver como os nossos braços se tornam de repente tão compridos que, através do Atlântico, são capazes de abraçar os nossos camaradas da América.
ACTOR 4
Afinal, em Porto Rico o mar é tão azul como nas nossas costas.
ACTOR 1
Basta para isso que não o tapem com um céu cinzento.
(Segue-se episódio «Baía suja, baía negra», texto colectivo)
Portela (de Sacavém), 2019-05-21+
NOTAS
- Mota, Arsénio, «Um País de Pequenos Burgueses – Burlescarias II», Lisboa, Janeiro de 1975, edição da Livraria Ler, col. Maria da Fonte;
- Idem, págs, 49-53
- O livro pode ser consultado e lido na Biblioteca do Museu do Neo-Realismo, onde está uma boa parte do espólio do Arsénio Mota, doado por este ao Museu;
- Fonseca, Manuel da, «Poemas Completos», Lisboa, Abril de 1963, Portugália Editora, segunda edição aumentada, com prefácio de Mário Dionísio, pág. 33 (o poema é dito por duas personagens: Vagabundo e Comentadora);
- Aqui houve um alteração, ou seja, a Comentadora diz «ficou-lhe» e não «ficou-me» (desta alteração dei conta ao Manuel da Fonseca, que não levantou objecções);
- nota 4, pág. 44 (o poema é dito pelo Vagabundo, pela Comentadora e pelo Coro constituído pelos actores em cena).