Reconheço que mesmo sendo um leitor onívoro, a filosofia, os textos filosóficos e as obras dos grandes filósofos nunca me resultaram especialmente sedutoras. Cansam-me às poucas páginas, talvez pela densidade e a atenção que exigem, e a que obrigam a ir lendo com vagar. Passa-me o mesmo com os linguistas e a linguística teórica (talvez porque são filósofos especializados). Mergulhar nas páginas de qualquer escola ou doutrina leva-me indefectivelmente a uma sensação de sopor desesseintiano e claustrofobia.
Os únicos pensadores dos que até gosto, talvez mais pelas suas biografias ou estilo, são Ockham, Moro, Erasmo, Spinoza. Por sobre todos eles o meu preferido é Sanches, o cético, que me parece um avô galego, summum de pensamento paisano, relativista, empírico, materialista e eclético; que me conecta com Montaigne, Gondomar, Bacon e a sua época e que me permite entender e catapulta a Sarmiento, Feijó e os demais a seguir, diretamente.
Evidentemente não sou, podem deduzir nestas crônicas, nem platônico, nem aristotélico, nem cartesiano, nem nietzschiano. Via Onfray, tenho mais fascinação pelos pre-socráticos, os hedonistas e os antigos epicuristas. Admirador de Lucrecio, De rerum natura, exerce sobre mim uma rara atração.
Tudo a partir daquele dia em que topei num sebo em Montevideu uma edição cinzenta (Tito Lucrecio Caro, Naturaleza de las cosas : versión en prosa del poema ” De Rerum Natura”… La Bolsa de los libros, Claudio Garcia & cia-eds., Montevideo, 1942) com a tradução castelhana e um prólogo reciclado, assinado – com todas as conexões que implica – por Francisco Pi i Margall em 1892.
De um jeito ou outro acompanham-me também, e infiltram na minha escrita e pensamento, essas grandes e modernas metáforas que explicam um mundo sem deuses, aberto às combinações de sucessos e a diversidade dos atos e a fortuna.
Fascina-me, por isso, o termo Clinâmen, que muitos anos depois integrei mais plenamente, através do brilhante ensaio de Stephen Greenblatt (The Swerve: How the Renaissance Began, Bodley Head, 2011) e que comprei, ao acaso e de passagem, numa livraria de aeroporto, apesar da sua grotesca portada.
The Swerve, é a tradução do latim clinâmen, esse termo usado por Lucrecio para descrever os movimentos imprevistos das partículas e com eles as combinações de fatores que geram novas realidades.
O substantivo latino, derivado do verbo clīnāre (desviar, inclinar) serve de título a um episódio determinante na construção do pensamento humanista e na consolidação da nova estética, literatura e pensamento. A redescoberta de Lucrécio, sugere-nos o autor, causou uma virada de curso, que ajudou a criar os novos jeitos culturais renascentistas.
O longo poema re-encontrado, manuscrito na íntegra nalgum mosteiro centro europeu, pelo humanista e singular personagem da chancelaria vaticana, Poggio Bracciolini, liberou de novo no mundo essa filosofia fascinante, centrada na autonomia do ser humano e nas causas e naturezas das cousas.
Na atualidade, a crítica, historiografia, sociologia, tomou e retomou o termo latino, para se referir a uma mudança forte, a uma reação, a uma reinterpretação da tradição, do pensamento de autores e escolas, e de obras anteriores, num ponto crítico que estabelece senão uma rotura, uma virada definida.
Talvez no momento o início da virada seja imperceptível, mas no decurso do tempo a prolongação do movimento e as mudanças resultantes evidenciam uma transformação geral, uma mudança, até de fase, período, etapa histórica.
O interessante é que, normalmente, não se nos outorga a capacidade para ler e interpretar claramente o presente. Talvez, de facto, isto que vemos hoje, evidente como presente, é apenas o efeito de uma concatenação de passados, de histórias, de trabalhos particulares e esforços coletivos, aparentemente insucedidos ou invisíveis; acontecidos durante as últimas quatro décadas, numa realidade paralela.
Porém, que maravilha assistir de olhos abertos ao momento justo em que a conjunção de fatores evidencia uma mudança no rumo e natureza das cousas. E que oportunidade para rastrejar e tracejar cara atrás os fatores, os trabalhos, os episódios, as pessoas que o provocaram, não poucas vezes com pago e cicatrizes, na própria vida.
Enfim, em 2020, a língua galega sairá de novo de curso, ou re-entrará na velha órbita: após plenário e comunicado oficial da Real Academia Galega, celebraremos, como um clamor rompendo o silêncio ergueito, o Dia das Letras galegas, homenageando a vida, obra e pensamento de Ricardo Carvalho Calero, o grande e histórico defensor da causa reintegracionista galega.

Adorei, a sua lição de filosofia