A CRISE DO COVID 19 E A INCAPACIDADE DAS SOCIEDADES NEOLIBERAIS EM LHE DAREM RESPOSTA – VII – O ESTADO DESMANTELADO ENFRENTA UMA PANDEMIA, por ALEX PAREENE

 

The Dismantled State Takes on a Pandemic, por Alex Pareene

The New Republic, 12 de Março de 2020, (ver aqui)

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

 

 

O discurso televisivo de Donald Trump à nação na quarta-feira à noite sobre a pandemia do coronavírus falhou praticamente todos os testes de retórica política. Não tranquilizou o povo americano, nem o informou. Os mercados continuaram a sua desgraça, e a Casa Branca deu o extraordinário passo de corrigir (ou, no linguajar politico, “andar para trás”) três inverdades distintas que o presidente conseguiu expor, apesar de aparentemente se ater aos seus comentários preparados. Não que alguém, nesta fase, esperasse que o presidente estivesse à altura da ocasião. Tornou-se evidente que Trump e sua equipe vêem uma pandemia como um problema de mensagens que ameaça  tornar-se uma crise de liquidez. A ideia de que eles deveriam ter intervindo para conter o vírus é tão estranha para eles quanto a ideia de que eles agora têm a responsabilidade principal de mitigá-la.

O depoimento no Congresso no início desta semana foi um troca de opiniões  esclarecedora entre o deputado Andy Harris, um médico republicano e médico, e Robert Redfield, o diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças. Harris queria utilizar o seu tempo para questionar  as autoridades que estavam a testemunhar  perante o Congresso para atacar uma proposta democrata para reduzir os custos dos medicamentos para as pessoas no Medicare (Harris teme que isso venha a asfixiar a “inovação” no lucrativo mundo da produção  de vacinas) e para elogiar a capacidade superior do setor privado para lidar com tais crises.

O problema, porém, é que o setor privado ainda não fez nada para desacelerar o vírus. “A Quest e o LabCorp agora estão preparados para fazer [testes de coronavírus]”, perguntou Harris. “Teriam eles podido  preparar-se  mais cedo?”

“Sou  um clínico como você”, disse Redfield na  sua resposta, “penso ter  antecipado  que o setor privado se iria empenhar  e ajudar  do ponto de vista clínico a desenvolver os testes”. Ele terminou a sua resposta de forma dura: “Posso dizer-vos que, tendo eu vivido intensamente estas  últimas oito semanas, teria adorado que o sector privado estivesse totalmente envolvido desde há oito semanas.”

Aqui estavam dois homens a questionarem-se  em voz alta porque é que a realidade não estava conforme com a sua ideologia. Onde estava o sector privado, exatamente, durante estas oito semanas? Que estranho que estas empresas, cuja única responsabilidade é para com os seus acionistas, não tivessem compensado a incompetência desta administração.

Redfield parece ter sido escolhido  para dirigir o CDC não só porque era um eminente virologista, o que o fez ser considerado qualificado para o cargo, mas também por causa de sua política de linha dura, o que o tornou qualificado para servir nesta administração republicana. Mesmo na altura da sua nomeação, alguns especialistas tentaram avisar a administração que, por mais duvidosa que fosse a sua política, a sua total falta de experiência na administração da saúde pública era ainda mais perturbadora. A sua  visão política, ao que parece, é muito mais importante do que a sua experiência quando se trata de fazer funcionar uma organismo de importância  vital.

Redfield não estava a utilizar a sua experiência médica quando respondeu à questão de se  saber se os Estados Unidos seriam capazes de estabelecer o tipo de testes em  massa que a Coreia do Sul usou para conter a disseminação do vírus; ele estava a utilizar a sua posição política, não a científica. “Acho que estamos a tentar  manter a relação entre os indivíduos e os seus provedores de saúde”, disse ele.

É impossível determinar com precisão o que é que o levou a essa resposta. É ignorância da relação da maioria dos americanos com o sistema de saúde? (Um quarto dos americanos não tem médico de cuidados primários e, mesmo entre os segurados, as visitas aos médicos de cuidados primários têm diminuído durante anos, em grande parte devido aos seus custos). É um compromisso ideológico para defender o nosso sistema de saúde com fins lucrativos? Ou será apenas a tendência habitual das pessoas desta administração de afirmar alto e bom som para as câmaras que tudo está bem? Em breve, não vai importar. A fantasia de que tudo vai ficar bem está prestes a esbarrar contra uma realidade cada vez mais  inevitável. A única resposta verdadeira para a questão de quando o nosso governo será capaz de responder a uma pandemia com o vigor e a eficiência da Coreia do Sul é “quando chegarmos à construção desse governo”.

Talvez outro presidente republicano tivesse tratado disto de forma diferente. O presidente Marco Rubio provavelmente não estaria tão singularmente focado em tentar fazer a TV dizer que as coisas estão bem. Mas depois de dois mandatos de George W. Bush e três anos do Presidente Trump, há alguma razão para confiar que Rubio teria lidado com isto significativamente melhor?

É assim que os conservadores governam agora, e mesmo oito anos de gestão relativamente competente por uma administração presidencial liberal não foram suficientes para conter a tendência maior de negligência privada e desinvestimento público. No seu relatório anual de 2019 sobre o financiamento da saúde pública americana, o Trust for America’s Health calculou que “o orçamento do CDC caiu 10% na última década (AF 2010-19), depois de se ajustar à inflação”.

Muitos americanos parecem ainda acreditar que vivemos num país com instituições funcionais. Mesmo a “confiança” tão amplamente definida no Congresso e no governo entrou em colapso, essa crença persistiu: em 2017, com Trump no cargo, Pew ainda nos diz  que mais de 60% dos americanos acreditavam que o governo fez um bom trabalho “protegendo o meio ambiente e respondendo a desastres naturais”. De facto, muito do projeto conservador de corromper  ou de  secar financeiramente  as agências governamentais depende de uma crença quase comovente  na resiliência das instituições liberalistas construídas no século XX. Mesmo as pessoas que desmantelaram o governo provavelmente acreditavam, em algum nível, que o CDC poderia efetivamente enfrentar uma enorme crise de saúde pública, mesmo que o seu novo diretor não fosse qualificado e seu orçamento tivesse declinado durante  anos. Apesar do seu domínio do poder, o movimento conservador não se pode adaptar às circunstâncias criadas pela sua vitória sobre o Estado. Não ocorreu à direita a ideia de que uma série de palavras mais aterradoras do que “eu sou do governo, e estou aqui para ajudar” se tornasse em:  “eu sou do governo, e acho que antecipei que o setor privado se teria empenhado”.

Talvez haja apenas um funcionário competente e incorruptível no topo da burocracia da saúde pública do governo federal. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos teve todo o seu sistema de e-mail falhado porque o secretário está numa situação de conflito  com a pessoa que está ostensivamente no comando do Medicare. O governo adicionou acrescentou milhões de máscaras e respiradores Strategic National Stockpile em 2009, depois esqueceu-os e esqueceu de comprar mais. Cinco milhões dos respiradores N95 já estão fora do prazo de validade.

Na ausência de um governo federal funcional, a forma como a crise se desenrolará dependerá em grande parte de se você vive num estado bem administrado ou mal administrado. No Minnesota,  estão agora a começar os testes de contenção. A Califórnia está já a utilizar as suas reservas de emergência quanto a máscaras cirúrgicas e respiradores. A resposta pode ser menos eficaz, digamos, no Texas, onde, como Christopher Hooks escreve no Texas Monthly, a maior agência de saúde pública do estado trabalhou a partir de um escritório cheio de ratos e de intenso cheiro a mofo, tão recentemente quanto 2018.

Estas são todas as consequências previsíveis de dar poder a pessoas cujo único entendimento do papel do governo é proteger carteiras de investimento. Um longo boom de mercado foi aparentemente suficiente para convencer as pessoas que verificam regularmente os seus saldos 401(k) de que as coisas estavam mais ou menos bem; que, mesmo que o responsável fosse um palhaço, o país era resiliente e amplamente funcional. Acontece que, excluindo as suas forças armadas sobredimensionadas e a gestão da moeda de reserva mundial, os Estados Unidos dificilmente pode  ser considerado um país.

Alex Pareene é membro da redacção de The New Republic.

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