CRISE DO COVID 19 E A INCAPACIDADE DAS SOCIEDADES NEOLIBERAIS EM LHE DAREM RESPOSTA – LVII – A ILUSÃO DE UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA AMERICANA, por JAMES K. GALBRAITH

The Illusion of a rapid US recovery, por JAMES K. GALBRAITH

Project Syndicate, 9 de Junho de 2020

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

NEW YORK, NY – MAY 07: A Levi’s store stands locked along Broadway as the coronavirus keeps financial markets and businesses mostly closed on May 07, 2020 in New York City. Hospitals in New York City, which have been especially hard hit by the coronavirus, are just beginning to see a downturn in COVID-19 cases. (Photo by Spencer Platt/Getty Images)

A economia americana – baseada na procura global de bens avançados, na procura de produtos de luxo  por parte dos consumidores e no crescente endividamento das famílias e das empresas – era, em muitos aspetos, próspera. Mas era um castelo de cartas, e a COVID-19 fez com que este se desfizesse.

AUSTIN – À medida que os protestos afligem os Estados Unidos, os economistas de centro-esquerda do país olham com muita atenção para as suas bolas de cristal. Jason Furman, de Harvard, antigo presidente do Conselho de Conselheiros Económicos do Presidente norte-americano Barack Obama, avisou os Democratas – ansiosos por derrotar o Presidente Donald Trump nas eleições de Novembro – que “os melhores dados económicos … da história deste país” irão surgir imediatamente antes de os eleitores irem às urnas. Paul Krugman prevê igualmente uma “recuperação rápida”. O Gabinete do Orçamento do Congresso não partidário está de acordo. O mercado bolsista parece igualmente optimista.

A aritmética por detrás deste pensamento é simples. O gabinete sobre Orçamento,  CBO, espera que o PIB real diminua 12% no segundo trimestre, e 40% em termos anuais. Mas prevê uma recuperação de 5,4% no terceiro trimestre – o que resulta num crescimento anual espetacular de 23,5%.

Isso é certamente possível: já em Maio, os números do desemprego tomaram uma direção favorável, e parece que a quebra do segundo trimestre poderá não ser tão má como previsto. Mas, mesmo que o CBO tenha razão em ambos os aspetos, o PIB em tempo de eleições estaria sete pontos percentuais abaixo do seu nível do primeiro trimestre, e o desemprego estaria acima – possivelmente muito acima – dos 10%.

Vamos supor que os otimistas têm razão em relação ao terceiro trimestre. O que acontece a seguir? Será que a economia vai continuar alegremente, com rendimentos e empregos a recuperarem? Ou irá manter-se em depressão, exigindo uma nova revolução – ou, mais precisamente, um novo New Deal – para a salvar?

Para avaliar esta questão, Furman, Krugman e a CBO partilham um modelo mental. Eles consideram a pandemia como um choque económico, como um terramoto ou os ataques terroristas do 11 de Setembro. É uma perturbação de uma estrutura sólida, um desvio do crescimento normal. Para que a América volte a avançar, o que é sobretudo necessário é confiança, talvez ajudada por estímulos. Se os consumidores canalizarem a sua procura reprimida para novas despesas, dita este modelo de “estímulo ao choque”, então as empresas reanimarão o investimento e, em breve, tudo voltará a estar bem.

É assim que os principais economistas e decisores políticos de centro-esquerda têm pensado em recessões e recuperações desde pelo menos os anos 60, quando o Presidente John F. Kennedy e o seu sucessor, Lyndon B. Johnson, impuseram cortes nos impostos. Mas este tipo de análise ignora três grandes mudanças na economia dos EUA desde então: a globalização, o aumento dos serviços em  consumo e em  emprego e o impacto das dívidas pessoais e empresariais.

Nos anos 60, os EUA tinham uma economia equilibrada que produzia bens tanto para as empresas como para as famílias, a todos os níveis de tecnologia, com um sector financeiro bastante pequeno (e fortemente regulamentado). Produzia em grande parte para si própria, importando principalmente mercadorias.

Atualmente, os EUA produzem para o mundo, principalmente bens e serviços de investimento avançados, em sectores como o aeroespacial, as tecnologias da informação, o armamento, os serviços em pesquisas do setor  petrolífero  e as finanças. E importa muito mais bens de consumo, tais como vestuário, eletrónica, automóveis e peças para automóveis, do que há meio século atrás.

E enquanto os automóveis, televisores e eletrodomésticos impulsionaram a procura dos consumidores americanos nos anos 60, uma parte muito maior das despesas domésticas vai hoje (ou foi) para restaurantes, bares, hotéis, estâncias, ginásios, salões, cafés e casas de tatuagens, bem como para as aulas universitárias e as visitas de médicos. Dezenas de milhões de americanos trabalham nestes sectores.

Finalmente, as despesas das famílias americanas na década de 1960 foram impulsionadas pelo aumento dos salários e pelo aumento dos investimentos em habitação e lar.  Mas os salários estagnaram em grande medida desde pelo menos 2000, e os aumentos das despesas desde 2010 foram alimentados pelo aumento das dívidas pessoais e empresariais. Os valores das famílias estão agora estagnados, na melhor das hipóteses, e irão provavelmente cair nos próximos meses.

Os economistas do mainstream  prestam pouca atenção a estas questões estruturais. Em vez disso, parte mdo princípio de que o investimento empresarial responde sobretudo ao consumidor, cujas despesas são igualmente ditadas pelo rendimento e pelo desejo. A distinção entre “essencial” e “supérfluo” não existe. Os encargos da dívida são, em grande medida, ignorados.

Mas a procura de muitos bens de capital produzidos nos EUA depende agora das condições globais. As encomendas de novas aeronaves não irão recuperar enquanto metade dos aviões existentes estiver imobilizada. A preços correntes, a indústria petrolífera mundial não está a perfurar novos poços. Mesmo nos Estados Unidos,  embora os projetos de construção existentes possam ser concluídos, os planos para novas torres de escritórios ou pontos de venda a retalho não serão lançados em breve. E como as pessoas se deslocam menos, os carros durarão mais tempo, pelo que a procura por eles (e pela gasolina) irá diminuir. .

Perante a incerteza radical, os consumidores americanos pouparão mais e gastarão menos. Mesmo que o governo substitua durante algum tempo os seus rendimentos perdidos, as pessoas sabem que o estímulo é de curto prazo. O que não sabem é quando surgirá a próxima oferta de emprego – ou despedimento -.

Além disso, as pessoas fazem a distinção entre necessidades e desejos. Os americanos precisam de comer, mas, na sua maioria, não precisam de comer fora. Não precisam de viajar. Os proprietários de restaurantes e as companhias aéreas têm, portanto, dois problemas: não conseguem cobrir os custos enquanto a sua capacidade é limitada por razões de saúde pública e a procura diminuiria mesmo que o coronavírus desaparecesse. Isto explica por que razão muitas empresas não reabrem, mesmo que legalmente o  possam fazer. Outras estão a reabrir, mas receiam não aguentar por muito tempo. E os muitos milhões de trabalhadores do vasto sector dos serviços na América estão a aperceber-se de que os seus empregos não são, pura e simplesmente, essenciais.

Entretanto, as dívidas das famílias americanas – rendas, hipotecas e serviços públicos em atraso, bem como os juros sobre a educação e o crédito automóvel – têm continuado a aumentar. É verdade que os controlos de estímulo têm ajudado: até agora, os incumprimentos têm sido modestos e muitos senhorios têm sido acomodatícios. Mas como as pessoas enfrentam longos períodos com rendimentos mais baixos, continuarão a acumular fundos para garantir que possam pagar as suas dívidas fixas. Como se tudo isto não bastasse, a queda das receitas dos impostos sobre as vendas e sobre os rendimentos está a levar os governos estaduais e locais dos EUA a reduzir as despesas, agravando a perda de empregos e de rendimentos.

A situação económica da América é estrutural. Não é simplesmente a consequência da incompetência de Trump ou da má estratégia política da Presidente da Câmara, Nancy Pelosi. Reflete mudanças sistémicas ao longo de 50 anos que criaram uma economia baseada na procura global de bens avançados, na procura de bens de luxo  por parte dos consumidores e no crescente endividamento das famílias e das empresas. Esta economia foi próspera em muitos aspetos e proporcionou emprego e rendimentos a muitos milhões de pessoas. No entanto, era um castelo de cartas, e a COVID-19 fez com que ele se desmoronasse.

“Reabrir a América” é, portanto, uma fantasia económica e política. Os políticos incansáveis anseiam por uma recuperação alegre do crescimento, e a profundidade do colapso torna possível alguns números atraentes a curto prazo. Mas levá-los a sério só servirá de cenário para uma nova ronda de desilusões. Como demonstram os protestos nacionais contra o racismo sistémico e a brutalidade policial, a desilusão é, neste momento, o único grande sector de crescimento da América.

Fonte James K. Galbraith, Project Syndicate, The illusion of a rapid us recovery. Texto publicado em 9 de junho  de 2020 e disponível em:

https://www.project-syndicate.org/commentary/united-states-economy-illusions-of-reopening-by-james-k-galbraith-2020-06

 

2 Comments

  1. «Mas era um castelo de cartas—
    A distinção entre “essencial” e “supérfluo” não existe…»
    Transposto do Litle Portugal:
    Auto-estradas ruinosas, vias férreas na ruína, rotundas e rotundas erguendo;
    Aeroportos improvisados-Ota, Beja, Montijo…Castelo Branco, Covilhã projecto;
    Empresas de Meios Aéreos de vão de escada-meios aéreos militares congelados, visão paroquial oblige.
    Pois, as dívidas não são para pagar… na óptica do meio-engenheiro de forte prosa verbo-financeira,
    The Talented Mr Sócrates, seguidor do glorioso passado PS-PSD-CDS, e companheiros do circo S. Bento.
    Do Rei vau nu, desde os anos das glórias cavaquistas, ao ‘empreendedorismo’ Passos-Galamba do hidrogénio.
    A Desconstrução de um Estado. Ou o reverso do Nascimento de uma Nação.

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