

Where will they go?: The Great Climate Migration, por Abrahm Lustgarten e fotografias por Meridith Kohut
The New York Times Magazine, 23 de Julho de 2020
Selecção, tradução e adaptação por Júlio Marques Mota

Hoje em dia, 1 por cento do mundo é uma zona insuportavelmente quente, onde mal se pode viver. Em 2070 essa zona chegará a 19 por cento. Biliões de pessoas chamam casa a esta terra. Para onde irão?
No início de 2019, um ano antes de o mundo confinar completamente as suas fronteiras, Jorge A. sabia que tinha que sair da Guatemala. A terra estava a voltar-se contra ele. Durante cinco anos, quase nunca choveu. Depois choveu, e Jorge apressou-se em colocar as suas últimas sementes no chão.
O milho brotou em saudáveis caules verdes, e havia esperança – até que, sem aviso prévio, o rio inundou tudo. Jorge entrou nos seus campos à procura, em vão, de espigas que ainda podia comer. Depois, a partir daqui, fez uma última aposta desesperada, hipotecando a cabana de telhado de lata onde vivia com sua esposa e três filhos contra um adiantamento de 1.500 dólares em sementes de quiabo.
Mas depois da inundação, a chuva parou novamente, e tudo morreu. Jorge sabia então que se ele não saísse da Guatemala, a sua família também poderia morrer.
Mesmo quando centenas de milhares de guatemaltecos fugiram para o norte em direção aos Estados Unidos nos últimos anos, na região de Jorge – um estado chamado Alta Verapaz, onde montanhas com forte precipitação, cobertas de plantações de café e floresta densa e seca, dão lugar a vales mais amplos e suaves – uma grande parte dos seus moradores decidiu ficar.
Agora, porém, sob uma confluência implacável de secas, inundações, falências e fome, eles também começaram a sair. Quase todos aqui são sujeitos a algum grau de incerteza sobre de onde virá a sua próxima refeição.
Metade das crianças está cronicamente faminta, e muitas estão, com pouca idade, com os ossos fracos e as barrigas inchadas. As suas famílias estão todas enfrentando a mesma terrível decisão que enfrentou Jorge.

O estranho fenómeno climático que muitos aqui culpam pelo sofrimento – a seca e o súbito padrão de tempestade conhecido como El Niño – é esperado que se torne mais frequente à medida que o planeta aquece. Muitas partes semiáridas da Guatemala em breve serão mais parecidas com um deserto do que com outra coisa.
Espera-se que a chuva diminua em 60% em algumas partes do país, e a quantidade de água que reabastece os rios e mantém o solo húmido cairá em até 83%.
Os investigadores prevêem que, até 2070, o rendimento de algumas culturas básicas, no estado em que Jorge vive, diminuirá em quase um terço.
Os cientistas aprenderam a prever tais mudanças por todo o mundo com surpreendente precisão, mas – até recentemente – pouco se sabia sobre as consequências humanas dessas mudanças. Como as suas terras lhes falham, centenas de milhões de pessoas da América Central ao Sudão e ao Delta do Mekong serão forçadas a escolher entre fugir ou morrer. O resultado será quase certamente a maior onda de migração global que o mundo tem visto.
Em Março, Jorge e seu filho de 7 anos emalaram um par de calças, três pólos, roupas interiores e uma escova de dentes num único saco fino de nylon preto com cordão de amarrar. O pai de Jorge tinha penhorado as suas quatro últimas cabras por 2.000 dólares para ajudar a pagar a viagem, outro empréstimo que a família teria que pagar com juros de 100%. O coiote [NT: coiote em calão = engajador] ligou às 22h – eles iriam naquela noite. Não faziam ideia quanto ao sítio onde iriam parar ou o que fariam quando lá chegassem.
Da decisão à partida, foram três dias. E depois eles tinham partido.

Durante a maior parte da história da humanidade, as pessoas têm vivido dentro de uma escala surpreendentemente estreita de temperaturas, nos lugares onde o clima suportava a produção abundante de alimentos. Mas à medida que o planeta aquece, essa faixa está a mudar-se repentinamente para o norte.
De acordo com um estudo recente da revista Proceedings of the National Academy of Sciences[1], o planeta pode ver a conhecer um aumento de temperatura maior nos próximos 50 anos do que nos últimos 6.000 anos juntos. Em 2070, o tipo de zonas extremamente quentes, como no Saara, que agora cobrem menos de 1% da superfície terrestre, poderia cobrir quase um quinto da terra, colocando potencialmente uma em cada três pessoas vivas fora do nicho climático onde os seres humanos prosperam há milhares de anos.
Muitos cavarão, sofrendo com o calor, a fome e o caos político, mas outros serão forçados a seguir em frente. Um estudo de 2017 em Science Advances[2]descobriu que, até 2100, as temperaturas poderão subir ao ponto de apenas algumas horas fora ao sol em alguns lugares, incluindo partes da Índia e da China Oriental, “resultará em morte até mesmo para o mais apto dos humanos”.
As pessoas já estão a começar a fugir. No sudeste asiático, onde as chuvas de monções cada vez mais imprevisíveis e a seca tornaram a agricultura mais difícil, o Banco Mundial (3) aponta para mais de oito milhões de pessoas que se mudaram para o Médio Oriente, Europa e América do Norte.
No Sahel africano, milhões de pessoas do meio rural têm-se deslocado em direção à costa e às cidades, no meio de secas e de colapsos generalizados de safras. Se fogem para longe antes de se atingir a escala que a pesquisa atual sugere ser provável, isso representará um vasto reordenamento das populações do mundo.
A migração pode trazer grandes oportunidades não só para os migrantes, mas também para os lugares para onde eles vão. Como os Estados Unidos e outras partes do Norte global enfrentam um declínio demográfico, por exemplo, uma entrada de novas pessoas face a uma força de trabalho envelhecida pode ser benéfica para todos. Mas garantir esses benefícios começa com uma escolha: As nações do Norte podem aliviar as pressões sobre os países que mais rapidamente aquecem, permitindo que mais migrantes se desloquem para o Norte através das suas fronteiras, ou podem isolar-se a si próprios, prendendo centenas de milhões de pessoas em lugares que são cada vez mais inacessíveis..
O melhor resultado exige não só boa vontade e uma gestão cuidadosa das forças políticas turbulentas; sem preparação e planeamento, a escala de mudança pode revelar-se radicalmente desestabilizadora. As Nações Unidas e outros advertem que, no pior dos casos, os governos das nações mais afectadas pelas mudanças climáticas poderiam cair como regiões inteiras em guerra.
As escolhas políticas severas já estão a tornarem-se evidentes. Enquanto os refugiados saem do Médio Oriente e do Norte da África para a Europa e da América Central para os Estados Unidos, um retrocesso anti-imigração tem impulsionado a que governos nacionalistas alcancem o poder em todo o mundo. A alternativa, impulsionada por uma melhor compreensão de como e quando as pessoas se moverão, serão os governos que se estão a preparar ativamente, tanto material como politicamente, para as maiores mudanças que estão por vir.
No Verão passado, fui à América Central para saber como pessoas como Jorge vão reagir às mudanças nos seus climas. Segui as decisões das pessoas na Guatemala rural e as suas rotas para as maiores cidades da região, depois para o norte, através do México até ao Texas. Encontrei uma necessidade surpreendente de alimentos e testemunhei as formas como a competição e a pobreza entre os deslocados romperam as fronteiras culturais e morais. Mas o quadro no terreno está disperso. Para compreender melhor as forças e a escala da migração climática numa área mais ampla, o The New York Times Magazine e a ProPublica juntaram-se ao Centro Pulitzer num esforço para modelar, pela primeira vez, a forma como as pessoas se deslocarão através das fronteiras.
Nós concentramo-nos nas mudanças na América Central e usamos dados climáticos e de desenvolvimento económico para examinar uma série de cenários. O nosso modelo projeta que a migração irá aumentar ano após ano, independentemente do clima, mas que a quantidade de migração aumenta substancialmente à medida que o clima muda. Nos cenários climáticos mais extremos, mais de 30 milhões de migrantes dirigir-se-ão para a fronteira dos EUA ao longo dos próximos 30 anos.
Os migrantes deslocam-se por muitas razões, é claro. O modelo ajuda-nos a ver que os migrantes são movidos principalmente pelo clima, descobrindo que eles representariam até 5% do total. Se os governos tomarem medidas modestas para reduzir as emissões climáticas, cerca de 680.000 migrantes climáticos poder-se-ão mudar da América Central e do México para os Estados Unidos entre agora e 2050. Se as emissões continuarem sem diminuir, levando a um aquecimento mais extremo, esse número salta para mais de um milhão de pessoas. (Nenhum desses números inclui imigrantes indocumentados, cujo número poderia ser duas vezes maior).
O modelo (4) mostra que as respostas políticas às mudanças climáticas e à migração podem levar a futuros drasticamente diferentes.
Num cenário, a globalização – com as suas fronteiras relativamente abertas – continua.
À medida que o clima muda, a seca e a insegurança alimentar expulsam do campo os residentes rurais no México e na América Central.
Milhões buscam alívio, primeiro nas grandes cidades, estimulando uma urbanização rápida e cada vez mais esmagadora.
Depois, eles movem-se mais para o norte, empurrando o maior número de migrantes para os Estados Unidos. O número projectado de migrantes que chegam da América Central e do México aumenta para 1,5 milhões por ano até 2050, de cerca de 700.000 por ano em 2025.
Nós modelizámos outro cenário no qual os Estados Unidos endurece as suas fronteiras. As pessoas voltam atrás, e o crescimento económico na América Central desacelera, assim como a urbanização.
Neste caso, a população da América Central aumenta, e o vazio rural inverte-se à medida que a taxa de natalidade aumenta, que a pobreza se aprofunda e que a fome cresce – tudo isso com tempo mais quente e menos água.
Essa versão do mundo deixa dezenas de milhões de pessoas mais desesperadas e com menos opções. A miséria reina, e grandes populações ficam enfiadas em verdadeiras ratoeiras.
Como com muito trabalho de modelização, a questão aqui não é fornecer previsões numéricas concretas, mas sim vislumbrar possíveis futuros. O movimento humano é notoriamente difícil de modelizar, e como muitos pesquisadores climáticos têm notado, é importante não acrescentar uma falsa precisão às batalhas políticas que inevitavelmente cercam qualquer discussão sobre migração. Mas o nosso modelo oferece algo potencialmente muito mais valioso para os decisores políticos: um olhar detalhado sobre o espantoso sofrimento humano que será infligido se os países fecharem as suas portas.
Nos últimos meses, a pandemia de coronavírus ofereceu um teste sobre se a humanidade tem a capacidade de evitar uma catástrofe previsível – e prevista -. Alguns países têm-se saído melhor que outros. Mas os Estados Unidos falharam.
A crise climática irá testar novamente o mundo desenvolvido, em maior escala, com maiores riscos. A única forma de mitigar os aspetos mais desestabilizadores da migração em massa é preparar-se para ela, e a preparação exige uma imagem mais nítida de para onde e quando é que provavelmente irão as pessoas.
(continua)
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[1] Veja-se: Future of the human climate niche. Texto disponível em:
https://www.pnas.org/content/117/21/11350
[2] Veja-se Deadly heat waves projected in the densely populated agricultural regions of South Asia. Texto disponível em:
https://advances.sciencemag.org/content/3/8/e1603322
(4) – Ver no original
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