Espanha – O fracasso do atual modelo autonómico. Por Antonio Franco

Espuma dos dias Espanha fracasso do modelo autonómico

Seleção e tradução de Francisco Tavares

Antonio Franco Por Antonio Franco

Publicado por elPeriodico em 20/08/2020 (ver aqui)

 

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O sistema de saúde não nos falhou por não estar centralizado mas sim pela má qualidade da sua descentralização

 

Embora faça parte do amplo grupo de cidadãos que pensa que a Espanha é uma realidade plurinacional que só conseguirá estabilidade e operacionalidade articulando cuidadosamente a sua heterogeneidade, também sou dos que consideram que o coronavírus demonstrou, sem a menor ambiguidade, o fracasso estridente do modelo de Estado das autonomias. Pelo menos, do modelo tal e como o temos tido estruturado até agora.

Basta ver o que nos está a acontecer com a pandemia. Do ponto de vista sanitário, uma das competências mais descentralizadas no nosso modelo, o desastre é evidente.

Não só somos o país europeu com mais contágios, mas também aquele que está a reagir mostrando mais impotência.

As entidades internacionais mais prestigiadas nesta área já estão a estudar não apenas as características dos nossos contágios e da escandalosa mortalidade que tem acompanhado esses contágios, mas também o exemplo negativo das contradições que temos cometido com o nosso esquema político organizado em autonomias na prevenção, nas compras de material sanitário, na gestão quotidiana, na descoordenação entre territórios, na má administração das técnicas e ferramentas de combate, assim como a falhada política de informação junto da população.

Se num assunto científico como este posso dizer algo simplista, direi que fomos e estamos a ser os piores.

Embora aqui não tenhamos tido o flagelo suplementar de quem noutras latitudes tem sofrido com Bolsonaro, Trump ou Boris Johnson, temos ganho muito pouco por estar no centro da próspera e racional União Europeia. E do mesmo modo, após o fracasso sanitário continuamos com o mesmo objetivo ou algo semelhante em relação às consequências socio-económicas do problema.

A relação entre isso e a nossa divisão em autonomias tem um argumento: tudo funcionou menos mal – os números estão aí – enquanto o governo central administrou diretamente a crise. Fê-lo apoiado naquele estado de alarme tão vituperado por quase todas as autonomias, cujos dirigentes diziam que se lhes deixassem a eles a condução do processo conseguiriam melhores resultados. Logo depois a realidade veio desmenti-los.

Sabemos que naquelas circunstâncias iniciais o governo de Pedro Sánchez tão pouco atuou muito bem. Mas quase tudo o que aconteceu depois mostrou ser ainda menos operativo. E encorajado , ainda por cima, por um pecado coletivo de cobiça: fechar os olhos e confiar desmesuradamente na sorte ante o risco de um ressurgimento rápido que pressupunha acelerar o regresso da mobilidade turística sem ter previamente estabelecido normas preventivas gerais compreensíveis para toda a gente e aplicadas implacavelmente.

tudo funcionou menos mal – os números estão aí – enquanto o governo central administrou diretamente a crise

Este não pretende ser de modo nenhum um artigo de rancor, mas deve-se atribuir algumas responsabilidades pelo que se passou.

A transição fez coisas magníficas, mas a instauração do Estado das autonomias sem desenhar e ligar previamente os instrumentos para que funcionasse foi um imenso erro histórico. Nem se estabeleceu uma coordenação horizontal normal e estável entre elas, nem foram fixados sistemas de autocontrole democrático coletivo, nem se estruturou um conjunto eficiente em torno das responsabilidades gerais da administração central. Devemos estes buracos negros, entre outros, a Felipe González, Fraga, Aznar e os principais dirigentes autonómicos (como Pujol e Arzalluz).

Elevados a grandes responsabilidades, todos eles sucumbiram a uma pulsão continuista e de tirar vantagem em relação ao seu poder a curto prazo, a continuidade sem data de caducidade da filosofia centralista que sobrevivia sob os mandatos das mudanças autonómicas.

Parcelas desligadas

Acreditem: o sistema de saúde não nos falhou agora por não estar centralizado mas pela má qualidade da sua descentralização, em parcelas territoriais desligadas entre si.

Temos razão os que denunciámos o importante que foi não ativar o Senado nem sequer como câmara territorial. Aquelas e outras personalidades que não se dignaram sequer em converter o Senado numa câmara de representação e coordenação dos territórios foram muito míopes. E não foi apenas o sistema de saúde que ficou irracionalmente descerebrado entre territórios com problemas semelhantes mas sem mecanismos para os enfrentar conjuntamente (vimo-lo no exemplo da fronteira de Huesca e Lleida durante o primeiro surto). Sem Senado ficaram sem quadro de resolução coerente nada menos que as questões comuns do financiamento autonómico, deixou-se a porta aberta a contínuas guerrilhas fiscais entre territórios e abandonou-se, à mercê de subjetividades pontuais, partidárias e clientelares, a solidariedade interterritorial. Todas as arbitragens continuavam em mãos do poder central, que às vezes convocava reuniões quase papais do presidente do governo com os bispos autonómicos sentados num estrado inferior…

O Covid demonstrou que se delineou um modelo que depois, por incompleto, na prática funciona frequentemente contra os interesses dos cidadãos em todo o tipo de assuntos. Um modelo que só favorece as demagogias dialéticas de quem tem alma de reizinho da tribo enquanto ajuda muito pouco aos presidentes que procuram soluções racionais e realistas para os problemas coletivos ou específicos que se vão colocando. Sendo uma situação difícil, se encurralarmos os nostálgicos daqueles apelidos tão ilustres está bastante clara a direção e a qualidade da retificação descentralizadora que devemos empreender a partir de agora.

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O autor: Antonio Franco [1947 – ], jornalista, diretor fundador de El Periódico de Catalunya durante mais de 20 anos e ex-diretor adjunto de El País.

 

2 Comments

  1. Se Portugal – e muitíssimo bem – não devia nem podia ter colónias – que razão haverá para Castela poder tê-las. A ocupação, pela força, que Castela exerce, como exemplos mais frisantes, sobre a Galiza. as Astúrias, a Catalunha e a Andaluzia é um atentado à Democracia e ao Livre Direito de Independência de todas os Povos. Qualquer dessas Nacionalidades submetidas a Castela tem o direito de ver-se representada directamente na Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU)CLV

  2. Não vou aqui aprofundar o tema, que tem muita literatura sobre ele. Não falo já do historiador Henry Kamen (ver, por exemplo, España y Cataluña, Historia de una pasión, ed. La Esfera de los libros, 2014), mas não posso deixar de referenciar o geógrafo e historiador Yves Lacoste que, no seu livro A Geopolítica do Mediterrâneo de 2006 (edições 70, 2008), entre outras, faz uma extraordinária resenha da história de Espanha (capítulo 2, pag. 81 e segs), deixando uma leitura da realidade que nada tem que ver com simpllismos tipo Castela coloniza outros territórios dentro da Península Ibérica.

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