OU DAMOS CABO DAS NOSSAS DÍVIDAS PANDÉMICAS OU SÃO AS NOSSAS DÍVIDAS PANDÉMICAS QUE DÃO CABO DE NÓS, por CLIO CHANG

Se milhões não tinham esperança de pagar as suas contas antes da pandemia, e milhões mais não podem pagar agora, o que resta a fazer senão dizer não?

 

Either We Break Our Pandemic Debts or Our Pandemic Debts Break Us, por Clio Chang

The New Republic, 1 de Março de 2021

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota 

 

Quando a pandemia se desencadeou no   ano passado, Richard Ault, de 53 anos de idade, estava numa situação difícil. Técnico de longa data nas  novas tecnologias  em Silicon Valley, Ault tinha feito uma pausa da indústria há alguns anos para trabalhar como professor numa escola pública. Quando tentou regressar ao sector tecnológico em 2018, teve dificuldade em conseguir um emprego, apesar das suas décadas de experiência. “Era um tiro no escuro mesmo quando a economia estava boa”, disse Ault. “Tenho o cabelo muito grisalho”.

Ault queimou as suas poupanças no ano anterior à pandemia, em parte porque não conseguiu encontrar trabalho e em parte porque um transtorno por uso de  substâncias ilícitas no passado significava que não lhe restavam muitas poupanças para começar. Ele estava a lutar para pagar as dívidas que tinha acumulado. Mas acabou por conseguir alguns pequenos trabalhos  como professor substituto e motorista de Lyft. A sua habitação  em Mill Valley, nos arredores de São Francisco, tinha  um preço razoável para a zona  e suficientemente grande para acolher os seus dois filhos adolescentes. As coisas eram difíceis  mas suficientemente estáveis. Mas à medida que a pandemia se espalhava, Ault perdeu os seus empregos como professor e deixou de conduzir para a  Lyft por preocupação com a sua saúde. Mesmo com o seguro de desemprego, não podia pagar as mercearias e a renda de casa. “Ainda me faltavam algumas centenas todos os meses”, disse ele. “Usei os meus cartões de crédito para cobrir essa lacuna”.

Por fim,  Ault mudou-se do seu apartamento para o sofá de um amigo; ele ainda deve ao seu senhorio três meses de renda atrasada, totalizando quase 7.000 dólares. “Senti a profundidade do desespero no Outono do ano passado, quando percebi que já não podia receber os meus filhos”, disse Ault. “Isto estava a ir ao fundo do poço”. O seu carro, a única coisa que lhe pertence, teve uma falha no motor no Outono passado que acabou por custar $5.000 com a reparação. No último ano, a dívida do cartão de crédito de Ault duplicou, e agora a sua dívida doméstica total paira algures em torno dos 60.000 dólares. Ele não vê forma de a pagar. Está atualmente a trabalhar a tempo parcial na REI e  poupando dinheiro para um advogado que o possa  ajudar a pedir a declaração de situação de falência.

“É ridículo para mim pensar que $1.000 a cada família neste país vai salvar o país”, disse Ault sobre os cheques de apoio financeiro  esporádicos do governo, especialmente vivendo numa cidade com um custo de vida tão elevado. “Isto é como estar a rearranjar as cadeiras de convés no Titanic”.

Ault é um dos milhões nos Estados Unidos que enfrentam uma crise semelhante. A dívida das famílias, que tem vindo a aumentar na última década, atingiu uns astronómicos 14,56 milhões de milhões  de dólares no final do ano passado. À medida que a dívida de arrendamento e hipoteca se acumula, quase um terço das pessoas no país está  em risco de despejo ou execução hipotecária. Enquanto a dívida de cartões de crédito, que se situa agora em 820 mil milhões de dólares, diminuiu globalmente, em parte devido a um declínio nas despesas, cerca de 51 milhões de pessoas ainda viram a sua dívida aumentar durante a pandemia. A dívida de empréstimo estudantil, o segundo maior tipo de dívida das famílias após as hipotecas, continua a disparar, atingindo quase 1,6 milhões de milhões de dólares.

A administração Biden prorrogou moratórias sobre despejos e pagamentos de empréstimos estudantis, mas estes são adiamentos, não correções. Estas dívidas vencerão em breve. A desastrosa resposta pandémica da administração anterior, incluindo pagamentos de desemprego em atraso ou nunca recebidos que deixaram pessoas sem dinheiro durante meses, criou uma catástrofe no terreno. Em áreas que enfrentam desastres climáticos, como o Texas, os residentes estão a ver enormes contas de serviços públicos a somarem-se às dívidas existentes. E agora, com a chegada da época fiscal, as pessoas que receberam subsídios de desemprego podem estar a olhar para faturas surpresa de impostos  sobre os seus subsídios. Estas são crises crescentes que estão a chegar a um ponto crítico.

Entretanto, um dos primeiros grandes confrontos entre a nova administração e a base progressista que relutantemente a ajudou a ser eleita, tem sido em torno do perdão da dívida dos estudantes. Biden já rejeitou uma proposta para cancelar 50.000 dólares em empréstimos estudantis, dizendo que não queria gastar dinheiro em “pessoas que foram para Harvard e Yale e Penn”. (De acordo com a CNBC, apenas 0,3 por cento dos estudantes federais devedores  vão para as faculdades da Ivy League).

Embora o ano passado tenha sido um pesadelo, sem um fim real à vista, também forçou um debate necessário sobre as nossas ideias e suposições em torno da dívida. Se milhões de pessoas não tinham esperança de pagar as suas contas antes da pandemia, e mais milhões não a podem pagar agora, como é que faz  sentido  um sistema que faz as pessoas circularem através de uma dívida cada vez maior? A resposta que muitos estão a obter  é que nós não podemos. A questão que se coloca agora, hoje, amanhã ou depois,  não é como é que pagamos o que devemos, mas sim o que é que  o nosso governo  nos deve  e como é que vamos cobrá-lo.

Para muitas pessoas, este ano foi definido não só pela própria pandemia, mas também pela dívida que lhe está associada. O montante médio  por pessoa com divida em atraso no pagamento das sua renda  é de 5.600 dólares, o que corresponde a cerca de quatro meses no total de renda por pessoa. Um terço dos cheques de estímulo emitidos pelo governo em Março passado destinou-se diretamente ao pagamento de dívidas, e não à aquisição de bens ou serviços. Muitos dos que têm vindo a acumular constantemente contas por pagar ao longo do último ano estão agora a enfrentar uma crise iminente, uma vez levantadas as moratórias.

Alguns financiadores estão a fazer tudo o que podem para tentar cobrar: Cea Weaver, uma organizadora da Housing Justice for All com sede em Nova Iorque, disse-me que um inquilino em situação de não pagamento do arrendamento lhe comunicou  que o seu senhorio tentou debitar um ano inteiro de renda da sua conta bancária.

“Se não houver apoio para estas pessoas – suspensão do serviço da dívida, suspensão das rendas – vai-se ter de assistir a toda uma grande mudança de comportamento   da sociedade”, disse-me Michael Hudson, economista da Universidade do Missouri, Kansas City, apontando os despejos em massa como apenas um exemplo da convulsão. Sem saldar a dívida das pessoas e sem fazer com que se  reequilibrem financeiramente, Hudson argumenta que a recuperação económica será lenta à medida que as pessoas, que utilizaram o seu estímulo recebido pela  pandemia para pagar aos credores, gastam cada vez mais do seu rendimento no pagamento da dívida. Desta forma, a abolição da dívida é uma boa política económica. E os impactos são bastante imediatos: Um relatório de 2018 do Instituto Levy estima que a anulação da dívida dos estudantes poderia aumentar o produto interno bruto real em uma média de 86 mil milhões a 108 mil milhões de dólares por ano.

Os números da dívida das famílias americanas, por si só, são tão grandes  que se tornam quase incompreensíveis; os números enormes   também obscurecem o facto de a dívida neste país estar distribuída de forma desigual. O carácter da dívida nos Estados Unidos é moldado por uma história de práticas de empréstimo discriminatórias e disparidades na riqueza geracional. Quatro anos após ter terminado a sua formação e obtido o grau de licenciado, os mutuários negros detêm quase o dobro da dívida dos seus homólogos brancos; as mulheres negras detêm uma porção especialmente grande da dívida dos estudantes. Em 2016, o património líquido de uma família negra era 10 vezes menor do que o de uma família branca.

Mas tudo isto se traduz de forma aguda na vida quotidiana das pessoas. Richelle Brooks, uma mãe negra solteira de 33 anos de idade com  duas crianças no ensino médio, disse-me que tem uma dívida de 236.000 dólares em empréstimos estudantis. A pandemia colocou-a mais profundamente no buraco, mas Brooks já se encontrava numa situação insustentável. Estudante universitária de primeira geração, ela começou por contrair empréstimos para ajudar a pagar as suas despesas de subsistência enquanto estava na escola. Ela tinha fé na ideia, como muitos de nós somos ensinados a acreditar, de que uma boa educação iria desbloquear a segurança económica: Brooks obteve um diploma de associado, bacharelato, credencial de ensino, mestrado e doutoramento – e verificou que não era assim, sempre que tentava arranjar um emprego que pagasse o suficiente para a sustentar e aos seus dois filhos. Na  maioria das vezes, encontrou becos sem saída. “Cada vez que como graduada encontrei  um emprego, não era com  um salário condigno”, disse Brooks. Ela falou-me uma vez do malabarismo que fez com  cinco empregos  para conseguir um emprego como mãe solteira. “Um professor a ganhar 60.000 dólares em L.A. – não se pode fazer nada com isso”.

Pouco antes da pandemia, Brooks e os seus dois filhos foram obrigados a voltar para a casa da sua mãe. Ela encontrou um emprego como professora este ano, mas é uma redução de salário de 20.000 dólares relativamente ao seu último trabalho como administradora. Brooks acabou por se ligar ao Debt Collective, um sindicato de devedores que lutava para abolir a dívida, e começou a organizar-se com eles no ano passado. Agora está em luta  como parte de uma campanha para pressionar Biden a agir nos seus primeiros 100 dias de mandato. “Lutar sozinha contra isto foi muito deprimente. Fazia-me sentir que estava a fazer algo de errado”, disse Brooks. “Entrando para o coletivo, apercebemo-nos de que fizemos tudo o que consideramos correto  e que estamos  todos unidos na mesma vontade.  Percebe-se que as coisas erradas não são as suas – partem do sistema”.

Embora a situação financeira das pessoas comuns na América esteja desde há muito tempo em crise, a pandemia alargou a rede de impacto e tornou mais difícil ignorar a gravidade da situação. Só se tornou mais evidente para mais pessoas que os sistemas que as aprisionam no esmagamento da dívida doméstica – quer se trate de contas médicas do nosso sistema privatizado de saúde ou de rendas astronómicas – impossibilitam a sua sobrevivência. No ano passado, milhões de pessoas endividadas estiveram em greve de facto, simplesmente porque não puderam pagar.

O movimento de abolição da dívida quer pegar nestas experiências atomizadas e reunir as pessoas. O Colectivo da Dívida organiza-se em torno desta ideia de luta coletiva: Não se trata de um empréstimo. “Oh, de repente nem tudo vai arder se não pagarmos”, disse-me Hannah Appel, antropóloga económica da Universidade da Califórnia em Los Angeles e co-fundadora do Debt Collective. A pandemia “reformulou o terreno e tornou mais visíveis as coisas que já lá estavam”.

Appel, que se tem organizado em torno da dívida desde a última recessão, através de projetos como o Strike Debt e o Debt Collective, diz que o debate em torno da dívida dos estudantes, em particular, evoluiu radicalmente durante a última década. Durante os protestos dos Occupy  Wall Street, o apelo dos organizadores para cancelar a dívida foi ridicularizada como sendo simultaneamente elitista e improvável. Agora, até os democratas moderados como Chuck Schumer estão a insistir no cancelamento da dívida estudantil no valor de 50.000 dólares. Biden, que desempenhou um papel central na criação da atual crise através de uma lei de falência que tornou quase impossível para as pessoas o cancelamento da dívida estudantil, é agora o principal alvo dos organizadores. “O que é possível agora é desfazer o legado de Joe Biden”, disse Appel. “É encantador que possa ser Joe Biden a ser obrigado pelos ativistas a fazê-lo – há algo de poético nisso”.

Weaver, a organizadora de arrendatários de Nova Iorque, explicou que a pandemia lhes permitiu, de forma semelhante, pressionar para uma mudança narrativa em torno do cancelamento de rendas, incluindo pensar no aluguer não pago como uma dívida semelhante a hipotecas ou empréstimos estudantis. “O objetivo  a que gostaríamos de chegar é testar os proprietários e não os arrendatários num momento de crise”, disse ela. Em ambos estes movimentos, vemos um impulso contra a solidão – uma rejeição do isolamento nestas lutas que muitos de nós partilhamos.

Alguns estados estão a tomar a questão nas suas próprias mãos – a Califórnia aprovou uma lei para usar fundos federais para pagar aos senhorios 80 por cento da renda em atraso, mas apenas se esses senhorios concordarem em renunciar aos outros 20 por cento. Embora a lei proporcione alívio a muitos inquilinos, Appel salientou que isto atua essencialmente como um salvamento de senhorios, muitos dos quais se têm aproveitado e beneficiado de inquilinos há muito tempo. Também coloca o destino da dívida dos arrendatários nas mãos desses senhorios, que podem optar por não aceitar o acordo, o que significaria que o Estado só se comprometeria a pagar 25 por cento da renda dos arrendatários. É uma ajuda , mas não uma solução.

Os abolicionistas da dívida com quem falei concordaram que a anulação da dívida era apenas metade da batalha – os sistemas que deram origem à dívida, em primeiro lugar, também precisam de ser reformados. A abolição da dívida dos estudantes é acompanhada de uma exigência de uma faculdade pública gratuita; dívida médica, com Medicare for All. No que diz respeito à habitação, quase metade dos arrendatários foram sobrecarregados com custos – ou gastavam mais de 30% dos seus rendimentos em aluguer – antes mesmo de se ter atingido a pandemia.  O cancelamento do aluguer é uma necessidade, mas é evidente que o país também precisa desesperadamente de algum tipo de reforma robusta da habitação social. O representante Ilhan Omar apresentou um projeto de lei em Abril passado que constitui um bom passo em frente: cancelar alugueres e hipotecas, mas também articular  um fundo de ajuda ao senhorio acompanhado de  proteções de inquilinos, tais como a proibição de aumentos de aluguer durante cinco anos. Omar, com razão, considerou que é da responsabilidade  do Congresso de “intervir para estabilizar tanto as comunidades locais como o mercado habitacional” face à recessão pandémica.

Os organizadores estão prontos a fazer tudo para que a atual administração se bata neste sentido e está-se para ver até onde Biden será forçado. Embora tenha exigido o perdão da renda federal e da hipoteca ao longo da sua campanha, ainda não cumpriu essa promessa. E a retórica de Biden em torno dos empréstimos estudantis, e o facto de ter feito avançar o dossier  pedindo   uma revisão judicial ao Ministério da Justiça quanto ao seu poder legal de anular a dívida dos empréstimos estudantis, indicam que ele preferiria contorná-la ou oferecer reformas modestas onde é necessária uma revisão radical.

Entretanto, as pessoas em todo o país continuam à deriva, e as contas a acumular-se. O dia em que falei com Brooks foi quando Biden anunciou que não se comprometeria a cancelar mais de 10 mil dólares em empréstimos estudantis. Brooks disse-me que sem o cancelamento da dívida e a reforma em larga escala das instituições que a fizeram endividar-se em primeiro lugar, o futuro da sua família parece “aterrador”.

“Os meus filhos passaram por muita coisa”, disse-me Brooks. “É a parte mais desanimadora de tudo isto — neste momento, a única coisa que tenho para lhes deixar é essa dívida.”

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