O FUTEBOL É UM DESPORTO? – I – “FUTEBOL, UM DESPORTO DO POVO?”, por MICHAEL ROBERTS

 

Football: a people’s sport?, por Michael Roberts

thenextrecession, 22 de Abril de 2021

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

Revisão por João Machado

O colapso da tentativa de formar uma “super liga” das melhores equipas de futebol europeias pelos bilionários proprietários dos grandes clubes é apenas um capítulo interrompido na história da mercantilização do desporto em empresas capitalistas lucrativas, detidas e controladas pelo capital.  Não é por acaso que o JP Morgan foi o gestor do fundo do plano da Superliga – uma vez que o banco encarna o papel do capital global no controlo do desporto moderno.  E não é por acaso que o principal condutor da nova liga foi o presidente do Real Madrid, um clube de futebol dominado no passado pela monarquia espanhola corrupta e pelo franquismo, a ala fascista do capital espanhol. O Real é um clube controlado por membros, ao contrário da maioria dos clubes de topo, mas apenas os muito ricos podem tornar-se presidentes e o clube vive da marca, tal como a maioria dos clubes. E o RM tem enormes dívidas.

A Super Liga era para ser um cartel, concebido para criar um monopólio para os grandes clubes de futebol na Europa, à custa dos clubes mais pequenos, e eventualmente à custa dos “adeptos” ou seguidores destes clubes que em breve pagariam grandes assinaturas para ver jogos na televisão ou enfrentar preços elevados para ver jogos nos estádios.  Mas então isso já estava a acontecer.

O alarido feito acerca deste cartel esconde o papel do próprio capital. É a mesma ideia quando os economistas falam do papel desagradável dos monopólios, como se o capitalismo competitivo fosse fino e equitativo e nós só precisamos de regressar à “livre concorrência”. A realidade é que o futebol já tinha sido capitalizado: na posse e sob controlo de  bilionários, muitas vezes como sendo os seus brinquedos, mas cada vez mais como empresas produtoras de dinheiro.  Os adeptos não têm voto na matéria; jogadores e gestores cumprem  ordens. As organizações de adeptos vão contra o poder dos bilionários, mas em geral não oferecem soluções a não ser dizer: “Agora precisamos de fazer mais do que chamar o seu bluff e contentarmo-nos com o compromisso de uma Liga dos Campeões alargada”. Temos de reescrever as regras, refazer as instituições e reavaliar o nosso papel como adeptos. “

Assim, acabar com este cartel (por agora) não altera a realidade da mercantilização do desporto do seu “valor de uso” original para que as pessoas joguem e observem o valor de troca do lucro.  Esse desporto tornou-se um negócio iniciado logo a partir do desenvolvimento do capitalismo industrial, em meados do século XIX.  Veja-se o futebol.  Existem cerca de 600 jogadores profissionais da primeira liga em Inglaterra, cerca de 4000 futebolistas profissionais em Inglaterra e cerca de 65.000 jogadores profissionais em todo o mundo.  Claro que, da base para o topo, as desigualdades de rendimentos ou salários para os futebolistas são enormes: de um jogador que ganha 1,5 milhões de dólares por semana para outro que não pode viver de salários de futebol e precisa de um segundo emprego (estes últimos, claro, são a esmagadora maioria).  E depois há pessoas que apenas jogam por diversão, aparentemente cerca de 250 milhões de jogadores de futebol associativo em todo o mundo.

As desigualdades de salários são exactamente as mesmas noutros grandes desportos em todo o mundo: basebol e futebol americano, cricket e ténis. Mas o que se passa com o futebol americano e o basebol é que é suposto serem desportos do povo.  Mas quanto a alguns aspectos importantes, nunca foram “desportos populares”.  O primeiro é que as mulheres têm sido largamente excluídas de jogar, até há relativamente pouco tempo.  O futebol não era um “desporto popular”, mas um jogo masculino, jogado por homens e visto principalmente por homens.  As mulheres não “praticavam desporto” e certamente não o futebol.  O futebol feminino só recentemente chegou ao mundo em geral nas últimas décadas e continua a ser pouco apoiado pelo capital e pelos seguidores.  As mulheres deveriam ficar em casa e preparar a refeição para quando os homens voltassem de jogar ou de assistir ao jogo. No caso do cricket, esperava-se que as mulheres fizessem o chá e preparassem as sandes enquanto os seus homens jogavam no campo.

Também o racismo foi uma força poderosa no desporto moderno.  Se fosse negro ou asiático, era excluído do desporto profissional. Por exemplo, só em 1947 é que as equipas americanas de basebol profissional passaram a incluir jogadores negros.  Até então, o basebol não era apenas um desporto de homens, mas também um desporto de homens brancos, particularmente quando se tratava de dinheiro.

O críquete era originário das aldeias medievais de Inglaterra e França e era jogado por trabalhadores rurais no seu conjunto.  Mas rapidamente se tornou um “desporto de gente rica”.  A um nível organizado, foi dominado pela classe alta e pelos aristocratas (ainda assim é em  Inglaterra).  Em Inglaterra, o jogo profissional foi dividido entre aqueles que eram ‘jogadores’ e eram pagos para jogar e aqueles que eram ‘cavalheiros’, que eram tão ricos que não precisavam de ser pagos.  De facto, na capital do cricket, Lord’s na Inglaterra, havia entradas separadas para cavalheiros e jogadores e todos os anos cada grupo jogava contra o outro, preservando a tradição de separação.

É claro que o capitalismo moderno se livrou da maior parte disto quando se fala de dinheiro.  Hoje em dia o cricket tornou-se uma empresa capitalista global, gerida por bilionários indianos que empregam mercenários de cricket de todo o mundo nas suas lucrativas competições.  O críquete tornou-se o desporto popular no Sul da Ásia (um produto do domínio colonial), mas está completamente mercantilizado ao mais alto nível.  De facto, o cartel de futebol da Super Liga já opera no cricket na Índia, enquanto que as antigas ligas amadoras perdem importância face ao peso do capital bilionário.  Agora o críquete  é pouco jogado nas escolas estatais  inglesas e os jogadores profissionais proveem quase sempre de escolas privadas ou de “famílias” do críquete.  Os jogadores da classe trabalhadora das zonas industriais de Yorkshire e Lancashire desapareceram na sua maioria.

O ténis nunca foi um desporto popular.  Foi inventado por aristocratas medievais e jogado nos palácios de reis e nobres como passatempo.  O ténis manteve o seu estatuto de amador até tarde no século XX, porque era uma actividade da classe alta.  O herói do ténis inglês da classe trabalhadora, Fred Perry, filho de um fiador de algodão de Lancashire, três vezes campeão de Wimbledon e vencedor de oito “grand slams”, nunca foi reconhecido pelas autoridades porque se tornou profissional para ganhar a vida. O profissionalismo no ténis acabou por triunfar quando o capitalismo viu os lucros que podiam ser obtidos no desporto.  Agora o ténis é mais uma operação globalizada dirigida por patrocinadores bilionários com base numa intensa corrida global dos jogadores para obterem   as suas classificações e  os seus ganhos.

O ciclismo pode ser considerado um desporto popular na medida em que milhões de pessoas o praticam todos os dias.  Mas embora milhões circulem todos os fins de semana por prazer, o desporto profissional tornou-se mais um produto comercial controlado por patrocinadores bilionários e repleto de uso de drogas, corrupção e truncagem de corridas.

O rugby era um desporto de gente rica, em geral, embora nos vales mineiros do País de Gales tenha ganho a adesão das comunidades locais como desporto popular (apenas para os homens).  De resto, era o principal desporto dos agricultores das zonas mais ricas de Inglaterra, França e dos países coloniais da Austrália, Nova Zelândia e África do Sul – e nas escolas privadas das classes altas.  A Liga de Rugby foi um desenvolvimento nas áreas da classe trabalhadora no norte de Inglaterra e foi formada profissionalmente para que os jogadores da classe trabalhadora pudessem ser pagos – algo desaprovado pelas autoridades da União de Rugby.  A ironia é que o capital acabou por fazer com que a União de Rugby se virasse para o profissionalismo e é aí que o dinheiro está agora, enquanto  a Liga de Rugby é o parente pobre.

O jogo popular de basebol na América foi trazido para o novo continente por imigrantes que jogavam jogos de bastões e bolas mais antigos em Inglaterra.   Mas também foi totalmente comercializado em “franchises da super liga”. O futebol americano nunca foi realmente um desporto da classe trabalhadora, mas veio das faculdades da Ivy League dos ricos, como o rugby  no Reino Unido.  Agora crianças da classe trabalhadora com talento desportivo tentam desesperadamente obter bolsas de estudo no futebol, ténis e basquetebol como um trampolim para as riquezas das ligas profissionais – e, claro, apenas uma minoria minúscula alguma vez o consegue, apesar dos enormes sacrifícios.

O futebol era um desporto verdadeiramente de classe operária na Europa.  Foi jogado primeiro por trabalhadores rurais em aldeias e depois por trabalhadores em cidades industriais.  E era praticado na sua maioria por pouco ou nenhum dinheiro.  E foi seguido por homens (e algumas mulheres) da classe trabalhadora.  Para muitas pessoas da classe trabalhadora com talento, era uma forma de sair da pobreza, tal como o boxe também tinha sido.  Mas o capital tomou conta dele nos últimos 150 anos, mais ou menos. Agora o futebol é um negócio gerido por bilionários para o seu gozo  pessoal e financiado cada vez mais pelo capital global.  Os clubes de futebol têm accionistas e estão cotados nas bolsas de valores. A saga da Super Liga é apenas o último capítulo da mercantilização do desporto pelo capitalismo.

O desporto é agora operado no topo pelo capital para o capital, e os melhores jogadores são como gladiadores na Roma antiga, muito bem pagos  (no topo) e adorados por milhões, mas são rapidamente abandonados para o grupo seguinte, enquanto o desporto pelo lucro continua.  Centenas de milhões observam estes gladiadores para se divertirem; mas são muito menos na realidade a praticar o desporto pelo desporto.

O que a história do futebol e de outros desportos nos diz é que o futebol não pode voltar a ser um desporto do povo sob o capitalismo.  Para o conseguir, é necessário que os estádios e os clubes sejam propriedade pública e que os clubes tenham membros na base de uma pessoa, um voto,  para decidir as suas actividades de clubes.  O desporto deve ser financiado apenas pelo Estado, e não pelo capital. Os jogadores devem ser empregados com salários razoáveis, como qualquer outro emprego.  O capital privado e o desporto com fins lucrativos devem ser substituídos por um verdadeiro desporto do povo, gerido pelo povo para o povo. A implementação de tal abordagem não será possível por si só, mas apenas como parte de um programa mais amplo de propriedade pública e controlo democrático na sociedade em geral.

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Leia este artigo de Michael Roberts no original clicando em:

Football: a people’s sport? – Michael Roberts Blog (wordpress.com)

 

 

 

 

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