AQUELA JANELA, de ADÃO CRUZ

Abri a janela de par em par e o sol encheu a sala. Respirei fundo e o ar fresco daquela manhã inundou os pulmões. O sangue como que adormeceu na quietude do pensamento. O magnífico impressionismo de Monet desdobrado pelas amplas salas do Grand Palais deixara-me a alma cheia.

Sentei-me numa cadeira com os braços apoiados no parapeito da janela, a olhar o mundo e os tectos cinzentos da grande cidade que se estendiam para lá do fundo da rua. Devo ter semicerrado os olhos, pois não dei pela veloz queda do seu corpo frente à minha janela, apenas o estrondo no solo me fez levantar.

Ela vivia no andar de cima, na Rue Mouffetard, e a sua janela era mesmo por cima da minha. Há uma semana, quando tomávamos um esporádico café, segredara-me que a vida já nada lhe dizia. Falámos de homossexualidade e homofobia, tema que não me interessava particularmente. A ela parecia dizer-lhe muito, pois ia aos arames com a cara e o ar das pessoas do bar em frente à nossa porta, quando a viam com a mulher com quem vivia. E logo em Paris, ainda se fosse na sua aldeia transmontana!

Sempre que vou a Paris e passo pela Rue Mouffetard, levanto os olhos para a janela que estava acima da minha, olhos que logo me caem nas pedras da rua. Lembro-me do corpo curvado, metade em cima do passeio e outra metade fora, rodeado por uma dezena de curiosos. Uma mancha de sangue deslizava vagarosamente sobre as pedras. Eu sabia que era o sangue dela, pois ela vestia a mesma roupa da véspera quando a encontrei nas escadas, uma saia negra debruada a veludo vermelho escuro e uma blusa azul. Não penses que sou lésbica e que não gosto de homens, disse-me, um pé em cada degrau. Gosto muito de ti, por exemplo, que és o gajo mais porreiro que já conheci. Ia para a cama contigo, de olhos fechados. O que me fez afastar deles foi ter caído nas garras do bandalho do meu patrão, quando vim para esta cidade. Deixei a meio o curso de educadora de infância e fui sobrevivendo como ajudante na sua padaria. Ele e a mulher foderam-me bem fodida, o corpo e a alma, durante três anos. Perdi a coisa mais preciosa da vida, a dignidade. Salvou-me uma prima minha que trabalhava no hospital da Salpêtrière, onde tu estás, e que me arranjou um emprego na sua cabeleireira.

Quando vou a Paris e passo na Rue Mouffetard, paro a olhar as duas janelas, e ainda hoje me envergonho por me ter mantido estático e paralisado no parapeito, sem coragem para descer, quando vi o seu corpo estatelado. Apenas uma coisa me obrigou a acertar os óculos, o livro que jazia meio aberto ao seu lado. Apesar de a capa estar voltada para cima, eu não conseguia ler o título, mas a cor da capa e a disposição das letras não me deixaram dúvidas de que se tratava do livro que eu lhe havia emprestado uma semana antes. Desci a correr os dois lanços de escadas, tomei-lhe o pulso que me pareceu parado e peguei no livro.

– Sempre que vou a Paris e decido ir à Rue Mouffetard não deixo de levantar os olhos para as duas janelas, e pousá-los de imediato na rua sobre um livro meio aberto com pintas de sangue, que a polícia me obrigou a entregar, não sem antes me bombardear com perguntas, para que revelasse a minha vida e a dela e o meu tipo de relação com a vizinha, e, sobretudo, para que lhes dissesse a quem pertencia e o que significava aquele poema de amor escrito à mão na primeira página do livro.

adão cruz

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