ESQUIZOFRENIA CULTURAL E DELINQUÊNCIA DE ESTADO, por ORLANDO MAÇARICO

Há uma “contradição ideológica manifesta entre uma ideia de justiça e práticas de justiça que não se conformam a essa ideia”.

Na área do direito e da justiça, instalou-se uma espécie de estado de esquizofrenia cultural, que se evidencia na diferença entre o que se proclama, programa e legisla e a praxis.

Repare-se: artigo 30, número 5, da CRP- “Os condenados mantêm a titularidade dos direitos fundamentais”.

Toda a pessoa privada de liberdade será tratada como o exige a dignidade da pessoa humana (Comité de estudos da Comissão de Direitos Humanos da ONU).

Naturalmente, como todo o serviço público, a administração penitenciária deve exercer as suas próprias funções no respeito dos direitos fundamentais.

Veja-se a realidade-carências dos estabelecimentos prisionais:

  • falta de recursos humanos e materiais;

  • superlotação carcerária, assim transformados em verdadeiras “servidões de passagem para o inferno”

  • instituição concebida para pobres e exportadora de pobreza;

  • Incapacidade de dotar o utente das competências necessárias à sua reinserção na sociedade;

  • falta de inspecção regular dos estabelecimentos por autoridades independentes exteriores à administração;

  • Incapacidade de tratar o utente do serviço público penitenciário, do modo a salvaguardar a sua saúde, dignidade e sentido das responsabilidades;

  • incapacidade de pôr cobro ao tráfico massivo de estupefacientes nos estabelecimentos ;

  • carência de tratamento imparcial e igual;

  • elevada percentagem de reincidência da população prisional masculina, o que bem retrata a falência da reinserção social;

  • elevada percentagem de doenças contagiosas entre os reclusos, e um longo etcétera .

É bom recordar, para não mais esquecer, que, só 35 anos após o 25 de Abril, um Ministro da Justiça anunciou, com indisfarçável e farisaico orgulho, o fim de um resquício concentracionário nas prisões portuguesas (nesse espaço putrescente de latrina comum, na expressão de Etty Hillesum)- o balde higiénico.

Portugal, doze anos após o anúncio orgulhoso do fim do balde higiénico, continua a ser condenado pelo TEDH, por violação da dignidade humana ,por tratamento desumano em privação de liberdade.

“A privação da liberdade deve ter lugar em condições materiais e morais que assegurem o respeito da dignidade humana”- Regras penitenciárias europeias.

Já em 1955, o Primeiro Congresso da ONU sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquente, realizado em Genebra, destacava de entre as regras mínimas para tratamento dos presos, como princípios básicos, os que se prendem com separação de categorias, acomodações, higiene pessoal, vestuário, repouso noturno, alimentação, exercício e desporto, serviços médicos/saúde, etc.

Será então possível definir, sem ironia, os nossos carentes estabelecimentos prisionais como “esses espaços abertos entre as normas e a realidade, espaços que permitem que o Estado se converta em delinquente e o delinquente em vítima”?

Quem tem – seja quem for – o dever cívico de se sujeitar voluntariamente à perda de dignidade humana, enquanto direito constitucional absoluto, em privação de liberdade?

“… uma Nação demonstra seu grau de maturidade democrática… ao examinar como ela trata as pessoas que estão sob a sua tutela persecutória ou criminal “.

Qual a cor do pudor da irresponsabilidade de nossos responsáveis políticos?!

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