Assim vai a Argentina – “20 Anos de Drama Monetário na Argentina – um triste aniversário”. Por Heiner Flassbeck e Patrick Kaczmarczyk

Seleção e tradução de Francisco Tavares

20 Anos de Drama Monetário na Argentina – um triste aniversário

 Por Heiner Flassbeck e  Patrick Kaczmarczyk

 

Publicado por  em 30 de Dezembro de 2021 (original aqui)

 

A semana passada marcou o vigésimo aniversário da crise monetária argentina de 2001, que levou o país à beira da ingovernabilidade e causou enormes danos sociais e políticos. O Presidente Fernando de la Rúa demitiu-se finalmente no dia 21 de Dezembro de 2001. Mesmo “a tempo” deste aniversário, espalhou-se recentemente a notícia de que a Argentina poderá não conseguir fazer um reembolso de 2,8 mil milhões de USD ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em Março de 2022, o que faz parte do seu compromisso do acordo de resgate de 57 mil milhões de USD de 2018. O não reembolso ao FMI é considerado internacionalmente como o maior de todos os pecados financeiros e um verdadeiro Armagedão.

O actual programa foi concluído pelo governo conservador de Mauricio Macri, que queria tirar a Argentina da crise com um programa económico que era completamente louco pelos padrões normais, mas que provavelmente também pretendia atar as mãos do governo sucessor mais progressista. O resgate foi precedido por uma venda da moeda argentina e de obrigações argentinas, o que exerceu uma enorme pressão sobre o peso e fez com que o peso da dívida externa subisse acentuadamente. Com a crise a intensificar-se de novo no fim de 2021, o ciclo de vinte anos completou-se.

 

O que tinha acontecido antes de 2001?

As razões da grande crise de 2001 ainda não são bem compreendidas pela doutrina prevalecente em economia. Obviamente não se reconheceu até hoje que a abordagem âncora [paridade fixa com uma das principais divisas] que países como a Argentina e o Brasil tinham escolhido no início dos anos 90 para, de uma vez por todas, derrotar a inflação, estava condenada ao fracasso. Nem as pessoas gostam de recordar que, na altura em que a questão da moeda estava a tornar-se cada vez mais crítica em muitas economias emergentes, a maioria dos economistas e o FMI preferiam as chamadas “soluções de canto” para institucionalizar o regime monetário: Recomendava-se aos países que mantivessem, em todas as circunstâncias, os mercados de capitais abertos e ou adoptassem uma abordagem de âncora, ou seja, uma paridade fixa a uma das principais divisas, ou que deixassem a moeda flutuar livremente no mercado.

No entanto, como se demonstra aqui em maior detalhe, ambas as “soluções de canto” eram incompatíveis com a realidade, o que também significa que as recomendações oficiais do FMI e dos seus principais accionistas foram directamente responsáveis pelo surgimento das crises. O FMI tinha simplesmente ignorado o facto de que qualquer abordagem de âncora, mesmo que bem sucedida em relação à estabilização da inflação, tinha de conduzir a uma sobrevalorização da moeda do país âncora, que só poderia ser superada abandonando a abordagem de âncora. [No caso das] As taxas de câmbio flexíveis, como qualquer criança poderia ter sabido, não são adequadas desde o início para garantir a liberdade de movimentos de capitais e o livre comércio. Em última análise, o Ocidente, com as suas instituições financeiras e doutrina económica mal adaptada, falhou no Brasil e na Argentina, mas, claro, qualquer responsabilidade é posta de lado.

 

Onde jazem cadáveres, os abutres não estão longe

Após a entrada em incumprimento no final de 2001 e uma enorme desvalorização do peso argentino, a Argentina não pôde (e não quis) cumprir as suas obrigações de pagamento internacional das suas emissões obrigacionistas de cerca de 80 mil milhões de USD. Duas rondas de negociações em 2005 e 2010 resultaram numa reestruturação da dívida, um corte de quase 70% nas obrigações argentinas e uma promessa do governo de aumentar os reembolsos assim que o país recuperasse. 93 por cento dos credores aceitaram o acordo. Contudo, uma subsidiária da Elliott Management, NML Capital, e vários outros fundos ditos abutres não estavam dispostos a fazê-lo. A NML Capital conseguiu comprar títulos argentinos a um preço de pechincha de 177 milhões de USD pouco antes do incumprimento da Argentina, e mais tarde reclamou o reembolso total do valor nominal de 4,65 mil milhões de USD.

O governo argentino foi processado pelos fundos abutre em Nova Iorque. No “Sovereign Debt Trial of the Century”, o juiz Thomas Grieser decidiu em 2014 que o país não podia pagar nada aos outros credores – os 93 por cento que tinham concordado em reestruturar a dívida – até que os fundos abutre fossem pagos na totalidade. Uma vez que o governo argentino sob Kirchner não aceitou isto, a Argentina enfrentou um novo, embora duvidoso, “incumprimento” em 2014. Foi apenas em 2016 que o governo Macri fez da resolução da disputa uma prioridade chave das suas reformas económicas, e a Argentina contraiu um empréstimo de 5 mil milhões de dólares de Wall Street. Chegou-se a um acordo com os fundos abutre na Primavera de 2016 para reembolsar 2,28 mil milhões de dólares, mais o pagamento de custos legais. Para os fundos, isso significou uma rentabilidade de quase 1.200 por cento.

 

Pós 2010: uma década de aberrações

Poder-se-ia pensar que o enorme dano económico e o deslocamento social desta montanha-russa monetária e os escandalosos retornos que os especuladores monetários embolsaram teriam levado a uma reconsideração da política. Mas os últimos anos mostram que nada mudou. Nem fizemos progressos no sentido de uma reforma do sistema monetário, que colocaria a troca internacional de bens e serviços numa base sólida, nem foi entendido que sem uma política salarial orientada para a produtividade, a restrição monetária é extremamente cara.

As taxas de inflação na Argentina também têm sido consistentemente elevadas durante a última década, e o banco central tem tentado desesperadamente combatê-las com taxas de juro elevadas. Em 2019, recebia-se quase 50 por cento de juros se se deixasse o dinheiro na conta. Inversamente, tinha-se que contar com quase 70% de juros se se quisesse contrair um empréstimo como investidor privado. As taxas de juro reais (taxa de juro nominal menos a taxa de inflação) ascendiam a mais de 10 por cento. Taxas de juro tão elevadas estrangulam qualquer economia – e foi exactamente isso que aconteceu na Argentina. Em termos nominais, a economia contraiu-se quase 30 por cento entre 2017 e 2019, o que, por sua vez, exacerbou o peso da dívida denominada em moedas estrangeiras. Olhando para as trajectórias das taxas de câmbio reais e nominais do peso (Figura 1) e da conta corrente da Argentina (Figura 2), pode-se facilmente ver o que correu mal na Argentina.

Figura 1

A dramática depreciação real e nominal do peso em 2001 deu inicialmente à Argentina um incrível boom, impulsionado por uma maior competitividade. A conta corrente estava a registar um enorme excedente e as taxas de crescimento do país impressionaram o mundo. Mas o governo argentino não conseguiu manter esta enorme vantagem absoluta no comércio internacional. Já em 2010, a conta corrente voltou a registar um défice, e isto apesar do facto de a taxa de câmbio real após 2003 ter indicado uma depreciação quase contínua, ou seja, na realidade, uma melhoria adicional da competitividade.

Figura 2

Numerosos elementos levam a pensar que os governos argentinos permitiram que o país inflacionasse novamente depois de 2001, mas isto não foi totalmente reflectido ou permitido ser visível nas estatísticas oficiais. Desta forma, o peso pode ter apreciado em termos reais, porque a depreciação da taxa de câmbio nominal não foi suficiente para compensar os diferenciais de inflação reais com as moedas ocidentais. Esta versão é apoiada não só pela discussão acalorada das taxas de inflação da Argentina na altura, mas também pelo desenvolvimento da conta corrente. Desde 2010, a Argentina tinha défices da balança de transacções correntes que aumentaram para mais de 5 por cento até 2018. Só com a profunda recessão e o colapso das importações em 2019 e 2020 é que a Argentina voltou a ter um excedente.

Hoje em dia, os mercados financeiros descartaram em grande parte a Argentina. Em contraste, apenas há alguns anos, em 2017, os mercados ainda estavam optimistas quanto às perspectivas para os mercados emergentes em geral. A Argentina até emitiu uma obrigação a 100 anos no Verão com um rendimento de 8 por cento. No entanto, no início de 2018, com uma economia americana em plena expansão e números fortes do mercado de trabalho que excederam as expectativas, os mercados financeiros começaram a apostar numa política monetária do Fed mais rigorosa e numa valorização do dólar americano. Para a Argentina, isto equivalia a uma fuga de capitais e a uma queda livre da moeda, que só podia ser combatida com taxas de juro mais elevadas devido às baixas reservas de moeda e à falta de apoio internacional.

 

Uma história interminável

Assim, uma simples mensagem permanece: Mesmo 20 anos após o drama da moeda na Argentina, nem o mundo ocidental nem o próprio país compreenderam porque se movem em círculos em vez de avançarem. O que permanece mal compreendido é o sistema monetário que torna impossível um comércio internacional eficaz e não permite aos países em desenvolvimento fora da Ásia estabilizar o valor externo da moeda de uma forma que mantenha a sua competitividade internacional. O casino financeiro mundial continua a marcar o tom, produzindo taxas de câmbio falsas que são sistematicamente abordadas com políticas económicas falsas.

Ao mesmo tempo, a nível nacional, mas também a nível das instituições financeiras internacionais, não tem sido entendido que a única forma de combinar a estabilidade dos preços com o aumento do nível de vida é através de uma política salarial adequada. Contudo, uma política económica desajustada, que é impulsionada por restrições externas, é a principal razão pela qual o sucesso do desenvolvimento fora da Ásia continua em grande parte ausente nos últimos 50 anos. Aqueles que mais sofrem são os povos dos países em desenvolvimento e dos países emergentes, a quem é negada a perspectiva de uma vida melhor e que, por conseguinte, procuram a salvação na emigração.

Vinte anos após a grande crise, a Argentina está mais uma vez a lutar com os seus credores internacionais. O absurdo de fixar uma taxa de câmbio do dólar de 1:1 no início dos anos 90 manifesta-se no facto de hoje em dia um dólar americano custar – acreditem ou não – 102 pesos. No entanto, o facto de o mundo industrializado se ter limitado a assistir ao drama sul-americano durante mais de 20 anos sem sequer reconhecer a sua responsabilidade na crise ultrapassa o absurdo desta evolução da taxa de câmbio.

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Os autores

Heiner Flassbeck [1950 – ], economista alemão (1976 pela Universidade de Saarland), foi assistente do Professor Wolfgang Stützel em questões monetárias. Doutorado em Economia pela Universidade Livre de Berlim em julho de 1987, tendo por tese Prices, Interest and Currency Rate. On Theory of Open Economy at flexible Exchange Rates (Preise, Zins und Wechselkurs. Zur Theorie der offenen Volkswirtschaft bei flexiblen Wechselkursen). Em 2005 foi nomeado professor honorário na Universidade de Hamburgo.

A sua carreira profissional teve início no Conselho Alemão de Peritos Económicos, em Wiesbaden, entre 1976 e 1980; esteve no Ministério Federal de Economia em Bona até janeiro de 1986; entre 1988 e 1998 esteve no Instituto Alemão de Investigação Económica (DIW) em Berlim, onde trabalhou sobre mercado de trabalho e análise de ciclo de negócio e conceitos de política económica, tendo sido chefe de departamento.

Foi secretário de estado (vice-ministro) do Ministério Federal de Finanças de outubro de 1998 a abril de 1999 sendo Ministro das Finanças Oskar Lafontaine (primeiro governo Schröeder), e era responsável pelos assuntos internacionais, a UE e o FMI.

Trabalhou na UNCTAD- Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento desde 2000, onde foi Diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento de 2003 a dezembro de 2012. Coordenador principal da equipa que preparou o relatório da UNCTAD sobre Comércio e Desenvolvimento. Desde janeiro de 2013 é Diretor de Flassbeck-Economics, uma consultora de assuntos de macroeconomia mundial (www.flassbeck-economics.com). Colaborador de Makroskop.

Autor de numerosas obras e publicações, é co-autor do manifesto mundial sobre política económica ACT NOW! publicado em 2013 na Alemanha, e são conhecidas as suas posições sobre a crise da eurozona e as suas avaliações críticas sobre as políticas prosseguidas pela UE/Troika, nomeadamente defendendo que o fraco crescimento e o desemprego massivo não são resultado do progresso tecnológico, da globalização ou de elevados salários, mas sim da falta de uma política dirigida à procura (vd. The End of Mass Unemployment, 2007, em co-autoria com Frederike Spiecker).

 

Patrick Kaczmarczyk é investigador doutorado no Sheffield Political Economy Research Institute (SPERI) da Universidade de Sheffield, financiado pelo British Economic and Social Research Council (ESRC). Antes dos seus estudos de doutoramento, trabalhou com o antigo Secretário de Estado do Ministério das Finanças alemão e economista-chefe da UNCTAD, Heiner Flassbeck, num projecto de investigação sobre IDE na teoria neoclássica do comércio internacional, que se tornou a base para a sua investigação de doutoramento. Concluiu o seu mestrado em Investigação Social na Universidade de Sheffield como o melhor aluno do grupo da ESRC. O projecto mais recente de Patrick Kaczmarczyk, co-autor por Heiner Flassbeck e Michael Paetz (Universidade de Hamburgo), avaliou as opções de financiamento do mercado de capitais na Palestina. O relatório foi publicado pelo Instituto de Investigação da Política Económica da Palestina (MAS). Também contribui regularmente para uma variedade de blogues, incluindo Social Europe, blogues SPERI, a revista alemã de economia política Makroskop, e vários blogues da LSE.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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