As vacinas ARNm contra o Covid e a sua aplicação nas crianças – 2. Um Cientista de Vacinas Divulga Informação Falsa sobre Vacinas . Por Tom Bartlett

 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

 

2. Um Cientista de Vacinas Divulga Informação Falsa sobre Vacinas 

 Por Tom Bartlett

Publicado por em 12 de Agosto de 2021 (ver original aqui)

 

Steve Helber / AP; The Atlantic

 

Robert Malone – um médico e investigador de doenças infecciosas – sugeriu recentemente que as vacinas Pfizer e Moderna poderiam, na realidade, agravar as infecções por COVID-19. Ele riu-se ao imaginar Anthony Fauci a anunciar que a campanha de vacinação era tudo um grande erro (“Oh bolas, eu estava errado!”) e que teria de ser abandonada. Quando ele apresentou esse cenário de pesadelo durante uma recente entrevista num programa de Steve Bannon [1], ambos os homens pareciam quase encantados com a perspetiva de que os funcionários da saúde pública e as empresas farmacêuticas sofressem um verdadeiro revés. “Isto é uma catástrofe”, declarou Bannon, pleno de alegria diante do seu convidado. “Está a ouvi-lo de um indivíduo que inventou o ARNm [vacina] [2] e dedicou a sua vida às vacinas. Ele é o oposto de um anti-vacinas. “

Antes de continuarmos, sejamos claros que esta conversa entre Bannon e Malone foi baseada em informação errada. As vacinas têm mostrado repetidamente que ajudam a prevenir infeções coronavírus sintomáticas e a reduzir a sua gravidade. Malone estava a ser enganado por uma frase maliciosa num artigo do USA Today, que mais tarde foi apagada mas não antes de ser analisada e amplamente partilhada. Este tipo de conversa sobreaquecida e baseada em fontes duvidosas  é habitual nos programas como o de Bannon, que veiculam um conjunto de afirmações que soam tristemente a algo que é familiar: As vacinas causam mais danos do que os especialistas deixam transparecer; Fauci é um mentiroso e possivelmente um fascista; e os principais meios de comunicação social ou são descaradamente cúmplices ou demasiado estúpidos para perceber o que realmente se está a passar.

Nesse universo mediático alternativo, a estrela de Robert Malone é ascendente. Começou a aparecer em podcasts e telejornais há alguns meses, apresentado como perito científico, argumentando que o processo de aprovação das vacinas tinha sido imprudentemente precipitado. Ele disse a Tucker Carlson que o público não tem informação suficiente para decidir se deve ou não ser vacinado. Disse a Glenn Beck que oferecer incentivos para a tomada de vacinas não é ético. Disse a Del Bigtree, um ativista anti-vacinas que se opõe às inoculações infantis comuns, que não tinha havido investigação suficiente sobre como as vacinas poderiam afetar os sistemas reprodutivos das mulheres. Programa após programa, Malone, que rapidamente acumulou mais de 200.000 seguidores no Twitter, lança dúvidas sobre a segurança das vacinas, ao mesmo tempo que denuncia o que vê como tentativas de censurar a dissidência.

Onde quer que apareça, Malone é rotulado como o inventor das vacinas mRNA. Está na sua biografia do Twitter. “Inventei literalmente a tecnologia do ARNm quando tinha 28 anos”, diz Malone, que tem agora 61 anos. Se isso é verdade – ou, mais precisamente, se Malone acredita que é verdade – então era de esperar que ele estivesse a defender uma mensagem muito diferente nas suas aparições nos meios de comunicação. De acordo com um estudo recente, a inovação pela qual ele afirma ser responsável já salvou centenas de milhares de vidas só nos Estados Unidos; fala-se que em breve poderá levar a uma ronda de Prémios Nobel. É o tipo de validação que poucos cientistas na história alguma vez receberam. No entanto, em vez de se apresentar com uma declaração de vitória, Malone emergiu como um dos críticos mais virulentos da sua própria suposta realização. Ele semeou dúvidas sobre as vacinas Pfizer e Moderna em praticamente qualquer programa ou canal YouTube que o tenha aceite.

Porque é que o inventor autoproclamado das vacinas ARNm está a trabalhar tão arduamente para as minar?

Se o Malone realmente inventou as vacinas ARNm é uma questão que provavelmente é melhor deixar para as comissões de prémios suecas, mas é possível avançar alguns argumentos a favor da sua participação. Quando telefonei a Malone na sua quinta de cavalos de 50 acres na Virgínia, ele encaminhou-me para um ensaio de 6.000 palavras escrito pela sua esposa, Jill, que expõe a razão pela qual ele se apresenta como sendo o principal responsável pela descoberta. “Esta é uma história sobre avareza académica e comercial”, começa. O tom do documento é agressivo, e por vezes cai numa verdadeira fúria. Ela apresenta o seu marido como um cientista de génio que é “largamente desconhecido pelo establishment científico devido a abusos cometidos por parte de indivíduos que querem garantir o seu próprio lugar nos livros de história”.

A versão resumida é que quando Malone era estudante de biologia no final dos anos 80 no Instituto Salk de Estudos Biológicos, injetou material genético – ADN e ARN – nas células de ratos, na esperança de criar um novo tipo de vacina. Foi o primeiro autor num artigo de 1989 que demonstrou como o ARN podia ser administrado às células utilizando lípidos, que são basicamente pequenos glóbulos de gordura, e é co-autor num artigo de 1990 da Science mostrando que se injetar ARN puro ou ADN nas células musculares do rato, pode levar à transcrição de novas proteínas. Se a mesma abordagem funcionasse para células humanas, o último artigo dizia na sua conclusão, esta tecnologia “pode fornecer abordagens alternativas ao desenvolvimento de vacinas”.

Estes dois estudos representam de facto um trabalho fundamental no campo da transferência genética, segundo Rein Verbeke, um investigador em pós-doutoramento na Universidade de Gand, na Bélgica, e o autor principal de um histórico de 2019 sobre o desenvolvimento de vacinas ARNm. (De facto, os estudos de Malone são as duas primeiras referências no artigo de Verbeke, de um total de 224). Verbeke disse-me acreditar que Malone e os seus co-autores “acenderam pela primeira vez a esperança de que o ARNm pudesse ter potencial como uma nova classe de medicamentos”, embora ele também note que “a realização das vacinas de ARNm de hoje é a concretização de muitos esforços de colaboração”.

Malone diz merecer crédito por mais do que apenas ter despertado a esperança. Abandonou a escola de pós-graduação em 1988, não tendo acabado o seu doutoramento e foi trabalhar para uma empresa farmacêutica chamada Vical. Agora afirma que tanto o Instituto Salk como a Vical lucraram com o seu trabalho e essencialmente impediram-no de prosseguir a sua investigação. (Um porta-voz do Instituto Salk disse que nada nos registos do instituto corrobora as alegações de Malone. A empresa de biotecnologia na qual Vical foi fundida, Brickell, não respondeu aos pedidos de comentários). Dizer que Malone continua a viver um sentimento de amargura por esta perceção de ter sido mal-tratado não faz justiça ao seu sentimento de injustiça. Ele chama “violação intelectual” ao que lhe aconteceu.

Um dos alvos da ira de Malone, a bioquímica Katalin Karikó, tem sido apresentada em múltiplas notícias como pioneira da vacina ARNm. A CNN chamou ao seu trabalho “a base da vacina Covid-19”, enquanto uma notícia do New York Times dizia que ela tinha “ajudado a proteger o mundo do coronavírus”. Nenhuma dessas histórias mencionou Malone. “Tenho sido colocado fora da  história”, disse ele. “É tudo sobre a Kati”. Karikó partilhou comigo um e-mail que Malone lhe enviou em Junho, acusando-a de alimentar os repórteres com informações falsas e de inflacionar as suas próprias realizações. “Isto não vai acabar bem”, diz a mensagem de Malone.

Karikó respondeu que não tinha dito a ninguém que era ela a inventora das vacinas ARNm e que “muitos cientistas” contribuíram para o seu sucesso. “Nunca reclamei mais do que descobrir uma forma de tornar o ARN menos inflamatório”, escreveu-lhe ela. Ela disse-me que Malone se referiu a si próprio num e-mail como o seu “mentor” e “treinador”, embora ela diga que eles só se encontraram pessoalmente uma vez, em 1997, quando ele a convidou para dar uma palestra. É Malone, segundo Karikó, que tem vindo a exagerar os seus feitos. Há “centenas de cientistas que contribuíram mais para as vacinas do ARNm do que ele”.

Malone insiste que o seu aviso a Karikó de que “isto não vai acabar bem” não foi teve a intenção de ser uma ameaça. Em vez disso, diz ele, estava a sugerir que os seus exageros seriam em breve expostos. Malone vê Karikó como mais um cientista de pé sobre os seus ombros e colecionando aplausos que lhe devem ser dirigidos. Outros têm sido recompensados de forma generosa pelo seu trabalho nas vacinas ARNm, diz ele. (Karikó é um vice-presidente sénior da BioNTech, que se associou à Pfizer para criar a primeira vacina COVID-19 a ser autorizada para utilização no ano passado). Malone não vive propriamente nas ruas: Para além de médico, tem servido como consultor de vacinas para empresas farmacêuticas.

Em qualquer caso, é suficientemente claro que Malone não é singularmente responsável pelas vacinas ARNm. O processo de alcançar grandes avanços científicos tende a ser mais cumulativo e complexo do que as histórias da maçã a cair em cima da cabeça que normalmente contamos, mas isto pode ser tomado como certo: Malone estave envolvido em trabalho inovador relacionado com vacinas ARNm antes de ser tema da moda ou lucrativo; e ele e outros que acreditavam no potencial das vacinas baseadas no ARN nos anos 80 revelaram estar certos a nível mundial.

Malone pode fazer companhia aos céticos da vacina, mas insiste em dizer que ele próprio não é cético. As suas objeções às vacinas Pfizer e Moderna têm sobretudo a ver com o seu processo acelerado de aprovação e com o sistema do governo para rastrear reações adversas. Falando como médico, ele provavelmente recomendaria a sua utilização apenas para aqueles que correm maior risco de COVID-19. Todos os outros devem ter cuidado, disse-me ele, e os menores de 18 anos devem ser totalmente excluídos. (Uma declaração de 23 de Junho de mais de uma dúzia de organizações e agências de saúde pública encorajou fortemente todas as pessoas elegíveis com 12 anos ou mais a serem vacinadas, porque os benefícios “ultrapassam de longe qualquer dano“). Malone está também frustrado por, na sua opinião, as queixas sobre efeitos secundários estarem a ser ignoradas ou censuradas no esforço nacional para aumentar as taxas de vacinação.

O leitor pode muito bem ficar com um sentimento enviesado, depois de ouvir Malone falar ou ler os seus textos, de que existe um encobrimento de longo alcance da COVID-19 e que a verdadeira ameaça é a vacina e não o vírus. Ouvi horas de entrevistas de Malone e li muitas páginas de documentos que ele publicou. Ele é um cientista conhecedor com uma enorme capacidade de explicações lúcidas. O facto de que tenha uma barba branca bem aparada, ou que ele tenha uma voz que seria bem adequada para uma aplicação de meditação, não é em si-mesmo um mal. Malone não é um subscritor das teorias da conspiração mais extravagantes – as teorias da conspiração sobre as vacinas COVID-19 – ele não acha, por exemplo, que Bill Gates tenha enfiado microchips em seringas – e por vezes rejeita suavemente os seus hospedeiros como Bigtree ou Beck que se deixam levar por territórios mais ridículos.

No entanto, ele escorrega rotineiramente em especulações que se revelam enganadoras ou, como no segmento do programa de Bannon, claramente falsas. Por exemplo, ele tuitou recentemente que, segundo um “cientista israelita” sem nome, Pfizer e o governo israelita têm um acordo para não divulgar informações sobre efeitos adversos durante 10 anos, o que é difícil de acreditar dado que o ministério da saúde do país já alertou para uma ligação entre a vacina da Pfizer e casos raros de miocardite. A conta LinkedIn de Malone foi suspensa duas vezes por supostamente divulgar informações erróneas.

As suas preocupações também são pessoais. Malone contraiu a COVID-19 em Fevereiro de 2020, e mais tarde recebeu a vacina Moderna na esperança de que aliviaria os seus sintomas de longo prazo. Agora ele acredita que as injeções pioraram os seus sintomas: ainda tem tosse e está a lidar com hipertensão e redução da resistência, entre outras doenças. “O meu corpo nunca mais será o mesmo”, disse-me ele. Nas aparições nos meios de comunicação social, ele observa frequentemente que tem colegas no governo e nas universidades que concordam com ele e o aplaudem em privado. Falei com várias destas pessoas – cientistas de vacinas e consultores biotecnológicos, sugeridos por Malone – e não foi isso que me disseram. O retrato que eles pintam de Malone é de um investigador perspicaz que pode ser muito obstinado. Relacionaram relatos dele, pré-pandémico, a ser expulso de projetos porque era difícil de comunicar com ele e não estava disposto a comprometer-se. (Malone reconheceu a sua propensão em discutir acirradamente com os seus colegas cientistas). E estes são surpreendidos pelo seu surgimento como cético em relação à vacina. Um chamou à sua ânsia de aparecer em podcasts de reputação duvidosa uma “ingenuidade”, enquanto outro disse que pensava que a retórica pública de Malone tinha “migrado de afirmações extrapoladas para afirmações sensacionalistas”. Stan Gromkowski, um imunologista celular que trabalhou em vacinas ARNm no início dos anos 90 e vê Malone como um pioneiro subapreciado, colocou-o desta forma: “Ele está a lixar as suas hipóteses de receber um Prémio Nobel”.

É apenas no mundo curioso dos meios de comunicação marginais que Malone encontrou a plataforma, e o reconhecimento, que ele procura há tanto tempo. Ele fala com anfitriões que não vão questionar se ele é o cérebro por detrás das vacinas da Pfizer e Moderna. Eles não vão questionar se os créditos devem ser partilhados com os co-autores, ou falar sobre como é que a ciência é como uma corrida de estafetas, ou salientar que, sem o trabalho árduo de investigadores brilhantes que vieram antes e depois de Malone, não haveria vacina. Ele constitui uma melhoria relativamente à típica lista de convidados quiropráticos e naturopatas destes meios de comunicação, e eles estão perfeitamente satisfeitos por se dirigirem a ele pelo título que ele acredita ter ganho: inventor das vacinas ARNm.

A ironia é que, para o público que sintoniza esses espetáculos, as vacinas são vistas como um flagelo e não como uma dádiva de Deus. Pouco importa a que ponto Malone tente apresentar nuances ou qualquer que seja o número de qualificativos que ele junta às suas opiniões, ele está a encorajar a hesitação em vacinar numa altura em que os hospitais nas partes menos vacinados do país estão a lutar para lidar com um afluxo de novos pacientes COVID-19. Se quiser uma prova disso, folheie os muitos comentários dos seus seguidores agradecendo-lhe por confirmar os seus receios. Malone deixou finalmente a sua marca, ao minar a confiança na própria vacina que diz não ser possível criar sem a sua genialidade. É uma vitória, de certo modo, mas uma vitória que ele e o resto de nós podemos vir a lamentar.

 

Este artigo afirmava originalmente que Malone foi em tempos forçado a declarar falência. Embora ele tenha dito anteriormente que “foi à falência”, nunca declarou realmente a falência. O artigo foi também actualizado para reconhecer que Malone citou um cientista anónimo no seu tweet sobre um alegado acordo entre a Pfizer e o governo israelita, e para incluir o ano em que Malone desenvolveu a COVID-19.

A cobertura COVID-19 feita por The Atlantic é apoiada por subvenções da Iniciativa Chan Zuckerberg e da Fundação Robert Wood Johnson

 


Notas

[1] N.T. Steve Bannon, ex-estratega chefe da Casa Branca e conselheiro do presidente Trump, e ex-vice-presidente da empresa Cambridge Analytica que esteve envolvida no escândalo com a Facebook por extração de informação sem consentimento dos seus utilizadores. Conhecido por, após sair da Casa Branca em 2017, ter feito campanha e ajudado vários movimentos políticos europeus e latino-americanos de direita e extrema direita. Fundou The Movement para promover o eurocepticismo, o identitarismo, o liberalismo económico e, em geral, o populismo de direita no continente europeu. Em Agosto de 2020 foi detido juntamente com outras três pessoas por fraude na recolha de donativos relativos a uma iniciativa para a construção do muro Estados Unidos-México. Está acusado de se ter apropriado de pelo menos um milhão de dólares recolhidos na campanha “We build the Wall”, tendo sido libertado sob uma fiança de 5 milhões de dólares. Trump, antes de sair, indultou Bannon em 20 de Janeiro de 2021 (consultado em Wikipedia aqui, em 06/01/2022).

[2] N.T. O que é o ARN e o ARNm? Segundo o National Human Genome Research Institute (consulta em 07/01/2022 aqui e aqui), o Ácido Ribonucleico (ARN) é uma molécula similar à do ADN. Mas diferentemente do ADN, o ARN é de cadeia simples. Um filamento de ARN tem um eixo constituído por um açúcar (ribosa) e grupos de fosfato de forma alternada. Unidos a cada açúcar encontra-se uma das quatro bases adenina (A), uracilo (U), citosina (C) ou guanina (G). Existem diferentes tipos de ARN numa célula: ARN mensageitro (ARNm), ARN ribossomal (ARNr) e ARN de transferência (ARNt). Mais recentemente, foram encontrados alguns ARN de pequeno tamanho que estão envolvidos na regulação da expressão genética. O ARN mensageiro (ARNm) é uma molécula de ADN de cadeia simples, complementar a uma das cadeias de ADN de um gene. O ARNm é uma versão do ARN do gene que sai do núcleo celular e se move para o citoplasma onde se fabricam as proteínas. Durante a síntese de proteínas, um orgânulo chamado ribossoma move-se ao longo do ARNm, lê a sua sequência de bases, e utiliza o código genético de tradução de cada triplete de três bases ou códão, no seu aminoácido correspondente. Resumindo (ver aqui): a principal diferença entre ARN e ARNm é que o ARN é o produto da transcrição dos genes no genoma, enquanto o ARNm é o produto processado do ARN durante as modificações pós trancripcionais e serve como modelo para produzir uma sequência particular de aminoácidos durante a tradução em ribossomas.

 


O autor: Tom Bartlett é escritor de Austin (Texas) e os seus artigos têm aparecido, além do The Atlantic, no Washington Post, Texas Monthly, The New York times, Slate, Politico e outros. É escritor senior no The Chronicle of Higher Education.

 

 

 

 

 

 

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