A Guerra na Ucrânia — “A ciência política e a fé”.  Por Carlos Matos Gomes

Seleção de Francisco Tavares

5 m de leitura

A ciência política e a fé

 Por Carlos Matos Gomes

Em 8 de Maio de 2022 (original aqui)

 

Um misto de firmeza e moderação é, porventura, a melhor forma de caracterizar a postura de Raymond Aron em relação à política internacional, mas cabe também referir a plena consciência que tinha das complexidades e da necessidade de agir e de fazer escolher, ciente de que, tal como aliás já o referira na sua tese «Introduction à la Philosophie de l’Histoire», uma decisão é sempre tomada entre a ignorância e a incerteza. Contudo, o primeiro princípio do método de Aron consiste em nunca perder de vista a complexidade, mesmo quando se age, nem nunca esquecer a necessidade de efetuar escolhas, inclusivamente quando se analisam essas complexidades. Outros princípios ficaram bem patentes no final da sua sessão inaugural na Sorbonne. E a eles sempre se manteve fiel, fosse qual fosse a polémica: respeito pelos factos e respeito pelos seus interlocutores, disposição para admitir os casos, raros, em que fizera um juízo errado e para alterar a sua postura em consequência. Pierre Hassner.

 

O que distingue, no atual contexto, um cientista político, indígena luso e televisionável, e das «breaking news» da TVI, da SIC dou da RTP de um pastor religioso da IURD, das Testemunha de jeová ou dos Talibans? Nada!

Pelo que me tem sido dado a ouvir aos “cientistas políticos” com graus de “professores universitários” e a ler o que escrevem nas redes sociais, nas análises sobre a guerra na Ucrânia, a guerra, o fenómeno social mais total e antigo da Humanidade é por eles, “cientistas”, explicado em termos de fé! As mesas dos estúdios são altares, os seus sites nos FB são publicidade patrocinada! Aguardam na Ucrânia a repetição do milagre das muralhas de Jericó! Estamos perante meninos de Deus que vendem bíblias, mas surgem identificados nos rodapés como “cientistas sociais”!

Há, por parte dos ditos “cientistas sociais”, uma proposição de partida: ou se acredita neles e se pertence ao reino dos bons e se vai para o Paraíso, ou se duvida, questiona e pertence-se aos satânicos e vai para um Inferno. Quem já viu televisão num país islâmico percebe bem o que são hoje as sessões de análise do conflito pelos “cientistas políticos”.

Há muitos anos que sou um crítico da atribuição do estatuto de ciência aos estudos sociais. A epistemologia das ciências sociais funda-se em 3 linhas: positivismo, fenomenologia e marxismo. Mas a questão que nenhuma das escolas resolve é a questão de fundo: O cientista das ciências exatas está separado do fenómeno. Newton estava separado da maçã. Uma velha e nunca resolvida questão: O “cientista político” e social está inserido no objeto que analisa, na sociedade, com os seus preconceitos, as suas experiências anteriores. Ele é parte do fenómeno. Está dentro da maçã que cai na cabeça do Newton. É a água que fez o Arquimedes flutuar.

O bombardeamento de análises de uma multidão de “cientistas políticos” chamados aos púlpitos para explicar o fenómeno desta guerra na Ucrânia revelou a ausência de qualquer método científico na abordagem do fenómeno. A ciência assenta da dúvida. A tal dúvida metódica, ou cartesiana que é (era) o beaba da entrada na ciência. Só tenho ouvido certezas. Quando um cientista tem certeza passa, para mim, à categoria de delegado de propaganda. É o que temos, que bonda.

Os princípios da ciência são neutros, tenho visto “cientistas políticos” a cientificarem com base na moral! (E sorridentes!!!)

Alguns chegam ao ponto de considerar bons os projéteis ocidentais e maus os projéteis russos!

A ciência baseia-se na comparação de um dado fenómeno com outro idêntico: por isso podemos fazer tabelas de marés, de eclipses, de terramotos… Os “encartados” “cientistas políticos” e sociais desta guerra, como de outras, diga-se, incluindo a das colónias portuguesas, nunca referem, nunca os ouvi referir, a não ser a alguns militares chamados a colocar alguma racionalidade na algazarra, os princípios da guerra, os tratadistas da guerra, de Sun Tze a Clausewitz, de Napoleão, a Mckinder, não falam de estrategas políticos, de Kissinger a Brzezinski, nem de pensadores políticos, de Platão, Machiavel, Montesquieu, Hobbes, Kant, Sartre, ou ao muito ocidental e atual e felizmente ainda vivo Raymon Aron.

Sobre o pensamento a propósito da guerra, os “cientistas políticos” dizem: Nada! Estão em branco! Presume-se que os desconheçam e que se tomem eles próprios como manancial de saber e conhecimento. Gritam Deus salve a Ucrânia! Acreditam num deus que sabe onde é a Ucrânia e que a Ucrânia tem um Deus, não sei de Biden, se Zelenski! Mas eles sabem. Ciência pura!

Cientistas políticos portugueses (existe um estranho fenómeno de provincianismo que faz os cientistas políticos portugueses ainda mais marginais a qualquer teoria aceite do que noutros países com outras tradições intelectuais) surgem em público a garantir que não admitem quem ponha em causa qualquer outra posição sobre a guerra na Ucrânia que não seja a da condenação. Uma atitude moral, mas que destrói o fundamento de a ciência ser por natureza, materialista (i.e. neutra) e que transforma a análise política em teologia.

Estes cientistas morais (desculpem a contradição) não têm consciência da existência de várias «modalidades do Juízo», vivem em pousio (ou vazio) intelectual, não distinguem entre diversas categorias de juízos: assertóricos ou afirmativos; juízos apodíticos, os que proclamam o carácter necessário ou incontestável de um juízo. Eles, os “cientistas políticos” televisionáveis e sociáveis, são pela imposição do juízo hipotético: o seu! Para eles, se algo é possível e lhes convém, passa a ser a realidade! Oiçam-nos a falar (divagar), leiam-nos sobre as intenções de Putin, da NATO, de Biden, da China, da Índia, até das Ilhas Salmão!

Como respeitar uma ciência cujos “cientistas” não poem em causa o que vêm? Que são adivinhos e feiticeiros que leem a realidade em búzios e tripas de galinha? Que jamais duvidariam que é o Sol que roda à volta da Terra. Ou que, vendo cair flocos de neve e pedras de granizo, concluiriam que a neve é mais leve que o granizo, pois cai a uma velocidade menor!

Como respeitar “cientistas políticos” que tratam esta guerra como se fosse a primeira guerra de que têm conhecimento na História da Humanidade? E se arregalam de espanto com o que veem?

Acredito que esses “cientistas empíricos” e assentes na investigação com base na moral (na sua), se afastariam de Newton, e até de Arquimedes, não porque a um tenha caído uma maçã na cabeça e o outro surgisse nu a gritar Eureka!, mas porque contrariavam o que se está mesmo a ver que é assim. As maçãs caem e a água serve para o banho!

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O autor: Carlos Matos Gomes [1946-] é coronel do exército reformado, cumpriu três missões na Guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné, nas tropas especiais dos “Comandos”. Ficou ferido em combate e foi condecorado com as Medalhas de Cruz de Guerra de 1.ª e 2.ª Classe.

Capital de Abril pertenceu à Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné.

Investigador de história contemporânea de Portugal. É escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz.

Autor de: Nó Cego (1982), Os Lobos não Usam Coleira (1995), Soldadó (1996), Flamingos Dourados (2004), Fala-me de África (2007), Basta-me Viver (2010), A Mulher do Legionário (2013), A Estrada dos Silêncios (2015), A Última Viúva de África (2017, Prémio Fernando Namora 2018), Que fazer contigo, pá? (2019), Angoche-Os fantasmas do Império (2021). Em co-autoria com Aniceto Afonso: Guerra Colonial (2000), Guerra Colonial – Um Repóter em Angola (2001), Portugal e a Grande Guerra 1914-1918 (2013), Os Anos da Guerra Colonial 1961-1975 (2010), Alcora. O Acordo Secreto do Colonialismo. Portugal, África do Sul e Rodésia na última fase da guerra colonial (2013), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. Uma História Diferente (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. As Trincheiras (2014), Portugal e a Grande Guerra 1917 – 1918. Uma Guerra Mundial (2014), Portugal e a Grande Guerra 1919-. O Pós-Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1918 – 1919. O fim da Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914- O Início da Guerra (2014), A Conquista das Almas. Cartazes e panfletos da acção psicológica na guerra colonial (2016).

 

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