Hiroshima e Nagasaki, ou a falsa justificação de uma paz imediata e total — “A Denúncia de Robert Oppenheimer sobre a Cultura de Bombas dos Estados Unidos e a Supressão Contínua dos Cientistas Dissidentes”. Por Dennis Riches

Nota:

O texto que hoje publicamos, como mostra de veneração e respeito pelos trágicos acontecimentos ocorridos em 6 e 9 de Agosto de 1945 em Hiroshima e Nagasaki, transcreve uma entrevista, datada de Fevereiro do corrente ano, ao autor do livro American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer (2006).

Curiosamente, há quase 80 anos atrás, mais precisamente em Junho de 1945, Marriner Eccles – que durante 14 anos (1934-1948) foi presidente da Federal Reserve dos Estados Unidos, e de quem foi dito que ele próprio foi a história económica americana -, esteve presente num jantar em casa do senador Brian McMahon, cujos convivas incluíam vários líderes do congresso e o então subsecretário de guerra, Robert Patterson.

De acordo com o relato de Sydney Hyman [1] “…a certa altura, na conversa após o jantar, o senador Scott Lucas pediu a Marriner que lhes expusesse as suas perspetivas quanto às forças inflacionistas que a nação estava a enfrentar” ao que Marriner Eccles respondeu que “… embora fosse presunçoso da sua parte dizer aos militares como travar a guerra contra o Japão, ele pensou que poderia fazer algumas observações sobre a relação entre as despesas militares correntes e o problema da inflação. Em apoio ao seu agora familiar testemunho de que a taxa de despesas militares deveria ser drasticamente reduzida, observou que, com a Alemanha fora da guerra e com o Japão sozinho no terreno, os Estados Unidos poderiam travar uma guerra de atrito contra o Japão em vez de reafectar as forças americanas na Europa para um ataque anfíbio contra o território japonês. A marinha japonesa tinha sido expulsa dos mares, e os seus aviões, dos céus, e as ilhas japonesas estavam sob bloqueio (…) Como poderia o Japão escapar a uma inevitável rendição de uma guerra de atrito? Marriner não via razão para que, com todas as frotas inimigas afundadas ou capturadas, a Marinha dos E.U.A. tivesse ordenado a construção de navios que “não estariam prontos de um a três anos”. Ele não via razão para que a incorporação de homens nas forças armadas continuasse a um ritmo que levou a dimensão do establishment militar americano atingisse o seu pico após o dia VE. A mão-de-obra poderia ter sido melhor utilizada na produção civil para fazer face a problemas internos quanto à inflação e de reconstrução na Europa. (…) Em suma, uma vez que o problema de ganhar a paz na Europa dependia em grande medida do que poderia ser feito para manter condições económicas internamente que servissem tanto os desejos da América como da Europa, o mais prudente seria fazer um corte imediato nas despesas militares” (sublinhado nosso). A estas palavras de Marriner Eccles, o subsecretário de guerra Patterson respondeu de forma curta e cortante:  “O povo americano “, disse ele, “exige uma guerra total e uma paz imediata e total. Não há forma de abrandar. Temos de continuar a fazer um esforço – máximo até que a guerra termine, porque para além de uma guerra total e de uma paz total, o povo americano quer uma desmobilização completa, não uma desmobilização parcial como o senhor sugere (sublinhado nosso)”. Esta posição do subsecretário de guerra não deixa de poder ser ligada aos terríveis acontecimentos que se seguiram em Agosto de 1945 no Japão: a primeira deflagração da bomba atómica sobre Hiroshima e Nagasaki.

Ou seja, Eccles afirma que com um exército derrotado não vale a pena estar a investir em barcos (para serem entregues daqui a três anos) para atacar depois o Japão quando ele já está derrotado hoje. Com esse raciocínio ele conclui que vale mais cortar nas despesas de guerra e fazer despesas de apoio à população americana e à Europa. A resposta de Peterson mostra que as forças armadas entregues a si mesmas só pensam em despesa e mais despesa. E isto é o que se também hoje. E permite também deduzir que já nesse momento (em Junho de 1945) os EUA estariam a preparar a deflagração da bomba atómica sobre o Japão.

Marriner Eccles, tal como Robert Oppenheimer nessa altura, não podia conceber a tragédia que o governo de Harry Truman preparava. Oppenheimer, que supervisionou o projecto de construção da bomba atómica, estava muito consciente dos dilemas éticos e morais em torno da construção da bomba e da sua utilização, particularmente depois de ter sido testada. Oppenheimer, “Após a guerra, apercebeu-se de que era usada sobre um inimigo que essencialmente já estava derrotado, o Japão, não a Alemanha, e que era uma arma terrível, que era uma arma para os agressores. Era uma arma que não podia ser usada defensivamente. Só podia ser usada em cidades. Precisava de grandes alvos. Assim, tornou-se um adversário do armamento nuclear, um adversário especificamente do projecto de construção de uma bomba H após a guerra (…) Porque se opôs à bomba H, tornou-se alvo do FBI e de opositores políticos, e finalmente, (…), foi de facto levado a julgamento num processo secreto de um tribunal fantoche, tendo-lhe sido retirada a credenciação de segurança e foi declarado um risco de segurança. Tornou-se um pária”.

Da posição de Marriner Eccles, embora estivesse enquadrada numa análise económica, parece poder dizer-se que nem lhe passaria pela cabeça o desfecho que ocorreria pouco depois, em Agosto de 1945, com as explosões atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Eccles não estava infetado pela cultura das bombas e de perseguição aos dissidentes que posteriormente se veio a instalar nos Estados Unidos.

Júlio Mota e Francisco Tavares

 

Nota

[1] Vd. prefácio da obra Marryner S. Eccles-Private Entrepreneur and Public Servant da Stanford University Press, 1976

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

16 m de leitura

A Denúncia de Robert Oppenheimer sobre a Cultura de Bombas dos Estados Unidos e a Supressão Contínua dos Cientistas Dissidentes

 Por Dennis Riches

Publicado por   em 20 de Maio de 2022 (original aqui)

 

 

O texto abaixo é a transcrição de uma entrevista que foi transmitida na RT America, apenas alguns dias antes da operação militar especial na Ucrânia, após a qual a empresa de comunicação social russa foi forçada a fechar e a deixar os Estados Unidos. É irónico que o tema da entrevista tenha sido a caça às bruxas nos Estados Unidos da guerra fria dos anos 50 que, entre outros actos atrozes, perseguiram o mais célebre cientista do país, Robert Oppenheimer, quando este tentou avisar o presidente das consequências catastróficas da construção de um enorme arsenal nuclear para fins de supremacia militar. Aqui estamos quase oitenta anos mais tarde numa nova era de censura e repressão e líderes mundiais que não dão ouvidos ao aviso de dissidentes que apelam à resolução pacífica de disputas entre as chamadas “as grandes potências rivais”.

Tinha muito para escrever sobre a entrevista, mas os leitores têm de terminar a transcrição primeiro, ou ouvir a entrevista online. É por isso que a minha discussão se encontra nas notas finais, após a transcrição. Por favor, leia-as em vez de as ignorar, como se fossem apenas uma lista de referências.

 

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Chris Hedges entrevista em 20 de Fevereiro de 2022, no programa On Contact, Kai Bird, coautor con Martin J. Sherwin, de American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer (2006).

 

Chris Hedges (CH): Bem-vindo ao On Contact. Hoje debatemos J. Robert Oppenheimer e a fabricação da bomba com o autor Kai Bird. J. Robert Oppenheimer, o “pai da bomba atómica”, foi, no final da Segunda Guerra Mundial, um dos homens mais célebres da América. Ele foi fundamental como um dos principais físicos teóricos do mundo no esforço maciço do governo para construir as bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, mas na histeria anticomunista do pós-guerra, foi declarado um risco de segurança devido aos seus avisos sobre o uso de armas atómicas e à sua oposição ao desenvolvimento da bomba de hidrogénio, bem como aos planos da Força Aérea para o bombardeamento estratégico maciço com armas nucleares – planos que ele condenou como genocidas. Foi levado perante as anti-comunistas comissões de investigação do Congresso. O FBI colocou os seus telefones de casa e do escritório sob escuta e colocou-o sob vigilância. Histórias caluniosas sobre o seu passado político foram plantadas na imprensa, e ele foi finalmente levado a julgamento, tornando-se a vítima mais proeminente da caça às bruxas anticomunistas do pós-guerra na América. Oppenheimer foi uma figura central nas maiores lutas e triunfos enfrentados pelos Estados Unidos na guerra, ciência, justiça social e, por fim, na própria guerra fria. Ele supervisionou o desenvolvimento da arma mais devastadora da história da humanidade, e depois passou o resto da sua vida a avisar que esta arma de terror indiscriminado não nos tornava mais seguros, mas sim mais vulneráveis. A única defesa eficaz contra o pesadelo nuclear, disse ele, era a eliminação das armas nucleares. Por este aviso, foi impiedosamente silenciado.

Temos a bomba na nossa mente desde 1945, e E.L. Doctorow observou que era “primeiro o nosso armamento e depois a nossa diplomacia, e agora é a nossa economia. Como é que podemos supor que algo tão monstruosamente poderoso comporia, após 40 anos, a nossa identidade? A grande maquinação que fizemos contra os nossos inimigos é a nossa cultura, a nossa cultura da bomba – a sua lógica, a sua fé, a sua visão”[1]. Juntando-se a mim para debater Oppenheimer, que tentou salvar-nos da cultura da bomba pela contenção da sua fúria destrutiva, uma fúria que ele ajudou a fazer nascer, está Kai Bird, que, juntamente com Martin Sherwin, escreveu a biografia vencedora do Prémio Pulitzer, American Prometheus: O Triunfo e a Tragédia de J. Robert Oppenheimer [2]. Comecemos com isto, que eu realmente não compreendia até ter lido o seu livro: a dimensão deste esforço para construir a bomba. Era enorme, milhares de pessoas. Penso que isso coloca em contexto o que Oppenheimer supervisionou. Depois voltaremos a falar um pouco sobre ele.

Kai Bird (KB): Sim, o Projecto Manhattan foi justamente um empreendimento enorme. Gastou cerca de dois mil milhões de dólares, em dólares da Segunda Guerra Mundial, mas isso era uma fortuna. Oppenheimer tinha trinta e quatro anos de idade quando foi contratado para o supervisionar, para ser o director científico em Los Alamos. Pensou inicialmente que talvez várias centenas de cientistas e engenheiros pudessem construir este engenho. Rapidamente se tornou claro que precisavam de milhares, e Los Alamos tornou-se uma cidade secreta de 6.000 engenheiros, químicos, físicos, a maioria dos quais jovens na faixa dos 20 e 30 anos. Eles conseguiram o impossível. Em dois anos e meio construíram esta arma de destruição maciça, e, claro, é importante compreender a motivação de Oppenheimer, porque ele tinha estudado física quântica na Alemanha. Ele compreendeu antes mesmo do início da guerra que isto era uma coisa teórica que era possível fazer – construir uma bomba atómica – e temia que quando a guerra começasse e a América se envolvesse nela, os alemães ganhassem a corrida. Ele conhecia os físicos alemães. Temia que eles entregassem a bomba a Hitler e ao nazismo, e ele era um homem de esquerda e dedicado a tentar ganhar a guerra e a ajudar a América a derrotar o fascismo. Foi por isso que construiu a bomba, e depois, ironicamente, após a guerra, apercebeu-se de que era usada sobre um inimigo que essencialmente já estava derrotado, o Japão, não a Alemanha, e que era uma arma terrível, que era uma arma para os agressores. Era uma arma que não podia ser usada defensivamente. Só podia ser usada em cidades. Precisava de grandes alvos. Assim, tornou-se um adversário do armamento nuclear, um adversário especificamente do projecto de construção de uma bomba H após a guerra que o seu colega Edward Teller propôs. Porque se opôs à bomba H, tornou-se alvo do FBI e de opositores políticos, e finalmente, como mencionou, foi de facto levado a julgamento num processo secreto de um tribunal fantoche, tendo-lhe sido retirada a credenciação de segurança e foi declarado um risco de segurança. Tornou-se um pária. Universidades na América desconvidaram-no depois daquela audiência de 1954, por isso é uma extraordinária história shakespeariana em que ele, quando jovem, alcançou este incrível triunfo da ciência e da engenharia e ajudou a América a “acabar com a guerra” como tal, e o seu rosto foi colocado na capa do Time and Life em 1945, e ele tinha-se tornado o cientista americano mais famoso, excepto talvez Albert Einstein. Depois, nove anos mais tarde, tornou-se vítima, a principal celebridade vítima de toda a caça às bruxas de McCarthy. É uma história extraordinária.

CH: Falemos de Einstein porque você utiliza-o para fazer uma justaposição entre as relações de Einstein, sobre o poder. Quando Oppenheimer perdeu a sua credenciação de segurança, ambos estavam no The Institute for Advanced Studies em Princeton, e Einstein chamou-lhe idiota. Ele usou o termo em Yiddish para tolo. Esqueci-me do que é. Fale sobre isso. É fascinante que Einstein tenha compreendido como o poder funcionava. Deveríamos ter claro que mesmo quando ele estava a supervisionar este projecto, a hierarquia militar não confiava nele. O seu guarda-costas e o seu motorista estavam encarregados de o espiar. O seu correio era aberto. O seu irmão [Frank Oppenheimer], que se tinha tornado um pária devido a associações com o Partido Comunista, tinha sido alvo de um boicote. Nem sequer lhe era permitido comunicar. Por isso, mesmo durante o projecto houve um tremendo controlo. E eu só quero atirar isto porque está no seu livro. Deixa claro que quando largaram a bomba, não foi porque precisavam de quebrar a vontade dos japoneses. Era para enviar uma mensagem à União Soviética.

KB: Nós defendemos que no Verão de 1945, era claro que a bomba não era necessária para ganhar uma rendição da máquina de guerra japonesa, mas havia pessoas na administração Truman, especificamente Jimmy Burns, o Secretário de Estado, que era muito próximo de Harry Truman nessa altura. Burns argumentou que se tratava de uma arma que deveria ser demonstrada e utilizada para dar um aviso à União Soviética. Foi utilizada como uma mensagem a enviar aos soviéticos e não aos japoneses, mas essa é uma posição extremamente controversa. A maioria dos americanos, e particularmente a maioria dos veteranos americanos que lutaram na Segunda Guerra Mundial, viram uma coisa acontecer. A bomba caiu sobre Hiroshima, e alguns dias depois os japoneses renderam-se, pelo que acreditam – e esta é a sabedoria comum – que a bomba ganhou a guerra ou terminou a guerra mais cedo. Mas essa é uma narrativa muito simplista, penso eu, e tornou-se muito mais complicada. O próprio Oppenheimer reconheceu isto, e no espaço de três meses estava a fazer discursos em Filadélfia falando sobre como esta era uma arma que tinha sido usada sobre um inimigo que essencialmente já estava derrotado.

CH: Quero falar um pouco sobre a motivação por detrás da bomba porque aqueles que trabalhavam para construir a bomba acreditavam que ela era um instrumento para derrotar o fascismo. Talvez possa mencionar justamente essa conversa misteriosa entre Heisenberg e Bohr. Em última análise, eles perceberam que não iria ser usada de modo nenhum contra o fascismo. E também quero que fale um pouco sobre este entendimento. O que torna a biografia tão fascinante é que Oppenheimer era tão auto-reflexivo. Cresceu num ambiente muito ético e, no entanto, percebeu que aquilo a que se tinha dedicado era a destruir potencialmente a vida humana tal como ela existe, mas também a destruir fisicamente os lugares que ele amava como Los Alamos, o que ele lamenta.

KB: Sim, teve muitos remorsos no final da sua vida, e estava extremamente consciente de si próprio. Ele era um jovem muito inteligente e consciente de si próprio que, como mencionou, cresceu com a Sociedade de Cultura Ética, com uma formação judaica. A sua formação religiosa como tal foi com a Sociedade de Cultura Ética, e estava constantemente preocupado com a ética do que fazia. Conto uma história no livro sobre Niels Bohr, o grande físico quântico dinamarquês, que escapou da Dinamarca no meio da guerra e chegou a Los Alamos no último dia de 1943. Ele viu a cidade secreta quando aterrou, e a primeira pergunta que fez a Oppenheimer quando o viu foi: “Oppi, será suficientemente grande?” Isto significava: “Será a bomba suficientemente grande para acabar com toda a guerra?”. Será que vai deixar claro que já não podemos ter uma guerra total, como estavam a experimentar na Segunda Guerra Mundial? Havia esta noção em que muitas vezes o próprio Oppenheimer acreditava – este argumento era realmente um raciocínio que dizia: “Se demonstrarmos o poder desta arma, tornará impossível para as sociedades no futuro conduzir uma guerra industrial, porque seria suicídio”. E, claro, este foi o argumento na Primavera de 1945, quando os seus próprios físicos se aperceberam, como mencionou, que a bomba não ia ser construída a tempo de ser usada na Alemanha e no fascismo alemão, e que se o Japão era o alvo, os japoneses certamente não tinham a capacidade de construir esta bomba. Eles sabiam que estavam muito atrasados. Qual é então a ética de tentar usar esta bomba nas cidades japonesas? E Oppenheimer fez valer o argumento de Neil Bohr segundo o qual precisamos de demonstrar isto para mostrar ao mundo o que é possível. Caso contrário, a próxima guerra será travada com dois lados armados com armas nucleares, porque não havia aqui nenhum segredo sobre como construir uma bomba. Qualquer físico em qualquer parte do mundo que compreendesse a física quântica seria capaz de a descobrir, particularmente depois de ter sido testada em 1945. Oppenheimer estava muito consciente dos dilemas éticos e morais em torno da construção da bomba e da sua utilização.

CH: [Falando] sobre esta fantasia de que esta bomba seria tão destrutiva que acabaria com todas as guerras, tanto Bohr como Oppenheimer argumentaram que, para o conseguir, ela tinha de ser partilhada com a União Soviética. Penso que foi Bohr que chegou a Los Alamos e perguntou: “Onde estão os russos?” que foram nossos aliados, claro, na Segunda Guerra Mundial. Havia cientistas britânicos, e Fuchs era alemão, mas tinha adquirido a cidadania britânica. Ele estava a espiar em nome da União Soviética, tal como Ted Hall. (Será que temos o nome certo?) Hall nunca foi realmente descoberto, mas houve uma tentativa de esconder este projecto dos nossos aliados soviéticos, e isso era algo que Oppenheimer estava profundamente preocupado porque acreditava na transparência. Talvez possa explicar isso.

KB: Era um cientista que compreendia que não havia realmente segredos, e era solidário com… Temia muito que os fascistas alemães pudessem ganhar a guerra e vencê-la com esta arma. Por outro lado, os seus críticos após a guerra. Uma das razões pelas quais foi julgado foi a suspeita, nunca provada, de que poderia ter sido um espião para os russos. Demonstramos muito claramente que isto não era verdade. Ele nunca fez qualquer espionagem. Ele nunca passou qualquer informação. Ele trabalhou arduamente para construir esta arma e dá-la aos militares americanos, e depois veio a lamentar a forma como foi utilizada, e como a América passou a confiar nesta arma. Isto está relacionado com a sua citação, a sua maravilhosa citação de E.L. Doctorow, que penso que lança uma enorme luz sobre a cultura da bomba que a América abraçou após a Segunda Guerra Mundial. Sim, a forma como foi usada no final foi para enviar uma mensagem aos soviéticos. Temos um grande martelo no bolso de trás, e podemos usá-lo, e queremos usá-lo como uma arma de diplomacia. Oppenheimer compreendeu que não havia segredos, não havia segredos científicos, e que se ele pudesse descobrir como construir esta arma, também os físicos russos o poderiam fazer, e na verdade eles estavam a trabalhar arduamente na construção de uma bomba atómica. Eles iam fazê-lo com ou sem espiões. Os espiões podem ter ajudado a acelerar um pouco o calendário em alguns meses. Relato no livro que em Outubro de 1945, após o fim da guerra, ele foi ter uma reunião com o Presidente Harry Truman na sala oval, e estava a tentar discutir com Truman, para o fazer compreender que não se tratava de uma arma em que ele deveria confiar. Ele não devia investir nela. Ele não devia construir um grande arsenal de armas nucleares. Era uma arma que acabaria por ameaçar os Estados Unidos mais do que poderia dar poder à política externa americana. Truman interrompeu-o e disse: “Bem, deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Quando pensa que os russos vão conseguir ter a bomba”? Oppenheimer ficou surpreendido e disse: “Bem, não tenho bem a certeza”, e Truman interrompeu-o, e disse: “Nunca, eles nunca a vão conseguir”. Oppenheimer compreendeu naquele momento que Harry Truman simplesmente não compreendia a ciência, e perdeu a cabeça, e disse: “Sr. Presidente, o senhor não compreende. Temos sangue nas nossas mãos. Utilizámos esta arma numa cidade civil, Hiroshima”, e isto, claro, foi exactamente a coisa errada para dizer a Harry Truman que explodiu e expulsou Oppenheimer da Sala Oval e disse aos seus auxiliares que nunca mais queria ver aquele cientista chorão no seu gabinete. Mas Oppenheimer compreendeu que os russos iam conseguir ter a bomba, e se tentássemos manter um monopólio sobre as armas atómicas, só iríamos acelerar uma corrida às armas nucleares, e isso seria uma coisa muito perigosa para o mundo. Ficou provado que ele tinha razão [3].

CH: Quero falar sobre Groves. Oppenheimer trabalhou para o General Groves, este graduado de 250 libras de West Point que supervisionou o projecto. Houve sempre uma desconfiança em relação aos cientistas, na altura e depois da guerra. Há uma linha no livro que diz que a produção de armas nucleares já não está relacionada com alvos. Relaciona-a com a capacidade de produção. Já nem sequer fazia sentido militar, e, no final em certa medida, este poder militar-industrial estabelecido, que nunca confiou nestas figuras como Oppenheimer, utilizou-as pelos seus conhecimentos científicos e depois levou esse conhecimento para perpetuar esta proliferação de armas nucleares.

KB: Sim, é uma questão de insanidade. Aderimos a esta noção de que as armas nucleares nos podem defender, e na verdade é precisamente o contrário. E a história ainda não acabou. Apenas duas armas de destruição maciça foram utilizadas em cidades, ambas em 1945 no Japão, mas existem milhares destas armas por aí, e no auge da guerra fria centenas tinham como alvo aterrar numa cidade na Rússia. Era uma loucura, e são muito perigosas. Em termos ambientais, são perigosas, e existe o perigo de acidentes nucleares [4]. O meu falecido colega, Marty Sherwin, que morreu em Outubro passado com a idade de 84 anos – o seu último livro foi publicado há um ano e era sobre a Crise dos Mísseis Cubanos. Ele documentou quão perto chegámos de uma guerra nuclear em Cuba em 1962, e evitámo-la apenas acidentalmente. É um problema muito sério, e ainda não acabámos com ele. Ainda não escapámos a esta crise, e mais países estão a adquirir estas armas. É um legado terrível e sobre o qual o próprio Oppenheimer, que morreu em 1967 com a idade bastante jovem de sessenta e quatro anos, estava extremamente consciente e preocupado.

CH: Quero falar sobre os seus próprios remorsos após a guerra. Você usou uma citação do Bhagavad-Gita: “Agora tornei-me na morte, o destruidor de mundos”[5]. Depois de terem feito explodir a bomba de teste, apertou a mão a Ken Bainbridge que o olhou nos olhos e disse: “Agora somos todos filhos da puta”. Quanto do resto da sua vida foi expiação?

KB: Ele nunca pediu desculpa publicamente. Na realidade, foi para o Japão. Não visitou Hiroshima, mas foi participar numa conferência em Tóquio, e foi recebido por um grupo de repórteres japoneses que lhe perguntaram se tinha algum arrependimento. O Dr. Oppenheimer deu uma das suas típicas respostas elípticas, dizendo: “Bem, não dormi pior ou melhor ontem à noite do que na noite anterior”. Mas era evidente que ele tinha remorsos. Sabemos por cartas que a sua esposa, Kitty Oppenheimer, escreveu precisamente na semana após os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, que Oppenheimer mergulhou numa depressão profunda. Ela estava segura de que ele conseguisse sair dela. E sabemos que disse em privado a amigos e colegas que nunca mais voltaria a trabalhar em armas nucleares, e tornou públicas as suas críticas à bomba H. Pagou um enorme preço político por isto quando foi julgado em 1954, e este é o legado com que ainda hoje vivemos. Estamos no meio de uma pandemia mundial que se prolongou claramente porque as pessoas desconfiam do valor da perícia, e dos cientistas em particular, e isto tem em parte as suas raízes no julgamento de Oppenheimer que atingiu especificamente o cientista mais célebre da América e o arrastou através da lama política e o desacreditou. Isto enviou um aviso aos cientistas para que não saíssem do seu território, para que não se tornassem intelectuais públicos. Não se pode falar de política. Mantenha os seus conhecimentos científicos e não tente pesar nos debates públicos [6]. Estamos a pagar um preço pesado por isto hoje, e tudo remonta ao julgamento de Oppenheimer em 1954.

CH: Bem, ele foi usado como exemplo, e isso enviou um calafrio, como você escreve, a toda a comunidade científica de que não lhes era permitido expressar quaisquer opiniões sobre o programa de armas nucleares ou qualquer outra coisa, ou acabariam como Oppenheimer. Temos de ficar por aqui. Foi Kai Bird que, juntamente com Martin Sherwin, escreveu a biografia vencedora do Prémio Pulitzer, American Prometheus: O Triunfo e a Tragédia de J. Robert Oppenheimer.

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Notas de discussão de Dennis Riches

[1] E.L. Doctorow, “The State of Mind of the Union”, The Nation, 22 de Março de 1986,” in E.L. Doctorow e Richard Lingeman (editor), Citizen Doctorow: Notes on Art & Politics: The Nation Essays 1978-2015 (The Nation Co., 2015).

[2] Kai Bird e Martin J. Sherwin, American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer (Vintage Books, 2006).

[3] A União Soviética detonou a sua primeira bomba atómica em 1949. Os EUA detonaram a sua primeira bomba de hidrogénio “entregável” nas Ilhas Marshall, em 1954. Os soviéticos detonaram a sua primeira bomba de hidrogénio em 1955. Oppenheimer estava certo. Harry Truman não tinha ideia de como seria impossível para os EUA manter um monopólio nuclear.

[4] Ver Robert A. Jacobs, Nuclear Bodies: The Global Hibakusha (Yale University Press, 2022). O livro de Robert Jacobs cobre em grande pormenor o que Kai Bird mencionou apenas de passagem aqui sobre os danos ambientais causados pelas armas nucleares. Embora as bombas nucleares nunca tenham sido utilizadas na guerra da forma como foram utilizadas no Japão em 1945, têm sido utilizadas continuamente desde então no que poderia ser considerado uma guerra global em câmara lenta. É uma guerra em que as nações têm degradado a sua própria saúde e segurança ao prepararem-se para a guerra, em vez de coexistirem pacificamente com os adversários. Milhões de vítimas que vivem na proximidade de numerosos locais de ensaio em todo o mundo foram feridas por precipitações radioactivas. Além disso, a precipitação radioactiva circundou o globo e é certo que teve efeitos nocivos em toda a vida, em todas as pessoas vivas desde 1945, embora os danos sejam impossíveis de medir porque esta causa é escondida por todas as outras causas de doenças – poluição química, pesticidas, os efeitos secundários de produtos farmacêuticos, alimentos processados, e o stress de viver numa civilização industrial – incluindo os vícios que resultam desse stress. Antes de qualquer bomba atómica ser detonada, num teste ou num conflito, foram causados danos às pessoas e ao ambiente pela extracção de minério de urânio, o processamento do minério em material fissionável, a divisão do urânio para ferver água e produzir plutónio, e o transporte e armazenamento de resíduos nucleares. A produção de materiais nucleares permitiu também a produção de armas com urânio empobrecido que foram efectivamente utilizadas num tipo de guerra radiológica não reconhecida na Sérvia (1999) e no Iraque (1991, 2003). A guerra nuclear é geralmente discutida como um cenário hipotético apocalíptico, e esta ênfase tende a suprimir o facto de já estarmos a viver o sonho sob a forma de uma guerra nuclear longa e de baixa intensidade.

[5] Ver Alex Wellerstein, “Oppenheimer and the Gita,” Nuclearsecrecy.com, 23 de Maio de 2014. Alex Wellerstein explica neste artigo que Oppenheimer, citando o Bhagavad-Gita, não significava que ele estava a reivindicar poderes divinos. A história da Escritura Hindu diz que um príncipe, Arjuna, não queria servir na guerra. O deus Vishnu exigiu que ele lutasse e provou o seu poder divino tomando a forma de multiarmas. Convenceu o príncipe de que devia submeter-se ao destino que lhe era exigido e, em qualquer caso, Vishnu continuaria com a sua guerra com ou sem a participação do príncipe. Assim, a destruição nuclear foi ordenada para acontecer – alguém mais destrutivo poderia ter feito a bomba primeiro, ou os bombardeamentos convencionais teriam arruinado Hiroshima e Nagasaki de qualquer maneira. A destruição nuclear não alterou o número total de mortos da Segunda Guerra Mundial. Vishnu dizia essencialmente: “Se não me conseguirem abalar, alguém o fará”. Wellerstein diz: “Não foi um caso do ‘pai’ da bomba declarando-se ‘morte, o destruidor de mundos’ num ataque de grandiosidade ou arrogância”. Oppenheimer não foi tão atormentado pela sua participação no Projecto Manhattan, algo pelo qual nunca expressou pesar. Pelo contrário, discordou das decisões sobre como utilizar a bomba, e depois de 1945 estava muito mais preocupado com os perigos da corrida às armas nucleares e a imprudência na construção de armas termonucleares.

[6] Kai Bird diz que a perseguição a Oppenheimer é um exemplo da supressão da perícia científica que tem relevância para a actualidade porque estamos no meio de uma pandemia mas “as pessoas desconfiam do valor da perícia”. Infelizmente, ele não esclarece quem são essas pessoas. No caso de Oppenheimer, as “pessoas” foram as agências governamentais que suprimiram os peritos científicos e condenaram o mundo ao pesadelo das armas nucleares. Seguindo esta lógica, a implicação de Kai Bird é que o governo está agora a suprimir os cientistas que discordam de Anthony Fauci, os funcionários eleitos, e os cientistas do complexo industrial farmacêutico, como Pierre Kory, Peter McCollough, Didier Raoult, Martin Kulldorff, Sunetra Gupta, Jay Bhattacharya e centenas de outros que condenaram a resposta oficial à pandemia. No entanto, a escolha de Kai Bird da palavra “povo” faz-me pensar se ele perdeu o fio da sua própria argumentação e se alinhou com a ideia de que é o povo – a horda não lavada, os deploráveis – que “desconfia do valor da perícia” – ou seja, a orientação de funcionários como Anthony Fauci. Se ele está a sugerir que Anthony Fauci é comparável a Oppenheimer, ele fez uma falsa analogia gritante. Anthony Fauci nunca desafiou qualquer presidente ou burocracia governamental sob a qual tenha servido, nem foi um dissidente expulso do sacerdócio científico, no seu caso o complexo farmacêutico-industrial.

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O entrevistador:  Chris Hedges [1956-] é um jornalista americano, ministro presbiteriano, autor e comentador. No início da sua carreira, trabalhou como correspondente de guerra freelance na América Central para The Christian Science Monitor, NPR, e Dallas Morning News. Fez reportagens para o The New York Times de 1990 a 2005, e serviu como diretor de escritório do Times Middle East e diretor de escritório dos Balcãs durante as guerras na ex-Jugoslávia. Em 2001, Hedges contribuiu para o artigo do The New York Times que recebeu o Prémio Pulitzer de 2002 para Reporting Explicativo pela cobertura do jornal sobre o terrorismo global. Produziu uma coluna semanal para Truthdig durante 14 anos até ao interregno do canal em 2020. Os seus livros incluem War Is a Force That Gives Us Meaning (2002), que foi finalista para o prémio de Não-ficção do National Book Critics Circle; American Fascists: The Christian Right and the War on America (2007); Death of the Liberal Class (2010); e Days of Destruction, Days of Revolt (2012), escrito com o cartoonista Joe Sacco.

Hedges acolheu o programa televisivo On Contact for RT America de 2016 a 2022, ano em que o RT foi obrigado a encerrar e a deixar os Estados Unidos.

Ver wikipedia, aqui)


O autor: Dennis Riches é professor de Inglês como língua estrangeira para alunos em graduação na Faculdade de Inovação Social da Universidade de Seijo no Japão, desde 2004. Foi leitor na Universidade de Tecnologia de Tóquio de 1999 a 2002.

Ensina inglês como língua estrangeira há mais de vinte anos no Japão e no Canadá. Começou este trabalho no mercado de escolas de língua inglesa em Tóquio, depois passou cinco anos no Canadá a ensinar programas patrocinados pelo governo para imigrantes, e programas privados para estudantes estrangeiros. Desde 1995, tem trabalhado em universidades japonesas, ganhando experiência na concepção de testes, concepção de programas de estudo, recrutamento de pessoal e estudantes, tradução, e tecnologia de aprendizagem de línguas. No ano académico de 2010-11, esteve em sabático a fazer investigação sobre programas canadianos de educação bilingue, com o objectivo de relacionar a experiência canadiana com a política educacional no Japão e a reforma educacional em geral.

Especialidades: Interesses no ensino e na investigação: A história do ensino das línguas; Aptidão e atitude de aprendizagem de segunda língua, e o seu contexto histórico e cultural: implicações para a política educativa; Utilizações para séries televisivas na aprendizagem de línguas estrangeiras; Tecnologia da aprendizagem de línguas e a mudança dos papéis dos professores; Psicologia evolutiva e crítica literária darwiniana.

É licenciado em literatura francesa pela Universidade de British Columbia, certificado de professor pela mesma Universidade e mestrado em Linguística pela Universidade de Surrey.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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