LEMBRAR ANA LUÍSA AMARAL (1956-2022) por Clara Castilho

Ana Luísa Amaral, a poetisa para quem

– a poesia não se compadece com velocidade e a arte não se compadece com velocidade  (1)

– a poesia pode fazer as pessoas melhores, porque nos move e nos comove.

– é absolutamente fundamental escrever, tal como  precisa de beber água ou como precisa de ler.

– gostaria de ver escrito no seu epitáfio “Deixa uma filha maravilhosa, amigos e poemas. Leva saudades.” (2)

 

Ana Luísa Amaral, a poetisa que

– achava que as palavras que sua filha indicaria como as que melhor a definiam seriam “indignação e inquietação”.  

– tinha dificuldade em falar de beijos e de cebolas

– detestava que mandassem nela.  (3)

– ficou estupefata com a atribuição do Prémio Rainha Sofia de Literatura Ibero-Americana.

– não acreditava numa visão radical, para a qual só as mulheres podem ser feministas e só os negros podem escrever sobre o racismo. (4)

Licenciada em Germânicas e doutorada em Literatura Norte-Americana pela FLUP, Ana Luísa Amaral era investigadora nos campos da Literatura e Cultura Inglesa e Americana. Foi estudiosa apaixonada da obra de Emily Dickinson e distinguiu-se como referência internacional nos Estudos Feministas. 

A sua obra poética foi este ano reunida no extenso volume O Olhar Diagonal das Coisas. Revelada nos anos 90 com Minha Senhora de Quê, seguiram-se Coisas de Partir (1993); Epopeias (1994); E Muitos os Caminhos (1995); Às Vezes o Paraíso (1998);  Imagens (2000); Imagias (2002); A Arte de Ser Tigre (2003); Poesia Reunida – 1990-2005 (2005); A génese do amor (2005); Entre dois rios e outras noites (2008); Se fosse um intervalo (2009); Inversos; Poesia 1990-2010, ( 2010); Vozes ( 2011); Próspero Morreu (poema em acto) ( 2011); Ara (2013); Escuro (2014); E Todavia (2015); What’s in a name (2017); Arder a Palavra e outros incêndios ( 018); Ágora (2019);  Mundo ( 2021).

De referir ainda a sua literatura para a infância e as suas traduções. Destacam-se os livros na sua área de especialidade como Dicionário de Crítica Feminista, em coautoria com Ana Gabriela Macedo, e a edição anotada de Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Foi pioneira dos Estudos Femininos no nosso país. Os seus livros estão traduzidos nas mais diversas línguas.

Foi distinguida com vários Prémios (Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes D’Escritas (2007); Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi (2007) Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (2008), Prémio Francisco Sá de Miranda)

ABANDONOS

Deixei um livro

num banco de jardim:

um despropósito

Mas não foi por acaso

que lá deixei o livro, embora o sol estivesse quase

a pôr-se, e o mar que não se via do jardim

brilhasse mais

Porque a terra, de facto, era terra interior,

e não havia mar, mas só planície,

e à minha frente: um tempo de sorriso

a desenhar-se em lume,

e o mar que não se via (como dizia atrás)

era um caso tão sério, e ao mesmo tempo

de uma tal leveza, que o livro:

só ideia

Essa sim, por acaso, surgida num comboio

e nem sequer foi minha, mas de alguém

que muito gentilmente ma cedeu,

e criticando os tempos, mais tornados

que ventos, pouco livres

E ela surgiu, gratuita,

pura ideia,

dizendo que estes tempos exigiam assim:

um livro abandonado

num banco de jardim

E assim se fez,

entre o comboio cruzando este papel

impróprio para livro,

e o tempo do sorriso

(que aqui, nem de propósito,

existe mesmo, juro, e o lume de que falo mais acima,

o mar que não se vê, nem com mais nada rima,

e o banco de jardim,

onde desejo ter deixado o livro,

mas só se avista no poema, e livre,

horizontal

daqui)

WHAT’S IN. A NAME , Assírio e Alvim

 

Não abandonemos a sua obra!

Veja esta interessante entrevista: 

http://https://www.rtp.pt/play/p9766/e634310/grande-entrevista

(1) Grande Entrevista da RTP, 6.8.22

(2) Expresso, 29.5.2019

 (3) – Entrevista a Anabela Mota Ribeiro,  Publico ,11.12.2011.

“Porque é que tem dificuldade em falar dos beijos e das cebolas?
Porque os beijos são reais, e encaminham-me para uma dimensão pessoal, de relação amorosa, de que não queria falar. Que não interessa muito, ou não interessa nada.”

(4) Entrevista ao Diário de Notícias, 15.6.2021:

“Como mulher branca, eu não posso sentir totalmente o que têm vivido os negros, mas posso (e devo) ser empática e solidária. Como tal, tenho propriedade para tratar esta questão”.

 

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