PALCO 125 – ANA LUÍSA AMARAL – por Roberto Merino

 

Para que serve o teatro? Para que serve o FITEI?  Ou do som e da fúria, do pão e dos silêncios

“É para mim uma honra ter sido convidada para abrir a 36ª edição do FITEI, este festival de teatro que alimenta a cidade do Porto há quase tanto tempo quanto aquele que nos separa do ano do 25 de Abril. E que, mau grado a escassez de apoios, os obstáculos, as dificuldades com que se tem deparado, e com que se depara no momento presente, irá, não tenho dúvidas, continuar a alimentá-la. Além do extraordinário papel de agente cultural que tem desempenhado no Porto, o FITEI tornou-se, fora da cidade e fora do país, uma referência de criatividade e de liberdade. Porque lhe assiste a grandeza da resistência e daquilo que, por sua vez, é alimento para os sons do mundo: a fúria, no mais puro sentido de entusiasmo, o mesmo que é de dizer de inspiração. Não estão serenos os palcos portugueses. Essa ausência de serenidade não significa, infelizmente, o sobressalto, coisa precisa para a arte e a ela intrínseca. A ausência de serenidade a que temos vindo a assistir, e que se está a agudizar, significa o aumento da precariedade, da instabilidade e da insegurança. E medo pelo presente e pelo futuro das artes cénicas. E todavia, nesta brutal crise (imposta) por que passamos, não haverá prioridades a que atender? Não deverão o teatro, e as artes em geral, ficar para um segundo, ou mesmo um terceiro, plano? Perante coisas tão urgentes como o pão, para que serve o teatro?, perguntarão alguns. Para que serve o FITEI? Porque é verdade que, pragmaticamente, com a fala de um actor ou de uma actriz não se edifica nada material. Meia dúzia de linhas em diálogo ou monólogo, e com ou sem metáforas, não montam uma indústria financeira. Um cenário não pode ser investido na bolsa de valores. Um diadema, quando transformado em adereço, é falso: uma imitação; uma contrafação do real. Tal como o espaço cénico a que pertence, ele é de um mundo em arremedo do mundo, aos pedaços mais ou menos reconhecíveis, mais ou menos manobráveis pela cor, pelo escuro. Pelos sons. Pelos silêncios. Mas porque vive, como nós, de sons e de silêncios, o teatro é um espelho de conversão de emoção e pensamento em emoções e pensamentos, operado pela voz e pelo olhar, e em bens que dificilmente são traduzíveis em propriedades materiais, mas que são bens de dentro e que nos tornam melhores pessoas e melhores viventes. E é um mundo ao qual, desde o mais pequeníssimo gesto de infância, se torna valioso aceder e sem o qual, ao crescermos, somos menos e estamos menores. Na verdade, um bem essencial. Como o pão. Isto sempre o provaram os teatros do Porto e as mais de três dezenas de edições do Festival Internacional de expressão Ibérica.

Assim vivemos: no esforço de sermos escutados e de nos dizermos pelos outros e com os outros. E no prazer de escutarmos e de vermos. E de pensarmos e de sentirmos. Por isso, para nada servindo de facto, e vivendo, tal como a verdadeira arte, ao arrepio das estatísticas, o teatro serve para tudo, porque integra não a lógica do capitalismo, mas o nosso humano capital simbólico. E, portanto, ainda que (ou precisamente porque) tratando de mundos deflectidos do mundo, ele pertence ao mundo em que vivemos. E tem, nos tempos duros que atravessamos, uma importantíssima função social. Teve-a sempre, nos tempos mais ferozes. A História ensinou-nos isso. E é fundamental que o recordemos. Por ser do mundo, e porque o diz, o teatro tem, tal como o pão, a urgência de ser reconhecido como necessário para a sobrevivência. E de ser socialmente acarinhado. Sublinho esta ideia de necessidade, que nada tem a ver com destino, mas com urgência. E com obrigações e deveres. Desse carinho, desse afecto social, devem fazer parte as instâncias institucionais, que têm obrigações para com os tecidos artísticos que compõem um país e alimentam um povo, não de pão, mas dessa fluida e indefinível matéria a que chamamos estética e que é motor para o desenvolvimento de um pensamento crítico sobre a vida. Porque nesse pensamento crítico reside também o desenvolvimento da nossa capacidade para criar redes e pontes. Isto faz o teatro. Isto tem feito o FITEI. Em várias línguas. A várias línguas. E com linguagens várias. Criando, nesta cidade das pontes, pontes e redes de sentido e de acção entre as comunidades de expressão ibérica e as comunidades locais, tornando aquelas que são esquecidas verdadeiras protagonistas, e acarinhando-as. E tem-no feito desde 1978, quase na mesma altura em que nos tornámos uma democracia. Como tantos e tantas de nós, recordo-me de assistir a peças que, para um país ainda havia pouco saído de uma ditadura, eram uma completa novidade e uma inestimável riqueza. Custa dinheiro montar um espectáculo, fazer cenários; custa dinheiro fazer figurinos. É decerto preciso, nestes tristes tempos em que vivemos, mudar os sistemas de produção. Mas é primordial, é urgente, e é da mais elementar justiça, remunerar condignamente todas as equipas criativas que formam os colectivos teatrais. Essa capacidade que o FITEI sempre teve de juntar as expressões teatrais ibéricas é algo a que não só as instâncias governamentais, mas também, e sobretudo, a municipalidade, não devem, não podem ficar indiferentes. E têm a obrigação e o dever de apoiar. Sob pena de perdermos as nossas raízes, ou de deixarmos que o coração se transforme na pedra mesma de que é feita esta cidade. Os que amam a arte e, portanto, os que amam o teatro, sabem que o som e a fúria só na poesia do teatro são sentidos vãos. Na vida, o seu sentido é pleno. E de fúria e de sons têm de ser estes nossos tempos. Por tudo isto, gostava de terminar com um poema que dediquei a 3 alguém que vivia para o teatro, para quem o FITEI era um verdadeiro acontecimento e que, em 2005, abriu uma outra edição deste festival; um homem querido a muitos de nós, para quem o silêncio convivia com a fúria e com o amor – Paulo Eduardo Carvalho. Escrevi o poema há já uns anos, por causa de uma frase do Paulo, a propósito da entrada para um dicionário. Estávamos os dois na minha varanda, era uma tarde de vento e falávamos de palcos, de feminismos e de vida. O Paulo defendia que fazia ali falta a entrada para “silêncio”, fundamental, dizia ele, para pensar a palavra, e, com ela, a justiça, a igualdade e a arte do palco. No dicionário nunca houve essa entrada; na vida, o poema fez-se assim

 

 

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