Da digitalização do ensino à sua fascização – a distância é vizinha de zero — Texto 5. Que raio de coisas é que eles aprenderam em Harvard e Yale.  Por Robert Reich

 

 

Dedico esta série de textos à memória de dois amigos meus, António Mateus e Arnaud Lantoine, dois professores para mim de referência, um que trabalhou na Escola Secundária D. Dinis, e o outro foi professor na Alliance Française e tradutor- interprete de conferências, ambos vítimas de doença prolongada. Dois professores que no seu campo de trabalho se bateram pela dignificação do ensino. Bem hajam, é o que posso dizer, em forma de definitiva despedida.

A série é constituída por um texto de Introdução e seis textos. Hoje publicamos o texto 5. Que raio de coisas é que eles aprenderam em Harvard e Yale, de Robert Reich.

 

JM

 


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

5 m de leitura

 

Texto 5. Que raio de coisas é que eles aprenderam em Harvard e Yale

 Por Robert Reich,

Publicado em 8 de Agosto de 2022 (original aqui)

 

A justificação original para o ensino superior de elite nos Estados Unidos era formar os futuros líderes da democracia americana. Como Charles W. Eliot, que se tornou presidente de Harvard em 1869, observou, Harvard existiu para inculcar os ideais de “serviço publico e de administração”.

Desde então, Harvard produziu oito presidentes dos EUA; Yale, cinco. (Stanford pode gabar-se de Herbert Hoover, se se sentir compelido a fazê-lo).

As universidades de elite também produziram um número desproporcionado de senadores e representantes de ambos os partidos. De facto, os republicanos eleitos para o Senado durante a última década são mais propensos do que os seus homólogos democratas a terem frequentado Harvard, Yale, Princeton ou Stanford.

Como explicar que:

– Elise Stefanik, uma diplomada de Harvard de 2006, seja agora a terceira deputada republicana da Câmara, que recentemente apelidou as audições de 6 de Janeiro de uma “caça partidária às bruxas “, que votou para invalidar as eleições de 2020 e que repetiu a Grande Mentira de Trump da fraude eleitoral?

– Ou Josh Hawley, diplomado de Stanford de 2002 e da turma de Direito de Yale de 2006, onde obteve o grau de Doutor em Jurisprudência, agora senador do Missouri, que em Dezembro de 2020 se tornou o primeiro senador dos EUA a anunciar planos para se opor à certificação da vitória de Joe Biden e que depois liderou os esforços do Senado para anular a contagem de votos do Colégio Eleitoral e que apoiou os desordeiros no dia 6 de Janeiro?

– Ou Ted Cruz, diplomado de Princeton de 1992 e de Direito de Harvard em 1995, agora senador do Texas, que no final de 2020 se associou ao complot de John Eastman e Trump para se opor aos resultados eleitorais em seis estados chave e para adiar a aceitação dos resultados do Colégio Eleitoral em 6 de Janeiro, permitindo potencialmente às legislaturas estaduais republicanas anulá-los?

E como explicar a nova colheita de candidatos republicanos ao Senado?

JD Vance, diplomado em Direito de Yale de 2013, agora candidato republicano do Ohio ao Senado, afirmou que havia “certamente pessoas a votar ilegalmente em larga escala” nas eleições de 2020. Quando questionado no início deste ano se a eleição de 2020 foi “roubada”, respondeu: “Sim, eu sei”.

Blake Masters, da classe de Stanford de 2008 e diplomado em direito por Stanford em 2012, agora candidato republicano do Arizona ao Senado, declarou em anúncios de campanha que “Trump ganhou”. Ele promove a “teoria da substituição” – que os Democratas favorecem a imigração ilegal “para que um dia possam ‘amnistiar‘ estas pessoas e torná-las eleitores que esperam que votem nos Democratas”.

Estes ex-alunos das melhores instituições de ensino superior da América não aderiram aos ideais de serviço público e administração das suas almas mater da democracia americana. De facto, eles estão a destruir ativamente a democracia americana.

Nem estes diplomados de elite podem afirmar que não conhecem nada melhor. A maioria dos universitários de um terceiro ano conseguem distinguir uma mentira da verdade.

Não, estes rebentos das mais prestigiadas universidades americanas são consciente e intencionalmente cúmplices do ataque mais perigoso à democracia americana desde a Guerra Civil.

O que é que eles aprenderam com a sua educação de elite? Obviamente, nada.

O núcleo de uma boa educação dos saberes liberais é a ética. A questão central é o significado de uma boa sociedade. Este tem sido o caso desde o século XVIII, quando a maior parte das prestigiadas instituições de ensino superior americanas foram fundadas.

Adam Smith, o pai da economia moderna, não chamou ao seu campo de estudo a economia. Chamou-lhe “filosofia moral”, e pensou que o seu livro A Teoria dos Sentimentos Morais era mais importante do que o seu A Riqueza das Nações.

Edmund Burke – estadista e filósofo irlandês, e padrinho do conservadorismo moderno – não aconselhou que as pessoas na vida pública procurassem acima de tudo o poder. Ele defendeu que elas devem ao povo o seu “julgamento e a sua consciência”.

Não há uma única resposta para o significado de uma boa sociedade, é claro. É a sua busca que se baseia no juízo e na consciência de cada um. É por isso que o ensino superior colocou à frente de tudo o papel da razão nos assuntos humanos e defendeu os valores iluministas da democracia e do Estado de direito.

Mas esta nova geração de candidatos republicanos não aprendeu nada do género. Eles são praticantes de um conjunto de ideias muito mais antigas e mais cínicas: que a força faz a lei, que o objetivo do esforço humano é alcançar o poder, e que a ambição e a traição triunfam (desculpem o verbo) sobre todos os outros valores.

Não posso deixar de me interrogar: O que é que eles veem quando se olham ao espelho todas as manhãs? E o que é que dizem a si próprios depois de um dia de mentiras?

Qualquer um deles que tente justificar os meios desprezíveis que emprega dizendo a si próprios que podem fazer mais bem ao ganhar ou manter o poder, está sob uma ilusão perigosa. Como disse uma vez o grande líder dos direitos civis Bayard Rustin: “Se desejamos uma sociedade que seja democrática, então a democracia deve tornar-se tanto um meio como um fim”.

Estes produtos da melhor educação que a América tem para oferecer estão a trair os valores fundamentais da América

Eles merecem apenas que nos envergonhemos deles.

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O autor: Robert Reich, antigo Secretário de Trabalho dos Estados Unidos [com Bill Clinton], é professor de Políticas Públicas na Universidade da Califórnia, em Berkeley e autor de Saving Capitalism: For the Many, Not the Few e de The Common Good. O seu mais recente livro é The System: Who Rigged It, How We Fix It. É colunista no The Guardian e a sua newsletter é robertreich.substack.com

 

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