A Guerra na Ucrânia- para lá dela — Energia, custo de vida e recessão.  Por Michael Roberts

Seleção e tradução de Francisco Tavares

17 m de leitura

Nota prévia: em alguns trechos do texto, designadamente em alguns dos gráficos, socorremo-nos da tradução publicada em  (ver aqui)

FT


Energia, custo de vida e recessão

 Por Michael Roberts

Publicado por  The Next Recession , em 4 de Setembro de 2022 (original aqui)

 

Os governos do G7 enfrentam um grande problema. A guerra na Ucrânia contra a Rússia não está ganha. Parece que será um longo conflito bem desgastante, aparentemente sem fim definido. E, no entanto, o mundo, e particularmente a Europa, dependem do fornecimento de energia fornecida pela Rússia. O G7 concordou em parar de comprar petróleo russo, como parte do programa de usar sanções económicas como arma de guerra. Mas até agora, as importações de energia da Rússia não foram interrompidas porque isso significaria uma catástrofe para os países da União Europeia, particularmente para a Alemanha. E a Rússia ainda está a vender grandes volumes – globalmente – embora com desconto do preço mundial – para a Índia, China e outras economias sedentas de energia.

No início de junho, a União Europeia concordou em impedir as suas empresas de “segurar e financiar o transporte, nomeadamente, por vias marítimas, de petróleo [russo] para terceiros” após o final de 2022, com o objetivo de tornar “difícil para a Rússia continuar a exportar petróleo bruto e produtos petrolíferos para o resto do mundo”. Mas isso ainda não está a ser implementado e os petroleiros gregos estão a fazer entregas de exportações de petróleo russo em todo o mundo. Até à última semana, o gás russo ainda estava a ser importado para a Europa.

Como resultado, o excedente comercial russo disparou à medida que as receitas de exportação de petróleo e gás aumentaram, impulsionadas principalmente por enormes aumentos de preços.

Numa imagem espelhada, a balança comercial da Zona Euro afundou-se num grave défice e o euro caiu em valor abaixo do dólar pela primeira vez em mais de 20 anos.

Os governos europeus têm tentado desesperadamente encontrar fontes alternativas de fornecimento de energia. Percorreram todo o mundo para comprar gás e petróleo a preços de mercado. Isso levou à subida em espiral dos preços do gás natural e do petróleo. No entanto, com grandes custos, a Europa tem vindo a aumentar o seu armazenamento de gás para enfrentar o próximo inverno. Os níveis de armazenamento de gás estão agora em 80% da capacidade e ainda mais altos na Alemanha.

Este resultado foi obtido por meio de importações mais caras de gás natural liquefeito (GNL), trazidas por navios. A Europa reduziu as suas importações de gás da Rússia (em parte por razões políticas, mas principalmente porque a Rússia reduziu o fornecimento de gás para 20% no gasoduto principal – e agora esta semana para zero). Para substituir essa perda, a Europa comprou GNL da Espanha e da América do Norte.

Mesmo assim, terá que usar toda a sua capacidade de armazenamento para passar o inverno sem cortes de energia. Uma questão, entretanto, subsiste: e depois?

É por isso que os líderes do G7 decidiram uma nova sanção contra a Rússia; eles esperam que ela acelere a capitulação russa na guerra na Ucrânia. Liderados por Janet Yellen, secretária do Tesouro dos EUA, propõem introduzir um teto de preço em todas as importações de petróleo da Rússia. Em vez de aplicar uma proibição geral de seguro ou financiamento de qualquer embarque de petróleo russo, crédito e seguro serão disponibilizados, desde que o preço pago pela energia russa esteja abaixo de um determinado nível.

O nível do tecto ainda está para ser decidido e ele valerá para o novo ano de 2023. Atualmente, o preço do petróleo bruto Brent é de cerca de US$ 90-100/barril. Assim, se o tecto de preço fosse fixado em, por exemplo, US$ 50/barril, as receitas de exportação russas provavelmente afundariam e Vladimir Putin perderia parte do financiamento para a guerra russa contra a Ucrânia. Além disso, os preços da energia cairiam acentuadamente. De facto, apenas com essa notícia, os preços do gás e do petróleo já caíram, embora ainda sejam quatro vezes mais altos (gás) e 80% mais altos (petróleo) do que antes do início da guerra.

Funcionará esta arma de limite de preço? Há muitos buracos nela. A Rússia poderia recusar-se a exportar petróleo a um preço mais baixo, pois isso não apenas reduziria uma das suas poucas fontes de receita externa, mas também exigiria o encerramento de poços de petróleo que não são facilmente reiniciados. Um encerramento prolongado dos poços de petróleo russos pode causar danos graves e duradouros à sua capacidade de produção.

Mas a Rússia poderia continuar a exportar petróleo para países que se recusam a respeitar o tecto de preços do G7, por exemplo, China e Índia. De facto, antes da invasão, a Índia quase não importava petróleo russo. Em Julho, estava a importar cerca de 1 milhão de barris por dia de petróleo russo (com grandes descontos), ou cerca de 1% da oferta mundial. A medida exigirá que todos os países concordem em usar os financiamentos e os seguros restringidos pelo G7 e não recorrer àqueles que estão fora dessas restrições. Muitos países podem não desejar seguir as normas financeiras impostas pelo G7.

Entretanto, os enormes aumentos nos preços globais de energia (e de alimentos) estão a provocar uma catástrofe no custo de vida nas populações do mundo em geral. Em toda a Europa, os salários reais estão a afundar-se.

A situação pior ocorre na Grã-Bretanha. O Banco da Inglaterra (BoE) prevê que a taxa de inflação atingirá um pico de 13,3% em outubro e o rendimento real disponível das famílias deve cair 3,7% entre 2022 e 2023, tornando esses dois anos os piores já registados. Mas pode ser ainda pior do que isso. O Citibank prevê que a inflação deve subir para 18,6% em Janeiro, o pico mais alto em quase meio século, devido ao disparo dos preços do gás por grosso. E o Goldman Sachs vai mais longe, pois espera aumentos ainda maiores do gás; assim, agora espera que a inflação do Reino Unido atinja um pico de 22%!

Como sempre, são os pobres os mais atingidos. Mais de 40% das famílias do Reino Unido não poderão aquecer suas casas adequadamente em Janeiro, quando as contas de energia aumentarem novamente. Sim, esta é a situação da Grã-Bretanha, em 2022. Cerca de 28 milhões de pessoas em 12 milhões de residências, ou 42% de todas as residências, não poderão dar-se ao luxo de aquecer e alimentar adequadamente as suas casas a partir de Janeiro, quando uma conta de energia anual típica deverá exceder £ 5.300.

Mesmo em Outubro, quando o tecto do preço da energia da Grã-Bretanha aumentar em 80%, para £ 3.549, 9 milhões de famílias enfrentarão a pobreza de combustível. Com a atual crise do custo de vida sendo mais sentida pelas famílias de baixo rendimento, a pobreza absoluta está a caminho de aumentar em três milhões nos próximos dois anos, enquanto a pobreza infantil relativa deve atingir seu nível mais alto (33% em 2026-27) desde os picos da década de 1990.

 

Mas o que é este plafonamento de preço da energia que é aplicado no Reino Unido?  Supostamente é para impedir que as empresas de energia subam demasiado as suas faturas e obtenham super-lucros à custa das famílias. No Reino Unido, um regulador chamado Ofgem estabelece um limite de preço de seis em seis meses que supostamente regula a rentabilidade das empresas retalhistas de energia privatizadas que cobram aos clientes o gás e a electricidade.

Mas esse limite de preço disparou de menos de £ 1.000 por ano, em 2021, para £ 3.549 em Outubro próximo e, em seguida, deve chegar a £ 6.600 até ao verão do próximo ano. Estes tipos de aumentos são completamente impossível de serem absorvidos pelas famílias médias e pelas pequenas empresas; muito menos ainda podem ser absorvidos pelos mais pobres e aqueles que não têm casas isoladas.

Como explicar estes aumentos de preços? Muito se fala dos lucros obtidos pelos monopólios retalhistas de energia e é verdade que estão a obter grandes lucros e a distribuir milhões aos seus acionistas. Mas quando se analisa o detalhe dos custos desses retalhistas, descobre-se uma história mais profunda.

O que se descobre é que as empresas retalhistas de energia estão limitadas pelo Ofgem a uma taxa de lucro de apenas 2% sobre os custos (totais, não operacionais). Mas esses custos incluem os custos de distribuição de gás e eletricidade pelos canos e linhas para as residências das famílias. Os fornecedores desses serviços são um grupo separado de monopólios (no Reino Unido, os Seis Grandes). Os Seis Grandes podem cobrar uma taxa de lucro de até 40% nos seus preços para as empresas retalhistas o que representa cerca de 7 a 10% do preço para o consumidor final. As empresas de distribuição são de propriedade de vários hedge funds e empresas de capital privado que recebem a sua parte.

Mas a maior parte da fatura doméstica é o preço cobrado pelas empresas globais de energia pelo gás e petróleo que fornecem, como Shell, BP, Mobil, Exxon etc.

 

É aqui que está o verdadeiro maná dos lucros. A profusão de ganhos no segundo trimestre incluiu um lucro recorde de US$ 11,5 bilhões para a Shell, a rival da BP, lucros recordes de US$ 17,6 bilhões e US$ 11,6 bilhões, respectivamente, para as americanas ExxonMobil e Chevron, além de US$ 9,8 bilhões para a francesa Total. Nos primeiros seis meses do ano, as empresas obtiveram lucros ajustados combinados de quase US$ 100 bilhões.

Assim, quando o chefe da Ofgem do Reino Unido, Jonathan Brearley, diz que “não podemos forçar as empresas a comprar energia por menos do que o preço… precisamos todos trabalhar juntos”, de certa forma, ele está certo. Se o mercado governa, então, diante de seu poder regulatório, pouco se pode fazer, pois ele trabalha com o imperativo sistémico de que as empresas devem ter lucro, o máximo lucro possível. Mas se o objetivo do Ofgem fosse garantir um acordo justo para as famílias em condições de monopólio natural, então claramente ela falhou em atingir esse objetivo.

A privatização da distribuição de gás e eletricidade no Reino Unido desde o final dos anos 1980 e início dos anos 1990 resultou num punhado de empresas muito grandes e muito poderosas desfrutando de grandes margens de lucro com os acionistas colhendo grandes dividendos, enquanto as famílias do Reino Unido estão sujeitas a contas de energia altíssimas.

Por exemplo, os seis grandes distribuidores pagaram quase 23 bilhões de libras em dividendos, seis vezes os seus impostos nos últimos dez anos. Mas então, como disse um CEO, “as empresas estão lá para obter lucro, e os dividendos são uma maneira de compartilhar isso com os acionistas”.

Os poderes estabelecidos também estão chocados com a explosão do preço da energia. Na verdade, vários chefes de Estado questionaram o princípio económico da fixação de preços pelo mercado. Um deles, disse que ele era “francamente ridículo” (Boris Johnson) [1], outro afirmou que era “absurdo” (Macron) [2], e, finalmente, Ursula von der Leyen [3] concluiu que “este sistema de mercado já não funciona”. A presidente da União Europeia admitiu que isso estava “a expôr as limitações do nosso atual projeto de mercado de eletricidade”. Mas qual é a resposta efetiva? Bem, “precisamos de um novo modelo de mercado de eletricidade que realmente funcione” (!). “Desenhos de mercado alternativos que poderiam incluir a dissociação do gás da formação do preço de mercado”. Assim, os preços do gás seriam controlados e não sujeitos ao mercado – mas como?

Não vou entrar na miríade de propostas vindas do governo do Reino Unido, do Partido Trabalhista da oposição e de vários grupos de reflexão sobre como aliviar ou evitar a catástrofe que está por vir para milhões de lares na Europa e particularmente no Reino Unido. Não vou fazer isso porque há uma coisa que todas elas têm em comum – não há propostas para acabar com o mercado de preços de energia ou trazer para a propriedade comum as empresas de energia, de retalho, distribuição e venda por grosso (no Reino Unido, a melhor proposta, do TUC, sugere a nacionalização apenas do retalho). Fazer isso exigiria uma transformação revolucionária da estrutura das economias, começando pela energia.

E, no entanto, mesmo em escala limitada, a propriedade pública da energia funciona. Na Alemanha, por exemplo, dois terços de toda a eletricidade são adquiridos a empresas de energia de propriedade municipal e, desde 2016, o conselho da cidade de Munique fornece energia renovável suficiente para as necessidades de todas as famílias. A Dinamarca tem uma rede de transmissão totalmente de propriedade pública e a maior proporção de energia eólica do mundo. Um sistema de energia de propriedade pública pode ser complementado por desenvolvimentos de menor escala, como energia de propriedade de comunidades. Em 2008, a ilha de Eigg foi a primeira comunidade a lançar um sistema elétrico movido a energia eólica, hídrica e solar, permitindo que a população local tivesse maior participação e voz na sua energia.

Mas estes passos são limitados e parciais. No geral, as regras do mercado, assim como o Big Oil têm o comando da situação. Agora os preços de mercado estão a ser agravados pelas tentativas desesperadas dos líderes do G7 de derrotar a Rússia na guerra.

Como resultado, os esforços para controlar as emissões de carbono e cumprir as metas globais estão a ser revertidos à medida que a produção de energia de combustíveis fósseis é acelerada e os subsídios aos combustíveis fósseis para ajudar a controlar os preços da energia são aumentados. Os subsídios fiscais de energia não apenas reforçam a dependência da União Europeia das importações de combustíveis fósseis, mas também trabalham contra a consecução das metas climáticas do Pacto Verde Europeu.

Nos EUA, a geração de energia a carvão foi maior em 2021 sob o presidente Joe Biden do que em 2019 sob o então presidente Donald Trump. Note-se que este último se posicionou como o suposto salvador da indústria de carvão da América. Na Europa, a energia do carvão aumentou 18% em 2021, o seu primeiro aumento em quase uma década.

O economista Dieter Helm, professor de política energética da Universidade de Oxford, diz que o abandono dos combustíveis fósseis nunca foi tão complicado. “A transição energética já estava com problemas – 80% da energia do mundo ainda é proveniente de combustíveis fósseis” – disse ele. “Espero que, no curto prazo, os EUA aumentem a produção de petróleo e gás e o consumo de carvão da UE possa aumentar”.

Não há como escapar da conclusão óbvia. Para evitar a catástrofe energética e reverter a enorme perda nos padrões de vida já em curso, precisamos de tomar o controle das empresas de combustíveis fósseis e eliminar gradualmente sua produção com um maior investimento em energias renováveis, para reduzir os preços dos combustíveis para as famílias e pequenas empresas.

Mas isso significa um plano global para direcionar investimentos em coisas que a sociedade precisa, como energia renovável, agricultura orgânica, transporte público, sistemas públicos de água, a recuperação ecológica, a saúde pública, escolas de qualidade e outras necessidades atualmente não atendidas. Tal plano também poderia equalizar o desenvolvimento em todo o mundo, transferindo recursos da produção inútil e prejudicial do Norte para o desenvolvimento do Sul, construindo infraestrutura básica, sistemas de saneamento, escolas públicas, assistência médica. Ao mesmo tempo, um plano global poderia ter como objetivo fornecer empregos equivalentes para trabalhadores deslocados pela redução ou encerramento de indústrias desnecessárias ou prejudiciais.

Pouco provável que isso aconteça agora. Em vez disso, milhões enfrentam uma crise de custo de vida de proporções recordes. E não se esqueça da perspectiva de uma nova queda global na produção, investimento e emprego. De acordo com o FMI, o PIB real nos países do G20 (ou mais exatamente 18 principais economias, exceto Arábia Saudita) caiu no segundo trimestre de 2022. Mas a taxa de inflação continuou a subir.

E o FMI observa: “A perspectiva global já obscureceu significativamente desde abril. O mundo pode em breve estar à beira de uma recessão global, apenas dois anos após a última.” Jacon Frenkel, chefe do consórcio do Grupo dos 30 de formuladores de políticas globais, resumiu: “Temos a crise energética, temos a crise alimentar, temos a crise da cadeia de abastecimentos e temos a guerra, tudo isso tem profundas implicações para o desempenho económico do mundo”.

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Notas

[1] https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-06-25/johnson-hints-at-uk-energy-market-reform-amid-inflation-surge

[2] https://24newsrecorder.com/economy/180256

[3]https://www.europarl.europa.eu/plenary/en/vod.html?mode=unit&vodLanguage=EN&vodId=b839936a-22b6-fdd1-03bd-487b76155158&date=20220608

 


O autor: Michael Roberts [1938-], economista britânico marxista. Trabalhou durante mais de 30 anos como analista económico na City de Londres. É editor do blog The next recession. Publicou, entre outros ensaios, Marx200: a Review of Marx’s economics 200 years after his birth (2018), The long Depression: Marxism and The Global Crisis of Capitalism (2016), The Great recession: a Marxist view (2009).

 

 

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