1) O que é a AIEA
A International Atomic Energy Agency (IAEA), em português Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), é uma agência das Nações Unidas fundada em 1957, com sede em Viena – em princípio, um país neutral – para «promover o uso seguro e pacífico da energia nuclear».
No entanto, esteve sempre ligada às negociações entre os EUA e a URSS para limitação e controlo das armas nucleares e uma das suas tarefas é a de inspecção de instalações militares e civis. Mas nem o TNP (Tratado de Não Proliferação) foi cumprido, como alguns países, para além dos iniciais EUA, URSS, França, Reino Unido e China, possuem essas armas, como a Índia, o Paquistão e Israel, pelo menos, os quais não ratificaram o Tratado. Também a acção da AIEA e o TNP não evitaram numerosos ensaios nucleares em várias partes do mundo, com relevância para aqueles que os EUA levaram a cabo no atol de Bikini e a França no atol de Mururoa (neste caso, 46 testes atmosféricos e 150 subterrâneos entre 1966 e 1974, com novos testes até 1996) e que levaram a pedidos de indemnização das populações das ilhas vizinhas com base no enorme aumento do número de cancros. E também a União Soviética, havendo indicações de que um acidente muito grave terá sucedido, mas que não foi revelado.
A chamada utilização pacífica da energia nuclear está intimamente relacionada com a produção de armas nucleares, sendo os mesmos os países que produziram estas armas e os primeiros que construíram centrais nucleares para produção de energia eléctrica. Sempre se suspeitou que o plutónio resultante da reacção de fissão do urânio era utilizado no fabrico de bombas. Quando nos anos 60, as ditaduras militares argentina e brasileira (dois países rivais, que travaram várias guerras) enveredaram pela construção de grupos nucleares, atribuiu-se essa orientação ao objectivo de produção de material utilizável nas bombas.
189 países ratificaram o TNP
A AIEA sempre teve muito empenho na propaganda da energia nuclear para produção de energia eléctrica, acção que lhe acarretou numerosas críticas, tendo adoptado uma postura mais cautelosa, principalmente quando dirigida pelos suecos Sigvard Eklund e Hans Blix, embora num contexto de generalizada contestação da energia nuclear. A propósito, lembramos que a Suécia possui alguns reactores nucleares que estes dois técnicos acompanharam ou neles trabalharam antes de estarem na Agência. Quando esteve em Portugal numa missão de apresentação da energia nuclear, a convite do Governo Português, então empenhado em impor a opção nuclear, o representante do Director-Geral de então adoptou uma posição aparentemente independente, mas não deixando de dar a mensagem favorável ao nuclear.
Todavia, nem todas as estruturas da Agência tinham a mesma postura de pseudo-independência mas propagandística, tendo-se verificado que uma delas produziu nos anos 80 um estudo em que, pela primeira vez no historial da Agência, se mostrava existir uma indiferença entre o custo da energia eléctrica produzida por via nuclear e por via carvão, conclusão que também figurava no livro O Que É a Energia Nuclear – Oportunidade em Portugal, de 1978, em que colaboraram vários engenheiros e economistas, em que me incluía, no livro Centrais Nucleares em Portugal – Projecto de Livro Branco, de 1978 (encomendado pelo Governo a um grupo de reputados engenheiros e economistas), em artigos de jornais que apresentavam estudos independentes realizados noutros países e no artigo que publiquei na revista Economia, da Universidade Católica, em Outubro de 1985.
Actualmente, a AIEA tem um Director-Geral e um Deputy Directors General com 6 elementos, responsáveis dos departamentos (uma estadounidense, um russo, um chinês, uma francesa, um italiano e uma marroquina) e tem 175 países membros. O actual Director-Geral, Rafael Mariano Grossi, é argentino, designado em Dezembro de 2019, diplomata de carreira, foi Director-Geral no Mistério dos Negócios Estrangeiros da Argentina, representante deste país na NATO (1998-2001, ver biografia de Grossi), embaixador em vários países, realizou missões das Nações Unidas, tendo estado muito ligado à não proliferação nuclear.
Recorde-se que a AIEA tem também como missão inspecionar periodicamente todas as instalações nucleares dos seus membros, com particular atenção na contabilização do combustível nuclear e dos resíduos radioactivos, com o objectivo de detectar fugas para outros fins. O Irão é membro, o que esclarece as acções de inspecção que a AIEA realizou nas suas instalações nucleares, principalmente as de enriquecimento, embora de pequena capacidade, como tem sido largamente noticiado pela comunicação social nos últimos anos.
Várias agências e departamentos da Nações Unidas são dirigidos por gente que não pertence a qualquer dos países mais importantes. O próprio Secretário-Geral tem sido escolhido com esse critério. É uma aparente demonstração de independência política.
Esses responsáveis têm sempre receio de contrariar a política externa dos EUA e os seus interesses, pois não esquecer que a sede da organização é em Nova Iorque e que os EUA são o principal financiador. Em algumas organizações, como na UNESCO, os EUA suspenderam a sua participação financeira e hoje não figuram entre os seus membros. E Trump também o fez com a Organização Mundial de Saúde. Recorda-se que estas duas organizações têm sede em países que não os EUA.
Também a AIEA é dependente das Nações Unidas, e tem sede num país que declarou a sua neutralidade e não pretendeu nem pretende integrar a NATO.
Todavia, o seu actual Director-Geral não tem o mesmo perfil dos responsáveis de outras organizações das Nações Unidas e, ao contrário de responsáveis anteriores da Agência, não é um técnico, mas um embaixador, um político, consoante se pode ver no seu currículo atrás apresentado. Foi, mesmo, como vimos, representante da Argentina na NATO. Já nas declarações que proferiu aquando da tomada das centrais nucleares de Chernobyl e Zaporijia pelos russos, se podia verificar a sua falta de independência, dramatizando excessivamente o assunto e condenando a acção russa, ao jeito do que interessa à Ucrânia, aos EUA e à União Europeia. Ora, a um dirigente de órgão técnico não lhe cabe tomas posições políticas ou, pelo menos, de forma tão explícita.
Quando se iniciou a recente inspecção da AIEA à central de Zaporijia com uma equipa de técnicos, a efusividade e os sorrisos com que cumprimentou Zelensky, com retribuição idêntica da parte deste, não passaram despercebidos, como notámos no texto que então escrevemos sobre a central, o que não augurava nada de bom, no que respeita a uma opinião independente. Essa efusividade contrastava, como escrevemos, com os rostos fechados da fotografia de António Guterres, Erdogan e Zelensky no final da reunião que tiveram algum tempo antes.
2) O relatório da presença da AEIA na central
A missão da AEIA dirigida pelo seu Director-Geral acompanhado por 13 técnicos, chegou a Kiev no dia 29 de Agosto, terá tido conversações com as autoridades ucranianas nos dias seguintes e chegou à central no dia 1 de Setembro. O Director-Geral apenas ali esteve nesse dia e, provavelmente, em parte do seguinte, pois a 2 deu uma conferência de imprensa no regresso a Viena. Mas alguns técnicos ficaram até dia 5 e dois vão ficar permanentemente.
Em primeiro lugar, se Rafael Grossi foi a Kiev cumprimentar entusiasticamente Zelensky, nas fotografias da visita publicadas pela Agência existem várias com os técnicos da central, mas não se inclui qualquer imagem de cumprimentos ou reunião com o comandante russo das tropas que ocupam a central, nem, aparentemente, com os técnicos russos que ali estão. A Rússia enviou estes técnicos para a central certamente para controlarem as acções do pessoal ucraniano. No início da ocupação da central eram 11, pertencentes à Russian Federation State Atomic Energy, mas há indicações de que esse número aumentou em Abril.
Por outro lado, no relatório da missão publicado no dia 6, intitulado “Nuclear Safety, Security and Safeguards in Ukraine # 2nd Summary Report # 28 April – 5 September 2022, as informações referentes ao período anterior à visita é sistemática e insistentemente iniciada com a frase «a Ucrânia informou que…». Nunca utiliza os termos “o Responsável da central” ou “o pessoal da central”. Apenas o faz no período da visita.
Em todo o relatório, apesar de nada de especial tenha sido encontrado, perpassa um tom de acusação, dramatizando-se fortemente a situação, como resulta da informação com origem no Governo ucraniano e tem sido propagado nos meios de comunicação, nomeadamente os portugueses. Recorde-se que, aquando da ocupação por forças russas, o Ministro das Relações Exteriores ucraniano afirmou que podia estar-se na eminência de um desastre nuclear 10 vezes superior ao de Chernobyl, o maior desastre nuclear da história. Até se esqueceu de Hiroshima e Nagasaki!
Todavia, o relatório afirma que a integridade dos reactores e sistemas de segurança não foram afectados. Tal não é de admirar, pois, como escrevemos nos textos anteriores, a parte propriamente nuclear está situada no interior do chamado contentor de betão, com 1,3 a 1,5 m de espessura, tornando inviável a sua destruição pelos equipamentos militares que russos e ucranianos usaram e usam nos combates nas cercanias.
Segundo aquele relatório, foram atingidos telhados de instalações administrativas, o laboratório e os vidros do centro de formação, o edifício do veículo de transporte do combustível usado. As piscinas exteriores onde arrefecem os elementos de combustível já utilizados e retirados do núcleo do reactor não foram afectadas, embora atingidas, bem como as instalações de armazenamento dos elementos de combustível já esfriados. Estas instalações, cujas paredes não terão a mesma espessura do contentor de betão, foram assinaladas por nós no texto anterior como sendo passíveis de serem destruídas, espalhando-se os resíduos radioactivos pelas cercanias e, no caso de serem atingidas por uma forte explosão, os resíduos poderem contaminar populações e solos, o que não sucedeu.
Segundo o relatório, não havia radioactividade anormal nas imediações da central.
Quando se constrói uma central nuclear, durante a sua construção fazem-se medições da radioactividade do local, resultante de emanações da própria terra ou de radioactividade chegada do espaço sideral ou proveniente de outros locais. Não esquecer que a radioactividade proveniente do acidente de Chernobyl chegou aos Açores e que a resultante dos longínquos ensaios nucleares de origem militar realizados por vários países era detectada em Portugal em equipamento especial existente no IST. Assim é possível comparar a radioactividade existente num certo momento e a radioactividade inicial medida antes da central entrar em serviço. Foi a comparação que os técnicos da IAEA fizeram.
O relatório indica que as tropas russas se instalaram em dois dos edifícios das turbinas/alternadores (um por cada um dos 6 grupos, fora do contentor de betão, portanto), zonas sem qualquer perigo. Recorde-se que as condutas com o vapor sobreaquecido saem do contentor de betão, dirigem-se à sala das turbinas; o vapor que conduzem (que em condições normais não tem qualquer radioctividade) fá-las rodar, e aquelas, que estão ligadas ao alternador, fazem igualmente rodar este, produzindo-se energia eléctrica. Portanto, esta instalação onde estão as turbinas e o alternador não têm perigosidade associada. No entanto, já tem sucedido em vários grupos nucleares que o vapor referido foi contaminado devido a corrosões no gerador de vapor (ver textos anteriores) e as turbinas também o são, bem como as instalações em que se encontram e os seus trabalhadores.
De qualquer modo, como escrevi em texto anterior, não é correcto se a Rússia está a usar estas salas para armazenar material militar, tal como a Ucrânia utilizou escolas e hospitais para o mesmo efeito.
Têm os meios de comunicação social portugueses referido com insistência o problema da possível quebra do arrefecimento do núcleos dos reactores através das bombas de arrefecimento, as quais poderão deixar de funcionar se não forem alimentadas por energia eléctrica. É verdade que não estando qualquer reactor a funcionar não haverá energia interna à central para accionar essas bombas, pois apesar de a reacção de fissão ter parado, o núcleo do reactor continua quente e é necessário continuar a arrefecê-lo. No entanto, elas podem ser alimentadas a partir do exterior pela rede eléctrica, o que sucedeu a partir da central a carvão de Novoluanske, perto da de Zaporijia. Mesmo que assim não aconteça se as linhas de alta tensão estiverem cortadas, existe uma 3ª possibilidade de alimentação das bombas por geradores a gasóleo, estando a central apetrechada com eles e com o combustível necessário. Segundo o relatório existem 20 geradores destes na central e combustível armazenado.
Esta triplicação dos meios de acção para um determinado fim é uma prática corrente nos grupos nucleares, especialmente nas partes mais sensíveis. Circuitos eléctricos e de fluidos e equipamentos são duplicados ou triplicados. Mesmo assim, os incidentes e acidentes sucedem-se, como mostra a prática em todo o mundo, tornando esta tecnologia perigosa.
A parte mais afectada da central foram as linhas de alta tensão (4 linhas de 750 kV), as quais levam a energia para alimentar os diferentes tipos de consumidores. Estes equipamentos, sim, podem ser afectados pelas explosões, e foram-no, mas parece que estão a ser reparados.
É evidente que os bombardeamentos mais recentes que têm atingido a central só podem ser de origem ucraniana, pois não tem sentido os russos estarem a visar-se a eles próprios. Mas o relatório nada diz sobre isso, mostrando, mais uma vez, a deficiente imparcialidade política da missão da AEIA. E era aos russos que a missão mais interessava. Portanto, nunca o fariam. Nas vésperas da missão, os russos diziam que esta missão viria a constatar a falsidade dos dramas veiculados pela comunicação social.
Tudo leva a crer que as tropas ucranianas, por indicação do Governo, o qual não estava muito interessado na visita da missão da AIEA, ou grupos afectos aos neo-nazis – porque sabiam que todo o alarmismo que divulgaram era francamente exagerado -, tentaram criar a instabilidade para que a visita não se fizesse, pois interessava-lhes manter um clima de dramatização. Há notícias de acções nos acessos à central e de uma investida por barcos, dado que a central fica junto ao Rio Dniepre. No próprio dia da visita da missão da IAEA pela manhã, os ucranianos bombardearam a central. O New York Times noticiava recentemente que militares estadunidenses admitiram que os últimos ataques à central foram realizados por forças ucranianas, por indicação do Governo. E esses militares devem saber do que falam, pois eles próprios ou colegas dos EUA estão a trabalhar com o Governo ucraniano para orientar as suas operações de guerra. Foi uma hipocrisia da Governo ucraniano receber a missão com tantos sorrisos e, simultaneamente, bombardear a central, talvez para evitar a sua actuação.
Apesar de uma postura e de um tom da escrita favorável à Ucrânia, o relatório da missão da AIEA indica que não houve afectação das partes sensíveis da central e que a radiação medida é normal, desdramatizando o assunto. Uma coisa é o tom do texto, outra os factos. E, estes, a missão não podia adulterar, pois, se o Director-Geral é um político com currículo numa determinada área política, os técnicos participantes não pretendem ficar conhecidos como mentirosos, pois têm uma carreira técnica internacional a defender e que continuará.
Dias depois de divulgado o relatório o Governo ucraniano afirmava que os russos tinham manipulado a missão, porque, claramente, apesar do tom geral que lhes era favorável, o relatório atestava que nada de muito grave tinha acontecido, o que contraria as suas dramatizações.
3) Algumas considerações
a) Depois desta visita, em que foi apresentada a situação real na central e as consequências de bombardeamentos de relativa fraca potência, o Governo ucraniano vai ter mais dificuldade em utilizar a central para manter a chama da atenção sobre si e sobre a Ucrânia.
b) O facto de continuar a ser o pessoal da empresa ucraniana Energoatom a dirigir a operação da central dificulta a intenção da Rússia de a controlar, não sendo claro o papel desempenhado pelos técnicos russos, os quais, todavia, podem inflectir algumas decisões. A intenção russa com a presença militar parece ser a de garantir o fornecimento da zona da Ucrânia que controla e cortar o abastecimento ao restante território deste país.
Todavia, esta segunda questão (o corte de abastecimento) já não se deve colocar, pois a Ucrânia perdeu muita população e a sua economia (isto é, empresas industriais, comerciais e de serviços consumidoras de energia elétrica) está muito diminuída. Sendo assim, a Ucrânia talvez possa dispensar a energia fornecida por esta central, pois tem todas as outras em serviço. Os bombardeamentos que tem realizado com “drones” às linhas que saem da central devem ter em conta essa realidade e terão como objectivo, além de manter as notícias dramáticas, cortar o fornecimento de energia à zona controlada pela Rússia. Por isso, o facto de os 6 reactores estarem agora desligados será do seu interesse.
c) A intensa campanha que tem sido realizada pelos políticos europeus e estadunidenses e pela comunicação social falando das catástrofes eminentes, com o objectivo de atacar a Rússia, veio colocar, de novo, a perigosidade da energia nuclear na ordem do dia, dificultando a acção daqueles que pretendem apresentar esta energia como alternativa no combate às alterações climáticas. E muitos dos políticos envolvidos num aspecto e noutro coincidem. Vira-se o feitiço contra o feiticeiro.
d) Uma tão grande campanha tendo como centro a energia nuclear, vem chamar a atenção de grupos terroristas para a fragilidades desta tecnologia, pois chamou-se demasiada atenção para o assunto e até se indicaram os caminhos para provocar a catástrofe. Claro que muitos desses grupos já deviam saber, mas agora a questão foi colocado na ordem do dia. Tiveram agora a confirmação do caminho a seguir. Não é necessário um grupo terrorista possuir os mísseis capazes de furar o contentor de betão. Basta um grupo armado tomar conta da sala de controlo de uma central e realizar as acções necessárias. Claro que poderão morrer na acção, mas isso a certos grupos não importa. E não é possível manter um corpo de polícia ou um destacamento militar numeroso em todas as centrais nucleares do mundo para evitar tais ataques.
Setembro de 2022.