CARTA DE BRAGA – “da intimidade” por António Oliveira

Robert Musil, o celebrado autor de ‘O homem sem qualidades’, afirmou um dia ‘Aquele a quem se permite actuar à sua vontade, em breve baterá com a cabeça contra um muro de tijolos de pura frustração’, a confirmar que o bem apenas se nota, enquanto o mal é muito ruidoso. 

Tudo, porque a história não é feita só de tratados, constituições, greves, guerras, mas também lá entra e cabe a nossa intimidade! Uma ideia que me acompanhou sempre, se calhar por ter nascido durante uma guerra, ter andado por outra e estar a viver num ambiente decididamente marcado por mais uma; na verdade, as mudanças históricas caracterizadas por conflitos, por ambientes, por ‘patrões da guerra’, cidades destruídas, gente desaparecida e comboios humanos de fugitivos, acaba por transformar a intimidade, tanto a deles como a nossa.

Nunca mais seremos como o que já fomos, pois se criam ódios e animadversões, se confundem e atravancam ideias de justiça e igualdade sociais, diluem-se ou desaparecem também as noções de ‘amanhã’, de ‘futuro’ ou de progresso, para ficar sempre a da condenação de quem escolhemos para ‘governar’, independentemente das cores, das amizades ou dos afectos, por ‘virem todos do mesmo saco’, esquecendo ou atirando para trás das costas a injustiça de tal julgamento; está aí a transformação da nossa intimidade. 

E, há pouco tempo, em final de Setembro, organizações não governamentais de 75 países, mandaram uma carta aberta aos líderes dos Estados presentes em Nova Iorque, para mais uma Assembleia da Nações Unidas, onde se destacava ‘Actualmente, 345 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de fome aguda, número que mais do que duplicou desde 2019’, salientavam aquelas 238 organizações não governamentais, em comunicado de imprensa, isto de acordo com o DN.

Uns dias depois, no mesmo jornal, o poeta Luís Castro Mendes salienta também, numa das suas crónicas semanais, ‘Como aconteceu durante a queda do Império Romano, os bárbaros vivem connosco: constroem redes de mentiras e teias de dinheiro sujo, encontram soluções fascistas para a crise, perseveram na destruição climática do planeta, privilegiam os voláteis capitais financeiros sobre os investimentos produtivos e os salários justos, orquestram a destruição e a ruína. Nós continuamos a parar as nossas atividades e a acorrer às portas da cidade à espera dos bárbaros, sem nos darmos conta que eles estão junto de nós’.

É a confirmação absoluta de como tudo isto está a afectar a nossa intimidade, devendo salientar que este ‘nossa’ inclui também e, além do mais, aqueles milhões de pessoas a quem foi negado o direito de a ter, por também não se lhes considerar nem respeitar a dignidade, se nos lembrarmos, disse alguém, ‘Os ricos também choram… mas continuam a ser ricos’ e, cuido eu, a intimidade deles só está ao alcance das revistas de foto-notícias que eles autorizam e, se calhar, também comandam!

Convém não esquecer que ao falar-se de dignidade, igualdade, educação, ambiente, temor, atenção e respeito pela diferença, também estamos a falar dos valores humanos e de civilização, seja o que for que este palavrão possa significar para os tais ‘patrões’, porque ‘a vida é como a matrioska, nunca se deixa nada atrás, leva-se tudo dentro’.

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

2 Comments

  1. Coitados dos nossos bárbaros africanos, sul-americanos e asiáticos equiparados a uns outros que terão invadido o Império Romano. Estão a ser injustamente maltratados pelo Castro Mendes, em especial os que vieram para fazer trabalhos domésticos e agrícolas. Ou será que se está a referir aos que vieram do norte da europa para tirar proveito da vida que para eles é barata e contribuem (des?) interessadamente para o desenvolvimento do imobiliário?

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