Da ficção do que nos dizem os decisores da política económica ao que eles pretendem alcançar – um bilhete postal para os nossos dirigentes políticos lerem — Texto 3. O enigma da inflação.  Por Michael Roberts

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

10 min de leitura

Texto 3. O enigma da inflação 

 Por Michael Roberts

Publicado por NextRecession  em 28 de outubro de 2022 (original aqui)

 

Em muitos textos anteriores, argumentei que o atual aumento acentuado das taxas de inflação em todas as grandes economias não deriva da chamada “procura excessiva”; ou do crescimento excessivo da oferta monetária; ou das exigências salariais forçando as empresas a aumentar os preços.

Baseia-se principalmente [a inflação] na incapacidade da oferta de corresponder à procura. A oferta foi drasticamente reduzida durante a queda pandémica da COVID de 2020 e a produtividade do trabalho contraiu-se drasticamente.  O investimento capitalista e o relançamento da produção durante a recuperação económica em 2021 foram inadequados para satisfazer as despesas renovadas dos consumidores e das empresas. Este fracasso foi exacerbado por bloqueios da cadeia de abastecimento (perda de empregados em indústrias chave e colapso das ligações comerciais e de transporte).  E o conflito entre a Rússia e a Ucrânia veio depois juntar-se a isso reduzindo o fornecimento e exportação de energia e alimentos, provocando o aumento vertiginoso dos preços dos alimentos e da energia.

O que é que isto mostra sobre as principais teorias económicas sobre inflação e sobre as políticas para reduzir a inflação? A resposta é que foi demonstrado que eram erradas ou irrelevantes em teoria; e completamente prejudiciais em termos de política. Em particular, os bancos centrais, separados do controlo democrático pelos seus governos e mandatados para cumprir alguns objetivos arbitrários em matéria de taxa de inflação utilizando alterações nas taxas de juro básicas e na quantidade de injeções ou de retiradas de papel-moeda em circulação, estão a revelar-se totalmente inúteis para colocar a inflação sob controlo.  Em vez disso, o aperto monetário do banco central está apenas a conduzir as economias para uma recessão mais rápida e profunda.

Recordemos as duas principais teorias de inflação que nos são oferecidas: a monetarista e a keynesiana da pressão salarial.

Quanto à primeira, as provas são claras. A relação entre o crescimento da oferta monetária e a inflação do IPC não é significativa. De facto, a partir de meados dos anos 90, o crescimento da oferta de moeda acelerou e, no entanto, a inflação do IPC abrandou – algo que a economia dominante e os banqueiros centrais não foram capazes de explicar ou lidar. Constato que a correlação entre o crescimento da massa monetária e a inflação do IPC de 1960 a 1992 foi de apenas 0,11 e a partir de 1993 não houve qualquer correlação positiva!

Num interessante artigo de Louis-Philippe Rochon, ele fornece muitas fontes que mostram as insuficiências tanto das teorias monetaristas como das clássicas teorias keynesianas da inflação. Rochon cita Cynamon, Fazzari e Setterfield: “O mecanismo de transmissão da política monetária para a despesa agregada em novos modelos de consenso baseia-se na sensibilidade do consumo ao juro. É difícil, no entanto, encontrar provas empíricas de que as famílias aumentam ou diminuem de facto o consumo num montante significativo quando as taxas de juro mudam“. E as taxas de juro também não alteram muito o investimento.

Até o arqui-keynesiano Paul Krugman reconheceu isto: “É um pequeno segredo sujo da análise monetária que … qualquer efeito direto sobre o investimento empresarial é tão pequeno que é difícil até vê-lo nos dados“. (15 de Novembro de 2018, NYT blogue). Naturalmente, prosseguiu argumentando que “o que impulsiona tal investimento é, em vez disso, a perceção da procura do mercado“. Voltarei a esse ponto mais tarde; mas claramente no período pós-pandémico, a procura não parece ter impulsionado o investimento e a produção, e é por isso que a inflação está a aumentar devido aos bloqueios da oferta. Até os economistas da Reserva Federal admitiram que “um grande corpo de investigação empírica oferece provas mistas, na melhor das hipóteses, de efeitos substanciais das taxas de juro sobre o investimento. [A nossa investigação] conclui que a maioria das empresas afirma que os seus planos de investimento são bastante insensíveis a descidas das taxas de juro, e apenas um pouco mais recetivos a aumentos das taxas de juro“. (Sharpe e Suarez).

Quanto à teoria do impulso salarial dos Keynesianos, ela também cai teórica e empiricamente. Apenas compara os salários com os preços, o que é apenas parte da criação total de valor. E os lucros? A dimensão ou parte dos lucros é totalmente ignorada. Isto é um preconceito ideológico e é teoricamente falso. Está bem documentado que os salários em percentagem do PIB caíram nos EUA nos últimos 50 anos como tendência – ou no mínimo não subiram em percentagem de novo valor.

Além disso, não parece haver uma correlação inversa entre alterações nos salários, preços e desemprego. A clássica curva de Phillips, que reivindicava tal relação, demonstrou ser falsa. De facto, isto foi descoberto no final dos anos 70, quando o desemprego e os preços subiram juntos. E as mais recentes estimativas empíricas sobre a curva de Phillips mostram que ela é, de um modo geral, plana – por outras palavras, não há correlação entre salários, preços e desemprego.

 

 

Os economistas do pensamento dominante foram forçados a reconhecer isto. Um especialista em trabalho do Bureau of Labor Statistics dos EUA, Politano, concluiu que “Nos últimos 20 anos, a relação da curva de Phillips quebrou-se quase completamente nos Estados Unidos“. E Mary C. Daly, Presidente do Conselho da Reserva Federal de São Francisco, também concluiu que “Quanto à curva de Phillips … a maioria dos argumentos hoje em dia centram-se em torno de se está morta ou apenas gravemente doente. Seja como for, a relação entre desemprego e inflação tornou-se muito difícil de detetar“.

Naturalmente, o economista da escola austríaca Borio, do BIS [Bank for International Settlements], concordou: “a resposta da inflação a uma medida da folga no mercado de trabalho tendeu a diminuir e tornou-se estatisticamente vizinha de zero. Por outras palavras, a inflação já não parece responder suficientemente às restrições nos mercados de trabalho” e, mais recentemente, concluiu que “a inflação provou inesperadamente não responder à folga económica – a curva de Phillips é muito plana“. O atual Presidente do Fed, Jerome Powell, reconheceu o problema: “Estamos também cientes de que, com o tempo, a inflação se tornou muito menos reativa a mudanças na utilização de recursos” (Powell, 2018).

Esta conclusão incómoda foi também expressa por dois destacados economistas em dois artigos, publicados na Review of Keynesian Economics. Robert Solow observou que “A própria inclinação da curva de Phillips tem vindo a ficar mais plana, desde os anos 80, e é agora bastante pequena. … não há uma taxa natural de desemprego bem definida, nem estatística nem conceptualmente“. E Robert Gordon ecoou: “A inclinação da relação inflação-desemprego de curto prazo tem-se achatado“.

Então porque é que os economistas e os banqueiros centrais continuam a apoiar-se numa teoria que não tem qualquer apoio empírico? Gavin Davies, um keynesiano e antigo economista-chefe da Goldman Sachs, explicou: “sem a curva de Phillips, toda a complicada parafernália que sustenta a política do banco central parece de repente muito instável. Por esta razão, a Curva Phillips não será abandonada de ânimo leve pelos decisores políticos“.

Quando as teorias estão incorretas, as políticas que delas decorrem não funcionam. A macro-gestão da economia capitalista, baseada na teoria monetarista ou no ajustamento orçamental keynesiano, falhou em evitar ou melhorar as altos e baixos na produção capitalista. Como diz Richon: “A crença no ajustamento fino e na existência de uma taxa de juro natural leva frequentemente os bancos centrais a aumentar as taxas de juro repetidamente até engendrarem uma recessão, o que depois abranda a atividade económica, aumenta o desemprego, e a inflação finalmente entra em colapso. Isto ilustra perfeitamente o poder assimétrico dos bancos centrais e da política monetária: a descida das taxas pode não ter impacto no lançamento do investimento (pode-se trazer um cavalo para a água mas não se pode forçá-lo a beber), mas pode certamente causar danos consideráveis, se os bancos centrais teimarem em aumentar as taxas de juro a um nível suficientemente alto: isto é o mesmo que usar uma marreta para matar uma mosca: matará a mosca, mas também estragará a mesa sobre a qual a mosca estava pousada. Era precisamente isto que Keynes tinha em mente quando afirmou que o ajustamento fino “pertence à espécie de remédio que cura a doença matando o doente” (Keynes 1936, p. 323). No entanto, a gestão macroeconómica da política orçamental e monetária é a razão da existência de metas de inflação para os bancos centrais e metas de défice e dívida para os governos.

Então o que é que causa que as taxas de inflação acelerem ou desacelerem? A corrente dominante não sabe. Os pós-keynesianos voltam-se para as margens de lucro. “Do ponto de vista da teoria de distribuição pós-keynesiana, o efeito redistributivo funcional das alterações nas taxas de juro centra-se diretamente na capacidade de resposta da margem de lucro às taxas de juro … [que] irá presumivelmente depender tanto da magnitude como da permanência esperada das alterações das taxas de juro“. Richon. Portanto, é a capacidade das grandes empresas (monopolistas) de marcar os preços e de praticarem preços abusivos que causa a inflação.

É verdade que os aumentos de lucro deram a maior contribuição para os aumentos de preços no período pós-pandémico.

Mas os cartéis de monopólio ou de oligopólio existem desde o desenvolvimento do capitalismo maduro e tem havido um grau crescente de concentração de capital, como Marx previu. Mas isso nem sempre foi seguido de uma inflação acelerada. De facto, desde o início dos anos 90 até à Grande Recessão e mais além, as taxas de inflação nas principais economias caíram e os bancos centrais ficaram perplexos com a sua incapacidade de fazer com que a inflação atingisse as suas taxas alvo.

A teoria da margem de lucro para explicar a inflação não nasce da evidência. Como disse James Crotty: “o modelo de Kalecki da margem constante para a determinação dos lucros” utilizado pelo herói pós-Keynesiano Minsky “é evidentemente insatisfatório“. Segundo Crotty: “O grosso das provas demonstra que existe uma variação cíclica significativa na margem de lucro e na participação nos lucros“. Por outras palavras, a capacidade das empresas para aumentar os preços e ganhar mais participação nos lucros varia de acordo com a taxa de expansão da economia. Antes da queda pandémica, os lucros das empresas representavam apenas 11% das alterações nos preços unitários (ver gráfico acima). Isto significa que precisamos de procurar as causas da inflação na trajetória da economia capitalista, e não em margens de lucro monopolistas per se.

Portanto, se a aceleração da inflação não é causada por uma oferta monetária excessiva (monetarista) ou por um aumento dos custos salariais (keynesiano); ou mesmo por marcações de margem monopolistas (pós-keynesiano), o que é que a causa? O que é a teoria marxista da inflação? Em posts anteriores, Guglielmo Carchedi e eu tentámos desenvolver um modelo marxista. Na próxima conferência sobre Materialismo Histórico, a realizar em Londres, vou expor este tema numa sessão da manhã de sábado, 12 de Novembro, com um documento adequado a seguir.

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O autor: Michael Roberts [1938-], economista britânico marxista. Trabalhou durante mais de 30 anos como analista económico na City de Londres. É editor do blog The next recession. Publicou, entre outros ensaios, Marx200: a Review of Marx’s economics 200 years after his birth (2018), The long Depression: Marxism and The Global Crisis of Capitalism (2016), The Great recession: a Marxist view (2009).

 

 

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