Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
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Texto 12. “Perante a Fragmentação da Globalização, a Urgência da Independência e do Não-Alinhamento” – Entrevista com Arnaud Le Gall
Por Redação de em 12 de Agosto de 2022 (original aqui)

“Por ter criticado a visita de Nancy Pelosi a Taiwan, Jean-Luc Mélenchon foi mais uma vez rotulado como “pró-Chinês” e amigo de regimes autoritários. Estas acusações absurdas ignoram o facto de ele apenas ter recordado a posição oficial da França: existe apenas uma China. Este tipo de movimento não serve os interesses taiwaneses ou franceses, mas apenas os dos proponentes de uma nova “guerra fria” com a China, um dos instrumentos do qual seria a extensão das missões da NATO à chamada área do Indo-Pacífico. O espectro de uma guerra sobre Taiwan, o principal local de produção de semicondutores, levanta naturalmente o problema da nossa dependência económica em relação à China.
Mas a resposta não reside numa escalada. Implica uma ação alter-mundialista que combine protecionismo com solidariedade e coligações de progresso com o único objetivo de responder aos desafios comuns da humanidade e de pôr de lado qualquer lógica de blocos antagónicos”. Entrevista com Arnaud le Gall, deputado de NUPES-França insubmissa, membro da Comissão dos Negócios Estrangeiros, responsável pela secção internacional de Avenir en commun.
Le Vent Se Lève – Porque é que a France insoumise considerou útil denunciar a visita de Nancy Pelosi a Taiwan? Afinal, não é nem o presidente nem o secretário de Estado americano. Por outro lado, a reação da China não se fez esperar e foi virulenta…
Arnaud le Gall – A visita de Nancy Pelosi foi a do mais alto funcionário americano a visitar Taiwan desde 1997. Num contexto geopolítico tenso, só poderia levar a um forte aumento das tensões. Os chineses acreditam que os EUA estão a tentar desafiar o status quo e a doutrina de Uma só China. Esta é a posição oficial da França, dos EUA e de 184 dos 197 estados membros da ONU. Os Estados Unidos, desde a Lei de Taiwan de 1979, e a França, desde 1964, concordaram em não reconhecer a independência de Taiwan.
É portanto difícil ver como a visita de Nancy Pelosi não poderia ter sido vista como uma forma de criar um ponto de tensão numa área estratégica para a China. É claro que a reação da China pode ser vista como desproporcionada. Mas não há necessidade de exagerar a estupefação: a resposta de Pequim não surpreendeu ninguém. Não houve nenhuma ingenuidade da parte de Nancy Pelosi, que não escolheu este momento ao acaso para fazer a sua visita a Taiwan.
A visita não foi bem recebida na Coreia do Sul e no Japão, que não têm qualquer desejo de se envolverem num conflito sobre Taiwan. Mesmo nos Estados Unidos, a visita não obteve a aprovação unânime. Há rumores de desaprovação de Joe Biden, enquanto vários líderes militares e muitos meios de comunicação social desaprovaram (1). Deve ter-se em conta que, na altura do conflito ucraniano, parte do aparelho de Estado norte-americano está principalmente interessado em impedir a China de prestar um apoio decisivo à Rússia, por exemplo, através da entrega de armas.
LVSL – Ao ter palavras tão duras para Pelosi sem criticar a reação chinesa, Jean-Luc Mélenchon não se prestou a críticas?
ALG – É difícil ver como os comentários de Jean-Luc Mélenchon, quando menciona a necessidade de reconhecer apenas uma China, estão em oposição à posição oficial francesa sobre o assunto. Não disse nada de diferente de Catherine Colonna, Ministra dos Negócios Estrangeiros (2), que recordou que a posição da França não tinha mudado desde que o General de Gaulle reconheceu a República Popular da China em 1964.
LVSL – Como interpreta a sequência mediática que se seguiu, acusando Jean-Luc Mélenchon de complacência para com a China?
ALG – Um certo número de atores políticos e de meios de comunicação social têm interesse em destacar a posição de Jean-Luc Mélenchon, a fim de dar crédito à tese absurda de que o seu suposto apoio à República Popular da China pode ser explicado pelo seu gosto particular por regimes autoritários. Quando não mesmo querendo insinuar que ele próprio seria um ditador em potência! Pelo contrário, Jean-Luc Mélenchon segue uma leitura bastante clássica das relações internacionais. Ele considera que o cerne destas relações reside nas relações inter-estatais, para além da natureza dos regimes. Sem de forma alguma excluir as dinâmicas e atores transnacionais, o que é um outro assunto.
Jean-Luc Mélenchon expressou-se, portanto, sobre este assunto como um homem de Estado. Ele mostrou como reagiria a esta visita se estivesse à frente do país: mantendo uma política de não-alinhamento e de independência absoluta.
Isto não implica qualquer proximidade ideológica com os líderes da República Popular da China. O General de Gaulle não se tornou maoísta por reconhecer Mao Tse Tung como líder oficial da China em 1964, ou bolchevique por trabalhar para o desanuviamento com a União Soviética. Ele tinha simplesmente em conta o lugar particular destes Estados nas relações de força internacionais.
Deve lembrar-se que esta orientação diplomática lhe tinha merecido fortes críticas por parte de setores da direita e da extrema-direita. Em Março de 1966, na sequência da retirada da França do comando integrado da NATO, o diretor do Le Figaro lamentou o ressurgimento do “perigo russo”, mas também “outros perigos”: “Mao Tse Tung é outro Hitler. No seu lugar pode surgir um Genghis Khan, um Tamerlane, um Maomé que, armado com armas atómicas, arrastará as populações famintas da Ásia e da África a atacar os povos ricos e prósperos, a atacar os Brancos e a sua civilização” (3). Para além das diferenças de contexto, os termos e desafios do debate mostram uma certa continuidade…
LVSL – Mais amplamente, como analisa o papel de Taiwan no aumento das tensões sino-americanas?
ALG – As tensões em torno de Taiwan são inseparáveis da lógica de reconstituição de blocos regionais no quadro da fragmentação da globalização a que temos vindo a assistir desde a crise financeira e económica de 2008, cujos efeitos ainda se fazem sentir, e que foram exacerbados pela pandemia e pela guerra na Ucrânia. A era do domínio unipolar americano terminou. Está a ter lugar uma recomposição, com grandes potências a procurarem construir novas alianças, económicas e/ou militares.
Não deve haver nenhuma nostalgia para a “pax americana” dos anos 1990-2000. Não foi pacífico para todos, longe disso. Mas tenhamos cuidado para não subestimar os imensos perigos do período que se avizinha. Pois os pontos de tensão, dos quais Taiwan é um dos principais, têm uma função muito específica nesta nova ordem internacional: agitá-los a fim de legitimar e acelerar a constituição dos blocos. Neste contexto, os apoiantes de uma nova Guerra Fria contra a China nos Estados Unidos estão a tentar apresentar aos Estados europeus um facto consumado, a fim de unir o bloco ocidental. Será isto do nosso interesse? Claramente não.
É claro que não é proibido olhar para a história de Taiwan e as suas relações com a República Popular da China. As suas tendências pró-independência estão ligadas a desenvolvimentos democráticos relativamente recentes no interior do país. Mas não esqueçamos que durante décadas, a linha diplomática que prevaleceu em Taipé foi a mesma que em Pequim: existe apenas uma China. Porque Taiwan é, acima de tudo, um produto da guerra civil chinesa. Quando o líder nacionalista Chiang Kai-shek se refugiou ali após a vitória comunista no continente em 1949, queria que a China se reunisse sob a sua égide. Da mesma forma, Mao Tse Tung queria Taiwan de volta. Ambos concordaram sobre a necessidade de reunificação.
LVSL – A esquerda parece estar dividida entre o imperativo da defesa dos direitos humanos (ou da democracia) e a necessidade de respeitar o direito internacional, que afirma que um Estado é soberano sobre cada parte do seu território (mesmo a região de Taiwan, no caso da China)…
ALG – O caso de Taiwan é historicamente uma questão interna chinesa. Fazer um jogo de palavras em nome da defesa da democracia não vai mudar este facto. Sejamos claros. Isto não quer dizer que a luta pela democracia, pela soberania política e económica dos povos, não deva permanecer um objetivo essencial de qualquer luta internacionalista, a par da luta pela preservação de um ecossistema viável para os seres humanos.
Mas em sequências como a que acabamos de testemunhar, somos colocados numa situação concreta onde a defesa da democracia é apenas um pretexto. Se o objetivo central das classes dirigentes “ocidentais” fosse a defesa da democracia, não estariam a cortejar Mohammed Ben Salmane, o príncipe herdeiro saudita, ou Al-Sissi, o ditador egípcio, para citar apenas os exemplos mais flagrantes. Estamos a lidar com questões geopolíticas difíceis, não com a defesa da democracia. E aqui o interesse da França é certamente não seguir a política de tensões na chamada zona Indo-Pacífico. O caso dos submarinos australianos mostrou que seguir os Estados Unidos, nesta região como em qualquer outra, vem acompanhado de um preço elevado (4).
Os meios de comunicação social fingiram descobrir que a esquerda estava dilacerada por diferenças doutrinárias ou nuances no campo das relações internacionais. No entanto, elas são conhecidas há muito tempo, nunca foram escondidas, e não impedem de forma alguma a nossa ação. No programa apresentado para as eleições legislativas, uma série de questões foram remetidas para a sabedoria da Assembleia: pretendiam ser decididas através de uma votação. Temos sido claros a este respeito, e nunca afirmamos ser homogéneos. Isto não impede o NUPES de liderar a batalha no Parlamento sobre questões sociais, ecológicas e democráticas.
LVSL – Quais são as nuances em termos da doutrina das relações internacionais no seio da coligação NUPES?
ALG – Jean-Luc Mélenchon expressou uma posição que consiste em partir do mundo tal como ele é. Recusa-se a subscrever promessas – bem fundamentadas ou não – que a França seria incapaz de cumprir quando estivéssemos no poder. Aqueles que consideram que a sua posição não é a correta, devem responder antecipadamente a algumas questões importantes. A principal é a seguinte: se encorajarmos Taiwan a declarar a sua independência, como faz Nancy Pelosi, defendê-la-emos militarmente se a China reagir com armas? Todos sabem a resposta. Não se vai para a guerra com uma potência nuclear.
A doutrina de Jean-Luc Mélenchon nesta área é portanto coerente: ele defende uma política de apaziguamento, de recusa das tensões, e de coligações, ad hoc ou permanentes, ao serviço do progresso humano. A França pode concordar com um grupo de países sobre o imperativo de combater o aquecimento global ou de regular as atividades no alto mar, com outro sobre a necessidade de reformar o sistema monetário internacional, e discordar sobre outros assuntos, particularmente em termos de política interna.
Há aqueles que reivindicam uma chamada abordagem mais moral das relações internacionais. Podemos ouvi-los, mas não podemos deixar de lhes perguntar o que fariam no caso de uma crise aberta em Taiwan e de uma reação militar chinesa, e como combinam esta abordagem moral com o facto de, na prática, ser frequentemente utilizada como um ecrã para as manobras mais cínicas deste ou daquele poder alegando ser moral.
LVSL – Será que estas nuances se cruzam com a divisão entre realistas e idealistas, que é acarinhada pelos teóricos das relações internacionais?
ALG – Devemos libertar-nos das demarcações canónicas nesta área. Quando, na viragem dos anos 1990-2000, os neoconservadores americanos implementaram a exportação dos direitos humanos e da democracia através da guerra, com os resultados desastrosos que conhecemos, estavam eles numa postura realista ou idealista? É evidente que as suas políticas estavam exclusivamente ao serviço dos interesses dos Estados Unidos e, de facto, dos interesses de certos sectores da economia dos EUA. A linha entre idealistas que são automaticamente generosos e realistas que são necessariamente cínicos é muito mais fluida do que parece.
O mundo é imperfeito, a falta de instituições democráticas e a violação dos direitos humanos é a norma e não a excepção. Esta é uma das questões levantadas pela controvérsia de Taiwan, e é mérito de Jean-Luc Mélenchon responder-lhe sem ambiguidade.
Acrescentemos que apresentar o confronto com a China como uma guerra de civilizações ou de valores opondo regimes autoritários e democracias liberais (cujos contornos deveriam ser definidos com precisão, dado o enfraquecimento da democracia a que estamos a assistir, inclusive no nosso próprio país, como resultado das políticas seguidas pelas próprias pessoas que afirmam defender a democracia nos quatro cantos do mundo, quando lhes convém), faz-nos esquecer os desafios económicos subjacentes à crise de Taiwan. Taiwan produz 61% dos semicondutores, os componentes essenciais no fabrico de muitos bens industriais. Esta é precisamente uma questão importante. Uma visão maniqueísta e puramente moral das relações internacionais impede-nos de pensar em certas questões fundamentais.
LVSL – Será que esta crise não revela a vulnerabilidade da França à perspetiva de uma guerra económica entre a China e os Estados Unidos? Taiwan concentra uma grande parte da produção de semicondutores: se o governo de Pequim ocupasse a ilha e negasse aos europeus o acesso à mesma, as consequências seriam significativas para a França…
ALG – Obviamente. O acesso a semicondutores de Taiwan é essencial para setores inteiros das economias ocidentais. Ora, uma crise militar em redor da ilha agravaria uma situação de escassez já aguda. Algumas pessoas parecem ter descoberto isto com a pandemia e desde então que esta interdependência económica, aliada às tensões com a China, constitui uma ameaça à nossa autonomia. Por conseguinte, lamentam a ordem mundial que os neoliberais ajudaram a moldar ao pressionarem há 20 anos a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), e assim a sua integração na globalização neoliberal.
Na altura, a nossa família política opôs-se a ela. Tinha em mente as consequências de uma tal decisão em termos de deslocalização, e portanto de desindustrialização: era óbvio que a China, uma grande potência histórica, tanto política como economicamente, e com um regime ao leme com capacidades de planeamento comprovadas, não se contentaria em produzir chinelos de dedo e guarda-sóis.
Os neoliberais, na sua ingenuidade e arrogância, convencidos de que os EUA e a Europa permaneceriam dominantes na ordem internacional graças à sua liderança tecnológica, pressionaram a deslocalização de sectores inteiros da nossa indústria para a China, a fim de baixar os custos salariais. A China aproveitou este afluxo massivo de capital para se tornar não só uma grande potência industrial, mas também uma potência tecnológica e, portanto, militar.
Foi isto que lhe permitiu adquirir, em duas décadas, capacidades tecnológicas avançadas e um papel central na divisão internacional da produção capitalista. É agora a segunda maior economia do mundo. Em vez de multiplicar os as gabarolices sobre a contenção do imperialismo chinês, seria mais sensato pensar nas políticas económicas, industriais e comerciais a pôr em prática para nos tornar menos dependentes da China, e planear de passagem a nossa adaptação às mudanças ecológicas.
Isto pressupõe, evidentemente, uma ruptura com o paradigma neoliberal. Da mesma forma, não serve de nada lamentar a nossa dependência energética da Rússia se não prosseguirmos ao mesmo tempo uma política de conquista da nossa independência energética. Tal como está, o principal efeito das sanções terá sido o de agravar o aumento dos custos de energia aqui, ao mesmo tempo que melhora a balança comercial russa. A dependência da França e da Europa das grandes potências, em primeiro lugar, os Estados Unidos, a Rússia e a China, é extremamente preocupante. Nem o palavreado sem sentido, nem a retórica atlantista contra a China e a Rússia fornecerão soluções, porque apenas nos fecham num bloco cujo centro, os Estados Unidos, tem os seus próprios interesses. Basta olhar para a guerra inversa das moedas, que acaba de começar com o aumento das taxas de juro, e que faz correr o risco de fraturar novamente a zona Euro.
O nosso interesse está em planear a nossa independência no maior número de áreas possível. A política de não-alinhamento e de apaziguamento que propomos é uma das condições para tal. Debater com toda a gente, e meter travões na globalização neoliberal sempre que possível, é a única saída positiva. A esquerda deve ter em mente as palavras de Jaurès, pronunciadas na Assembleia em 1895: “Só há uma maneira de abolir finalmente a guerra entre os povos, é abolir a guerra entre os indivíduos, abolir a guerra económica, abolir a desordem da sociedade atual, e substituir a luta universal pela vida, que leva à luta universal nos campos de batalha, por um regime de concórdia social e de unidade.”
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Notas:
[1] No dia 3 de julho, o New York Times tinha como um dos seus títulos: «Pelosi’s Taiwan visit risks undermining US efforts with Asian allies».
[2] Ao Libération, ela declarava: «La France s’en tient à la position d’une seule Chine» (Catherine Colonna, ministra dos Negócios estrangeiros: “Ce que nous défendons en aidant l’Ukraine, c’est notre propre sécurité”», 5 julho).
[3] Citado em Dominique Vidal, «Ce que voulait de Gaulle en 1966», Le Monde diplomatique, abril de 2008.
[4] Ler a reação de Jean-Luc Mélenchon sobre este tema em Opinion de 17 de setembro de 2021: «Cessons de suivre les États-Unis dans leurs aventures dans la zone indopacifique»