CARTA DE BRAGA – (Um conto para este Natal) “nas árvores da minha rua” por António Oliveira

Ele chega da minha direita, umas vezes de baixo, do chão, vem lento, a olhar tudo em volta, mas por não ver movimento nem ouvir barulho, ensaia uma espécie de bailado, a saltitar no canteiro e a girar o corpito, mas sem dar nenhuma volta e, num instante está em cima do ramo que pende para o lado esquerdo daquela árvore. 

Outras vezes vem do quintal da casa onde vivo, ou do terreno vazio mais acima, também do lado direito da minha janela, a voar rápido, abre as asas mais ou menos a metro e meio da árvore, para descer cuidoso até aterrar no canteiro, repetir o mesmo bailado e depois, saltar para o tal ramo a cair para o lado esquerdo. 

Quando se considera instalado, ensaia um canto sonoro, uns dois ou três assobios seguidos do som de um assobio esganado, alegre e repetido, sequência logo repetida, passados alguns segundos. 

Às vezes até parece que o canto se torna inquieto, por se repetir frequente e, de repente, dou conta de ela chegar vinda de um quintal mais abaixo, também do lado esquerdo, mas vai poisar distante, a uns sete ou oito metros, na árvore à direita daquela onde ele está. 

Começam depois uma série de voos curtos e rápidos, trocando de árvore e de ramo, às vezes descem até à estrada onde, desde que o vírus atacou, quase não passa um carro, mas não param quietos nem um bocadinho. 

Ela assume o comando do jogo, distingo-a pela plumagem e pelo bico, mais afumados e baços nela, voltam uns minutos depois para a mesma árvore, até ela fugir e poisar na antena da tv de um prédio mesmo em frente da minha janela. 

Ele demora um pouco até decidir se vai também, mas um bater de asas, apressado e sonoro, leva-o a levantar voo e ir até lá, onde ela já não está por ter voado rápida para um lugar qualquer que já não vejo. 

Só os volto a ver um dia ou dois depois, mas oiço-os de manhazinha, são eles de certeza, por ouvir aquele assobio esganado e, no fim do que será a mudança dos poisos, ouvir o cantar dele a mudar de sítio e o silêncio voltar a reinar. 

Falei disto a um homem bem antigo, sabedor das ‘coisas da natura’ a expressão é dele, para me explicar as mudanças das cores e dos cantos, riu mais para si do que para mim, e ‘tens obrigação de saber que, na natura, manda ela, ele não passa de um pavão, e são assim tanto os pássaros como os homens! Todos querem o mesmo!’ 

E contou ainda da cor preta e do bico amarelo, ‘Uma vez, há centões de anos, ainda os pássaros se entendiam, o avô do avô do teu melro, entrou numa cova onde haveria um tesouro e um mago. Entrou a pedido da avó da avó do que tu viste, para procurar o tal tesouro e lhe trazer uma prenda, por ser tempo de solstício, aquilo a que nós chamamos Natal. Eles gostam muito de coisas doiradas e, ao entrar, viu logo um monte de poeira doirada a um canto; meteu o bico a ver se encontrava alguma coisa para lhe levar e, nessa altura, apareceu o tal mago que, ao vê-lo, lhe cuspiu fogo. Quando o coitado saiu, tinha as penas todas pretas e só o bico provava que tinha lá estado!

– Onde aprendeu isso? perguntei respeitoso.

– Se calhar sonhei-o, mas até que é lindo, e serve perfeitamente para o teu pássaro, o teu melro que nem é teu, é das árvores da tua rua, como ela é da antena da tv!

E, se calhar, até é verdade! 

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

3 Comments

  1. Meu amigo, tal como dizes, para o bem e para mal, nesta época, lá está a mulher na cozinha para cumprir o Natal…Fica tudo de lado: lá se vai tlm, computador, tudo…Nem as cartas dos amigos escapam 🙂 Hoje, já mais calma, vim cá espreitar e ..claro, li o teu conto…Gosto de contos. Gostei do teu conto : está todo embrulhado em ternura, todo feito de olhares observadores que poisam na Natureza…Um enleio! Uma festa que se cumpre ! Haja olhos e ouvidos como os teus! Bem hajas, amigo! Parabéns!

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