Ele chega da minha direita, umas vezes de baixo, do chão, vem lento, a olhar tudo em volta, mas por não ver movimento nem ouvir barulho, ensaia uma espécie de bailado, a saltitar no canteiro e a girar o corpito, mas sem dar nenhuma volta e, num instante está em cima do ramo que pende para o lado esquerdo daquela árvore.
Outras vezes vem do quintal da casa onde vivo, ou do terreno vazio mais acima, também do lado direito da minha janela, a voar rápido, abre as asas mais ou menos a metro e meio da árvore, para descer cuidoso até aterrar no canteiro, repetir o mesmo bailado e depois, saltar para o tal ramo a cair para o lado esquerdo.
Quando se considera instalado, ensaia um canto sonoro, uns dois ou três assobios seguidos do som de um assobio esganado, alegre e repetido, sequência logo repetida, passados alguns segundos.
Às vezes até parece que o canto se torna inquieto, por se repetir frequente e, de repente, dou conta de ela chegar vinda de um quintal mais abaixo, também do lado esquerdo, mas vai poisar distante, a uns sete ou oito metros, na árvore à direita daquela onde ele está.
Começam depois uma série de voos curtos e rápidos, trocando de árvore e de ramo, às vezes descem até à estrada onde, desde que o vírus atacou, quase não passa um carro, mas não param quietos nem um bocadinho.
Ela assume o comando do jogo, distingo-a pela plumagem e pelo bico, mais afumados e baços nela, voltam uns minutos depois para a mesma árvore, até ela fugir e poisar na antena da tv de um prédio mesmo em frente da minha janela.
Ele demora um pouco até decidir se vai também, mas um bater de asas, apressado e sonoro, leva-o a levantar voo e ir até lá, onde ela já não está por ter voado rápida para um lugar qualquer que já não vejo.
Só os volto a ver um dia ou dois depois, mas oiço-os de manhazinha, são eles de certeza, por ouvir aquele assobio esganado e, no fim do que será a mudança dos poisos, ouvir o cantar dele a mudar de sítio e o silêncio voltar a reinar.
Falei disto a um homem bem antigo, sabedor das ‘coisas da natura’ –a expressão é dele–, para me explicar as mudanças das cores e dos cantos, riu mais para si do que para mim, e ‘tens obrigação de saber que, na natura, manda ela, ele não passa de um pavão, e são assim tanto os pássaros como os homens! Todos querem o mesmo!’
E contou ainda da cor preta e do bico amarelo, ‘Uma vez, há centões de anos, ainda os pássaros se entendiam, o avô do avô do teu melro, entrou numa cova onde haveria um tesouro e um mago. Entrou a pedido da avó da avó do que tu viste, para procurar o tal tesouro e lhe trazer uma prenda, por ser tempo de solstício, aquilo a que nós chamamos Natal. Eles gostam muito de coisas doiradas e, ao entrar, viu logo um monte de poeira doirada a um canto; meteu o bico a ver se encontrava alguma coisa para lhe levar e, nessa altura, apareceu o tal mago que, ao vê-lo, lhe cuspiu fogo. Quando o coitado saiu, tinha as penas todas pretas e só o bico provava que tinha lá estado!’
– Onde aprendeu isso? perguntei respeitoso.
– Se calhar sonhei-o, mas até que é lindo, e serve perfeitamente para o teu pássaro, o teu melro que nem é teu, é das árvores da tua rua, como ela é da antena da tv!
E, se calhar, até é verdade!
António M. Oliveira
Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor
Bonito, simples como devem ser todas as histórias
Simples como devem ser todas as críticas, boas ou menos boas. Obrigado
A.O.
Meu amigo, tal como dizes, para o bem e para mal, nesta época, lá está a mulher na cozinha para cumprir o Natal…Fica tudo de lado: lá se vai tlm, computador, tudo…Nem as cartas dos amigos escapam 🙂 Hoje, já mais calma, vim cá espreitar e ..claro, li o teu conto…Gosto de contos. Gostei do teu conto : está todo embrulhado em ternura, todo feito de olhares observadores que poisam na Natureza…Um enleio! Uma festa que se cumpre ! Haja olhos e ouvidos como os teus! Bem hajas, amigo! Parabéns!