A Rússia escondeu o aniversário da fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas atrás de uma cortina, nem se deu conta dele, e os restos foram varridos para debaixo de um tapete de vítimas e de escombros.
Mas vai fazer um ano em Fevereiro, que a Ucrânia foi invadida pela Rússia, destruindo cidades e matando a população civil, com justificações que, por cá, passariam bem nos altifalantes das feiras populares do verão. Só que, afirmou António Guterres, secretário geral da ONU, em 10 de dezembro último, ‘Os direitos humanos são a base da dignidade humana e a pedra angular de sociedades pacíficas, inclusivas, justas, igualitárias e prósperas’, acrescentando serem ‘uma força unificadora e um grito de guerra’, pois desde 1945, nenhuma guerra teve tantas, tão graves consequências e complicados impactos mundiais.
Apesar disso, ‘A História está a reescrever-se, a marchas forçadas, bem mesmo à nossa frente’, garantiu há uma semanas a um jornal europeu, o poeta e cronista John William Wilkinson. Não consigo pensar de outra maneira quando, num outro jornal também europeu, já se afirmava em princípio de Novembro, que os bens culturais da Ucrânia, estavam a ser objecto de ataque por parte da Rússia e de acordo com os dados da Unesco, 210 bens de interesse cultural, sofreram graves estragos, ‘91 lugares religiosos, 15 museus, 76edifícios de interesse histórico e artístico, 18 monumentos e 10 bibliotecas’.
Há qualquer coisa a levar-me a Lev Tolstoi e ao seu livro ‘Os últimos escritos’, que reúne as reflexões do escritor russo feitas entre 1882 e 1910, o ano da sua morte. Um conjunto de pensamentos sobre temas variados, religião, arte, violência, a morte e a política, e onde fui buscar, ‘O governo e as classes superiores que detêm o poder… instigam o seu próprio povo e algum governo estrangeiro, e depois fingem que, pelo bem-estar, ou para defesa do seu povo, devem declarar guerra: o que, uma vez mais, traz vantagens só para os generais, os oficiais, os mercadores e, em geral, só para os ricos’.
A escritora e filósofa francesa Simone Weil, que esteve presa em Auschwitz e lutou na guerra civil de Espanha as lado dos republicanos, afirmou uma vez, ‘Somos filhos do passado e, com ele nas mãos, e apenas com esse único instrumento, temos de construir o futuro’ e, por isso, não se pode esquecer, como disse ainda Tolstoi, ‘A todos os que não professam a sua fé com os símbolos exteriores e as mesmas palavras que os ortodoxos têm, embora o tentem ocultar, uma atitude hostil, o que é natural, em primeiro lugar, a afirmação de que tu vives na mentira e eu vivo na verdade é a coisa mais cruel que um homem pode dizer a outro homem’, na pátria de enormes escritores como Dostoievski, Tchekhov, Gogol e Pasternak, ou de músicos tão grandes como Tchaikovsky e Shostakovitch, só para citar alguns.
O escritor Yuval Harari, também salientou no ‘La Vanguardia’, há umas semanas, ‘No momento em que escrevo estas linhas, princípios de Novembro, os soldados russos saqueiam a cidade ucraniana de Kherson, e enviam para a Rússia camiões cheios de carpetes e torradeiras, roubadas das casas ucranianas. Isso não tornará a Rússia mais rica, nem compensará os russos pelos enormes custos da guerra’.
A juntar a estas coisas todas, os ucranianos têm bem presente o termo ‘Holodomor’, o extermínio pela fome de quatro milhões de pessoas (1932-1934), provocado pela desastrosa gestão política de Estaline, a que se juntou a brutal perseguição aos artistas e intelectuais ucranianos, a proibição de usar a sua língua, cujo objectivo não era mais do que secar a semente e a raiz da identidade ucraniana.
Tudo porque, voltando a Tolstoi, ‘As classes governantes têm nas mãos as tropas, o dinheiro, a escola, a religião, a imprensa e um governo, no sentido mais amplo, que inclui em si os capitalistas e a imprensa, mas não é mais do que uma organização em que a maior parte das pessoas fica sob o poder de uma pequena parte; e essa mesma parte submete-se ao poder de outra parte ainda mais pequena; e esta ao poder de outra ainda mais pequena, etc., chegando finalmente a um pequeno grupo de pessoas ou a uma só pessoa, que por meio da violência armada, obtém o poder sobre todas as outras’.
Assim, com a amarga recordação dos soviéticos, tanto num lado como no outro da fronteira entre os dois países, as gerações futuras terão de enfrentar ainda, toda a carga de vexame e indignidade que o autocrata mandão da Rússia, está a levar a cabo há quase um ano, especialmente contra a população civil ucraniana.
O comentador e ex-director do ‘La Vanguardia’ Lluís Foix, afirmou há alguns dias, ‘Putin perdeu esta guerra, apesar de ter anexada toda a Ucrânia. Foi ele que ordenou a invasão e está a bombardear e destruir objectivos civis nas cidades ucranianas. Se a ganhar, as suas ambições são debilitar a Europa, recuperar as repúblicas que foram soviéticas, como as bálticas, e depois neutralizar as que pertenciam ao Pacto de Varsóvia. A guerra será longa’.
O historiador e cronista António Araújo, escreveu já em Novembro no ‘DN’, ‘A Ucrânia é só uma batalha de uma guerra muito mais vasta, que tem de ser travada aqui, a Ocidente, pois é o nosso modelo de governo e de sociedade que se encontra sob ameaça, uma ameaça como nunca vimos. Infelizmente, ainda há quem não tenha percebido isto, que é uma verdade bem simples’, mas que o autocrata russo reconheceu final e publicamente, no dia 22 de Dezembro (DN.22.12).
E li, há uns dias, a antiga piada checa, agora a ser readaptada à Polónia; uma fada apareceu a um checo e disse-lhe estar disposta a satisfazer-lhe três desejos e logo o checo responde –Quero que o exército chinês nos invada e logo se retire–; a fada perguntou pelos outros dois e o checo deu a mesma resposta; quando a espantada fada lhe perguntou a razão de tal repetição, o checo sorriu com malícia –Porque cada vez que os chinos nos invadam, terão de atravessar a Rússia, tanto à vinda como de volta–
Também li, já não me lembro onde, que Gideon Rachman, colunista principal do ‘Financial Times’, teria afirmado há já uns meses –citando Trumpa, Putin, Xi Jinping, Boçalnaro e Narendra Modi–, ‘Todos os homens fortes necessitam de um argumento que justifique serem necessários frente a uma crise’.
E não será que ele até poderá ter razão?
E onde estará a cortina que escondeu o aniversário de um acontecimento fundamental no século XX, mas que também carregou o sofrimento de milhões de pessoas?
António M. Oliveira
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