Para lá da guerra na Ucrânia — “União Europeia numa encruzilhada”. Por Carlos Branco

Seleção de Francisco Tavares

10 min de leitura

Com a devida vénia e agradecimento a Carlos Branco e a O Referencial da Associação 25 de Abril

União Europeia numa encruzilhada

 Por Carlos Branco

Publicado por  Associação 25 de Abril, nº 146, Julho-Setembro de 2022 (original aqui)

 

Os dirigentes europeus parecem não entender a encruzilhada histórica com que se depara a União Europeia. Na foto, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Gertrud von der Leyen. Foto de Tony da Silva, Lusa.

 

Veremos se a guerra na Ucrânia não será o prego no caixão das relações da União Europeia com a China. Apesar das incertezas quanto ao futuro cenário que vier a prevalecer, os europeus parecem ser perdedores nesta contenda.

 

NO MOMENTO EM QUE a guerra regressa ao velho continente, impõe-se uma reflexão sobre o futuro da União Europeia (UE). Ainda a recuperar das feridas causadas pela doença da Covid-19, a Europa viu-se envolvida numa confrontação geoestratégica entre as grandes potências do planeta, com o intuito de reverem entre elas a atual distribuição de forças. Embora os dirigentes europeus repitam o desejo de tornar a UE num ator global dotado de autonomia estratégica, a Covid e a recente convulsão causada pelo conflito na Ucrânia trouxeram à tona de água uma série de dependências em setores estratégicos importantes, como o dos metais e minerais críticos e o energético, ao que se soma a quebra nas cadeias de abastecimento, podendo assim comprometer a concretização daqueles dois objetivos. Autonomia não joga com dependência. A forma como a UE lidar com estes desafios determinará o seu futuro papel no mundo.

Abordaremos sumariamente, neste texto, algumas das dependências europeias naqueles domínios, que, a não serem convenientemente atendidas, poderão inviabilizar a ambição de a UE se tornar, não só num ator geoestratégico de primeira dimensão, como conduzir ao seu definhamento e irrelevância internacional, tornando-a num anão geopolítico. Falamos sobretudo das matérias- -primas críticas, necessárias à transição energética e tecnológica que nos está a bater à porta. As guerras entre grandes potências têm sempre como consequência novos arranjos de forças. Umas ganham, outras perdem. Importa, pois, perceber antecipadamente quais poderão ser os resultados deste conflito para a Europa.

 

OPÇÕES GEOESTRATÉGICAS DIFÍCEIS

O tema é da maior pertinência no contexto geopolítico em que vivemos, com os EUA a procurarem manter o status quo e a alargar o seu poder e influência à escala mundial, e as potências revisionistas, procurando alterar a presente correlação de forças, tornando-a menos assimétrica. Onde se pretende situar a UE nesta luta de titãs? Pretende ser um polo de poder com atuação planetária e objetivos geoestratégicos muito concretos e precisos, em que atuação global e autonomia estratégica andam de mãos dadas, com capacidade para participar na construção de uma ordem securitária, apoiada numa grande estratégia, em particular uma estratégia militar? Por outras palavras, pretende a UE ser um inter pares dos restantes atores maiores da cena internacional, ou apenas desempenhar um papel secundário e subordinado, funcionando como apêndice de um outro projeto hegemónico de alcance mundial?

A ambição da UE se tornar num ator global dotado de autonomia estratégica foi anunciada e tem vindo a ser reiterada em inúmeras ocasiões e documentos. Essa intenção foi novamente anunciada no chamado “Compasso Estratégico”, em março de 2022. Embora fossem estabelecidos nesse documento os princípios, as prioridades e os objetivos da ação externa da UE, ele era omisso nas questões que nos parecem cruciais para se obter a tão propalada autonomia. O mais longe a que se chegou, foi admitir que a tão pretendida autonomia não se devia limitar ao setor da segurança e defesa, mas alargar-se a outros domínios.

A essa ambição autonómica europeia contrapõe-se, de certo modo, o projeto hegemónico norte-americano que procura impedir a emergência de um polo de poder geoestratégico rival e concorrente, mesmo na Europa.

Como afirmava Zbigniew Brzezinski, “o modo como a América lida com as complexas relações de poder eurasiáticas – particularmente impedir o surgimento de uma potência eurasiática dominante e antagónica – permanece central no esforço dos EUA para obter a primazia global. É fundamental para os EUA impedir a emergência de um desafiador eurasiático, capaz de dominar toda a região eurasiática e assim também de desafiar a América. O nosso [norte-americano] primeiro objetivo é impedir o ressurgimento de um novo rival, seja no território da ex-União Soviética ou noutro lugar, que possa representar uma ameaça da natureza semelhante à da antiga União Soviética.”

Na mesma linha, Paul Wolfowitz afirmava que “o departamento de Defesa garantia que a missão política e militar dos EUA na era pós-guerra fria será a de assegurar que nenhuma superpotência rival possa emergir na Europa Ocidental, Ásia ou território da antiga União Soviética.” Se as opções geoestratégicas da UE já não eram fáceis, tornaram-se muito mais complicadas com a guerra na Ucrânia.

 

QUANDO O CERTO SE TORNA INCERTO

O tema da(s) dependência(s) europeia(s) tem sido objeto de estudo, a nosso ver insuficiente dada a sua capital importância para o futuro da UE, não só para a sua sobrevivência mas também para a sua afirmação como ator internacional relevante. Neste texto debruçar-nos-emos primordialmente sobre as dependências europeias da Rússia e da China, as potências desafiadoras da ordem, mas também sobre os efeitos que esta guerra poderá provocar no comércio internacional e nas cadeias de abastecimento que lhe estão subjacentes, assim como reavaliar o mérito até aqui inquestionável da interdependência económica global.

Parece que as redes produtivas criadas pela globalização acentuaram a conflitualidade e a luta pelo poder, em vez de promoverem a cooperação. O modelo económico assente na especialização do trabalho entre países criou eficiências, mas também grandes vulnerabilidades, que se encontram à vista de todos. A Covid-19 e a guerra na Ucrânia poderão terminar com a globalização, tal como a conhecemos hoje.

O debate torna-se mais premente quando falamos de transição energética e tecnológica. Falamos das novas tecnologias altamente exigentes na utilização de dados (comunicações móveis de quinta geração, inteligência artificial, quantum computing, robotização, biotecnologia, veículos sem condutor, aparelhos médicos de alta performance, a designada “internet das coisas” e as indústrias de defesa) que vão definir os termos do futuro paradigma tecnológico e industrial.

Um relatório efetuado no âmbito da Comissão Europeia identificava 137 dependências da União. Dessas, 52% tinham origem na China, e apenas 3% na Rússia. Por si só, a contabilização é um instrumento de análise insuficiente, se não estabelecermos uma relação com a natureza do impacto de cada uma delas. Preocupar-nos-emos fundamentalmente com as de maior impacto na transição energética e tecnológica.

Um dos aspetos que os sete meses de guerra parecem tornar evidente é o facto de o modelo de desenvolvimento económico europeu assente em matérias-primas baratas, que lhe permitiam obter vantagens competitivas no mercado global e no setor de serviços, em detrimento do setor industrial e das commodities, parece estar esgotado. O setor de serviços representa cerca de 77% da economia nos EUA, e 70% na economia da União, enquanto na Rússia e na China essa cifra é consideravelmente menor em benefício da indústria. A crise provocada pela Covid e pela guerra na Ucrânia está a evidenciar que o que costumávamos dar como certo – a indústria e as commodities -, o lado antiquado da economia comparado com os novos e brilhantes “serviços”, afinal pode não ser assim tão certo. A Covid foi bastante eficaz nessa lembrança.

 

AS INDÚSTRIAS DO FUTURO

Como atrás ficou sublinhado, o futuro da Europa dependerá do modo como se conseguir posicionar relativamente às indústrias do futuro.

As relações tensas entre a China e os EUA, a crise do Covid-19 e a guerra na Ucrânia trouxeram à tona de água uma série de dependências europeias em matéria de comércio, investimento e cadeias de abastecimentos.

Sem a possibilidade de aceder às matérias-primas baratas que o colonialismo permitia e ao gás russo barato (e outros produtos), está a ser difícil à Europa implementar um sistema industrial vencedor e competir com vantagens nos mercados globais. A guerra veio demonstrar que afinal a economia russa é mais importante do que se pensava.

A Europa tem pela frente dois problemas incontornáveis: a transição energética e industrial. Em matéria de energias renováveis, eletrónica e digital e indústrias intensivas em energia, a UE está fortemente dependente de matérias-primas de que não dispõe. A mesma dificuldade surge noutros setores, como na saúde, onde os ingredientes para a produção de medicamentos são provenientes de outras latitudes que não a europeia. Quando falamos, por exemplo, em energia solar, os 10 maiores fabricantes mundiais encontram-se quase todos na Ásia. A China domina na fabricação de painéis solares (96% em wafers; 77% nas células, Europa 0%; e 70% em módulos, Europa 2%).

Noutras matérias igualmente cruciais, o atraso europeu é evidente: o maior fornecedor europeu de serviços de Cloud atinge menos de 1% do mercado europeu; a esmagadora maioria das grandes empresas tecnológicas são americanas (Apple, Microsoft, Google/Alphabet, Amazon, Tesla, Intel, Meta/Facebook), não existindo empresas europeias com capacidade para rivalizar; em matéria de cibersegurança, os EUA têm a liderança. Das 500 empresas globais de cibersegurança, as norte-americanas ocupam cerca de 74,5% do mercado, enquanto a Europa apenas 13,8%. Os produtos associados às tecnologias em ascensão – smartphones, tablets, TVs digitais, infraestruturas de comunicações sem fio, hardware de rede e todos os outros bens que usam computadores – necessitam de semicondutores. A nível mundial, não existem fabricantes europeus deste crucial mercado nos 10 primeiros lugares (dados de 2017). A UE está a tentar entrar na primeira liga global de fabricação de semicondutores, tendo estabelecido o ambicioso objetivo de duplicar a sua participação no mercado global até 2030, o que requer investimentos colossais.

Embora a Europa disponha de pontos fortes nalguns elos da cadeia de valor dos semicondutores, está muito atrás da Ásia, sobretudo quando se trata de chips mais sofisticados. Existem poucas fábricas na Europa com capacidade para fabricar chips com menos de 22 nm (nanómetros), excetuando o caso da Intel, na Irlanda, onde existe capacidade para fabricar 14 nm, e a empresa procura tecnologia para 7 nm.

A UE está a fazer um esforço considerável para reduzir o atraso, tendo a Comissão Europeia avançado com a chamada “aliança de semicondutores”, uma iniciativa público-privada destinada a comercializar novas tecnologias. A grande diferença faz-se na tecnologia dos 2nm, fundamental para sustentar as indústrias do futuro, acima referidas. E aí a UE encontra-se consideravelmente atrás.

 

MATÉRIAS-PRIMAS E A ENERGIA

Mas, para se processar a transição energética e industrial, e aquelas indústrias terem existência, a União vai precisar de certas matérias-primas e energia de que não dispõe. No primeiro caso, releva-se a importância da China; no segundo, o da Rússia.

Os países europeus não surgem no topo dos países produtores de algumas das matérias-primas essenciais. Falamos, por exemplo, do tântalo, cobre, terras raras, cobalto, lítio e grafite. Apenas o Reino Unido, que não pertence à UE, aparece na lista dos maiores fornecedores de seis produtos críticos (iodo, óxido de lítio, dióxido de molibdénio, flúor, tungstatos e fósforo), mas apenas em dois deles (flúor e tungstatos, 14% e 5%, respetivamente, da produção mundial). A China domina a cadeia de valor das terras raras (extração e processamento). A contribuição mundial da UE é de 1%.

O magnésio é outra matéria-prima crítica devido às suas aplicações estratégicas. Também neste caso, os países da EU encontram-se fortemente dependentes de fontes exteriores ao espaço europeu. A sua extração está fortemente concentrada na China, com 89% da produção mundial. Em 2018, 93% das 184 mil toneladas consumidas na UE tiveram origem na China. Mas, a lista de dependências não se esgota aqui.

É nos hidrocarbonetos, em particular no gás natural, que o impacto da guerra na Ucrânia é mais imediato e onde as dependências europeias são mais evidentes. O efeito da guerra fez-se sentir nos aumentos dos preços, mas é na indústria que as consequências económicas serão mais dramáticas, uma vez que afetarão a sua competitividade, agravada pela desvalorização do Euro.

Se é verdade que a Rússia pode causar danos significativos à Europa, esta foi hábil em os ampliar. Não bastava a recusa alemã, num ato de autoflagelação, de colocar o Nord Stream 2 em funcionamento [1], por pressão de Washington, empenhado em vender o seu próprio gás à Europa, bastante mais caro do que o russo, tem de se defrontar agora com a redução do fluxo do Nord Stream 1. Devido às sanções impostas à Rússia, as turbinas necessárias ao bom funcionamento do gasoduto, cuja manutenção tem de ser feita com regularidade no Canadá, encontram-se há semanas em território alemão, sem serem transportadas para a Rússia, onde são necessárias.

Para contrariar a dependência do gás russo barato, em que assentava o modelo de desenvolvimento económico europeu, e particularmente o alemão, a Europa terá de procurar outras dependências, naturalmente mais caras e mais voláteis. Como se isso não bastasse, cabe aos EUA, à Rússia e à China dispor de maior capacidade de refinação, sendo os EUA e a Rússia os dois maiores exportadores de diesel, responsáveis por cerca de 22% do comércio mundial. No fim, a Europa acaba por comprar gás russo através da China.

 

À GUISA DE CONCLUSÃO

A Europa terá de reagir rapidamente às consequências da dissociação económica com a Rússia e ao agravamento das suas relações políticas e económicas com a China. O caminho da transição energética e tecnológica que pretende trilhar não só não vai diminuir as suas dependências como vai agravá-las, uma vez que ficará mais dependente, mas agora da China, em vez da Rússia. A Europa terá de aprender a viver com essas dependências permanentes. Terá de se preparar para isso.

Os dirigentes europeus parecem não entender a encruzilhada histórica com que se depara a UE. Encontra-se mais próxima de se tornar um apêndice do projeto hegemónico norte-americano do que de se transformar num ator organizador da ordem mundial, afastando-se irreversivelmente da Rússia e da China.

A assinatura do acordo sobre investimentos com a China, em 30 de dezembro de 2020, era benéfico para a Europa e fazia sentido do ponto de vista geopolítico. Não só era uma expressão da sua autonomia estratégica, como lhe permitia comportar-se como um inter pares nas relações com os EUA e a China, sem que isso representasse equidistância política dos EUA e da China.

Mas a ratificação do acordo pelo lado europeu não prevaleceu, comprometendo decisivamente o aprofundamento das relações do bloco com a China. Veremos se a guerra na Ucrânia não será o prego no caixão das relações da UE com a China. Apesar das incertezas quanto ao futuro cenário que vier a prevalecer, os europeus parecem ser perdedores nesta contenda. A energia cara e acesso limitado às matérias-primas das novas indústrias não prognosticam um futuro risonho. A ausência da cultura de pragmatismo pode sair-lhe cara.

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[1] Nota de editor: Este artigo terá sido escrito em data anterior a 26 de Setembro, uma vez que não é feita qualquer referência à sabotagem e aniquilação do gasoduto Stream II executada naquele dia.

 


O autor: Carlos Branco é Major-general do Exército na situação de reserva, e membro da direção da Associação 25 de Abril.

 

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