Espuma dos dias — Aniquilação da União Patriótica: como a esquerda foi erradicada em plena democracia na Colômbia. Por Inna Afinogenova

Nota do editor:

O texto que publicamos abaixo, elaborado já após a conclusão do relatório da Comissão da Verdade da Colômbia, mostra como durante décadas o Estado colombiano e as suas Forças Armadas deram cobertura a perseguições, assassinatos e autênticos massacres contra todos e qualquer um que pudesse “desafinar” daquilo que pensavam as elites colombianas. Pior, assassinavam civis pobres e trabalhadores para os apresentar como guerrilheiros mortos em combate (os chamados falsos positivos), a troco de prémios ou férias. Tudo ocorrendo na suposta democracia colombiana.

Amanhã republicaremos um texto doloroso do fotógrafo Paul Béjannin, de Julho de 2020 (publicado em A Viagem dos Argonautas em 20/08/2020), onde são relatados casos concretos desses falsos positivos: os jovens, alguns ainda adolescentes, como Raul, Daniel, Julian, Jaime e tantos outros que foram miseravelmente assassinados, falando também das valas comuns onde muitos destes jovens foram colocados. Em ambos os artigos fica de pé a questão da impunidade de que usufruem alguns ou muitos dos implicados neste verdadeiro genocídio.

No mandato do atual presidente da Colômbia eleito em Agosto de 2022, Gustavo Petro (um ex-integrante da extinta guerrilha M-19, senador da República em 2018-2022):

  • Em menos de um mês, pelo menos 70 generais e coronéis do Exército e da Polícia — mais da metade — foram removidos de seus cargos. Alguns porque são acusados de crimes; outros, sem explicaçã Os anúncios têm sido feitos aos poucos, sem mecanismos formais. Houve um grupo que foi informado de sua demissão à meia-noite. Outro cuja nomeação logo foi suspensa. A preocupação dos peritos é a improvisação e o descaso com os mecanismos formais, tradicionais e acadêmicos que costumavam definir as diretrizes para afastamentos e nomeações. No lugar dos que foram removidos, Petro nomeou coronéis e brigadeiros que apoiaram o processo de paz com os guerrilheiros das Farc firmado em 2016, que não são acusados de crimes e que, pelo menos aparentemente, não respondem a nenhuma das questionadas estruturas de poder que administraram as Forças Armadas por décadas.
  • Limitação dos bombardeamentos: O ministro Velásquez anunciou na semana passada que uma operação crucial na estratégia que os militares têm usado para enfrentar grupos armados ilegais será reformulada: os bombardeios. O objetivo do ministro é evitar que civis morram em ataques a supostos guerrilheiros — especialmente crianças, que muitas vezes são recrutadas à força e usadas como escudo.
  • Reforma do esquadrão de choque da Polícia.
  • Outra política que pode ser uma diferença substancial entre o Petro e os governos anteriores tem a ver com o narcotráfico, problema que historicamente vem sendo abordado a partir das áreas de segurança e defesa em aliança com os Estados Unidos. “A paz é possível se a política contra as drogas vista como uma guerra for mudada por uma política de forte prevenção do consumo nas sociedades desenvolvidas”.
  • em Dezembro de 2022 Petro pediu desculpas, em nome do Estado, às vítimas dos massacres conhecidos como La Granja e El Aro, perpetrados na década de 1990 por grupos paramilitares. “O Estado colombiano reconhece que os mortos não eram inimigos de ninguém, eram pessoas humildes e trabalhadoras. Que foram assassinados por desígnios do poder”. O presidente, que afirmou que “o Estado colombiano é um assassino“, liderou (…) um ato de reconhecimento de responsabilidade e pedido de perdão pelos massacres, ordenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 2006 decidiu contra a Colômbia. “Como representante do Estado colombiano hoje, devo pedir desculpas a todas as vítimas, familiares e todos aqueles que não podem mais nos acompanhar porque foram assassinados pelo próprio Estado”, escreveu no Twitter.

(Ver aqui e aqui)

FT


 

Seleção e tradução de Francisco Tavares

3 min de leitura

Aniquilação da União Patriótica: como a esquerda foi erradicada em plena democracia na Colômbia

 Por Inna Afinogenova

Publicado por .es, em 2 de Fevereiro de 2023 (original aqui)

 

O extermínio sistemático, continuado e ordenado da União Patriótica (UP), das suas fileiras e dos seus simpatizantes está longe de ser o único caso de crimes cometidos pelo Estado colombiano contra os seus próprios cidadãos. Já sabemos o número exacto de falsos guerrilheiros, chamados falsos positivos: 6.402 civis pobres e trabalhadores assassinados por paramilitares para os apresentar como guerrilheiros mortos em combate, em troca de prémios ou férias.

No final de Junho, a Comissão da Verdade da Colômbia apresentou o seu relatório final no qual tentava analisar as causas e consequências do conflito armado que durou décadas. Mais de 50.000 pessoas foram raptadas, mais de 120.000 pessoas desapareceram e mais de 450.000 foram mortas entre 1985 e 2018.

De acordo com a Comissão da Verdade, em 45% dos casos foram os grupos paramilitares, que emergiram e actuaram sob protecção oficial, seguidos pelos guerrilheiros (FARC e ELN), e finalmente os agentes do Estado. Os paramilitares foram seguidos pelos guerrilheiros (FARC e ELN), e finalmente pelos agentes do Estado. Porque é que o caso da aniquilação da União Patriótica (UP) é algo fora do comum? Porque foi um extermínio deliberado de um partido político em concreto, que durou até ser completamente erradicado.

Dizimar os comunistas, até às suas raízes, destruir qualquer possibilidade de terem uma base social, perseguir, ameaçar, criminalizar os seus simpatizantes, qualificar de guerrilheiro qualquer um que não fosse beligerante com eles, e finalmente, normalizar as suas mortes, banalizar os seus assassinatos, etc., durante décadas.

Sara já mencionou que a UP surgiu em meados da década de 1980 numa tentativa de preparar o caminho para a paz. O governo do então Presidente Belisario Betancur e o Estado-Maior General das FARC acordaram num mecanismo que permitiria a integração da guerrilha na vida política. A formação maioritária dentro da UP era o Partido Comunista Colombiano, mas os guerrilheiros que apoiavam a paz podiam aderir e tinham todos os seus direitos políticos garantidos. Tudo isso no papel.

Pouco depois do aparecimento do partido, o processo de negociação entre o governo e a guerrilha rompeu-se, deixando os militantes da UP completamente desprotegidos e expostos à maquinaria de extermínio. Este foi o início de um processo de extermínio que durou mais de 20 anos, abrangeu vários governos e culminou com a ilegalização do partido. Por detrás de tudo isto estavam agentes de segurança e membros de grupos paramilitares, todos sob a protecção do Estado, que mostrou desse modo o que era a sua vontade de negociar.

Nas primeiras eleições em que participou, em 1986, obteve mais de 300.000 votos, o que lhe permitiu entrar no parlamento e ter centenas de vereadores em todo o país. No final dos anos 80, tinham o seu candidato presidencial, Bernardo Jaramillo Ossa, um dos favoritos da corrida. Foi assassinado em 1990 durante a sua campanha eleitoral.

O que é surpreendente é que, nesses anos eleitorais, o auge da criminalidade ocorreu precisamente onde a UP tinha a maior intenção de voto. Quatro presidentes de câmara da UP foram assassinados, juntamente com funcionários das suas administrações, num pequeno município de El Castillo. Quatro. Um após o outro. Tinham até sido elaborados planos para exterminar os líderes da UP. Um deles, o Plano Esmeralda, concentrou-se em banir o partido e a sua influência nos departamentos de Meta e Caquetá.

O o Baile Rojo foi outro programa elaborado em 1986 para assassinar ou sequestrar líderes da União Patriótica. O Plano Operação Condor, na mesma época, os mesmos objectivos (e também com o mesmo nome que a famosa operação planeada pela administração dos EUA e que afectou toda a América Latina). Os assassinatos tornaram-se rotina, a estigmatização pelos media ajudou a sociedade a começar a normalizá-los e a vê-los como algo inevitável: em 1993, membros da UP denunciaram a existência de um novo plano de extermínio, o Plano Golpe de Gracia.

Alguns meses após esta denúncia, foi assassinado o último membro da UP no Congresso, Manuel Cepeda Vargas. O facto é que as operações de extermínio não se limitaram aos líderes e membros do partido. Tratou-se de cortar pela raiz a mera possibilidade de esta formação ter simpatizantes, base social ou sobreviventes. Para este fim, a população civil tornou-se alvo de ataques, tal como os membros do partido. No início dos anos 90, no âmbito do chamado Plano de Regresso, elaborado pelo Exército Nacional, centenas de simpatizantes do partido foram assassinados, incluindo sindicalistas e membros de organizações comunitárias, entre outros.

Assim, entre exterminar líderes e militantes e atemorizar potenciais simpatizantes, conseguiu-se que no início dos anos 2000 o Conselho Nacional Eleitoral procedesse à certificação da morte do partido. Oficialmente, foi ilegalizado porque não tinha o número necessário de votos eleitorais para manter o seu estatuto legal.

Tudo isto aconteceu num Estado que se autodenominava democrático, e prolongou-se por muitos anos após a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. Uma suposta democracia onde se exterminava qualquer indício, nem sequer de dissidência, mas de uma oposição legal e reconhecida que estivesse ligeiramente à esquerda do que essas elites consideravam aceitável.

 

Video aqui

 


A autora: Inna Afinogenova [1989-] é uma jornalista russa residente em Madrid, licenciada em Jornalismo pela Universidade Estatal Lomonósov de Moscovo. Até Maio de 2022 trabalhou como editora adjunta do sítio Web da RT en espanhol e para o canal YouTube Ahí les va, cujo acesso foi bloqueado a partir de março de 2022. Desde Junho de 2022 é colaboradora do programa La Base, do jornal digital espanhol Público e desde 30 de Junho é também colaboradora do programa Macondo, da revista uruguaia Caras y Caretas com Leonardo Grille e o argentino Marco Teruggi.

 

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