Espuma dos dias — Guaidó foi-se mas Londres mantém o ouro da Venezuela consigo. Por John McEvoy

Seleção e tradução de Francisco Tavares

8 min de leitura

Guaidó foi-se mas Londres mantém o ouro da Venezuela consigo

  Por John McEvoy

Publicado por  em 6 de Fevereiro de 2023 (ver aqui)

Publicado originalmente em  em 27 de Janeiro de 2023 (ver aqui)

 

Banco da Inglaterra em Londres, 2020 (It’s No Game. Flickr, CC BY 2.0)

 

 

O Reino Unido despojou dos seus ativos um Estado estrangeiro e transferiu-os para actores políticos envolvidos na mudança de regime, relata John McEvoy. O resultado tem sido uma forma de punição colectiva para a população da Venezuela.

 

No final de Dezembro, os principais partidos da oposição venezuelana votaram pela destituição de Juan Guaidó como “presidente interino” e pela dissolução do seu governo paralelo.

Este não era claramente o fim que o governo do Reino Unido tinha em mente.

Há quatro anos, o governo britânico tomou a ousada decisão de reconhecer Guaidó como presidente venezuelano e facilitou a sua batalha legal para apreender cerca de 2 mil milhões de dólares de ouro detidos pelo governo venezuelano no Banco de Inglaterra.

De facto, o governo do Reino Unido insistiu em todas as ocasiões que reconhecia Guaidó – e não Nicolás Maduro – como presidente venezuelano. Por sua vez, os advogados de Guaidó argumentaram que ele estava autorizado a representar e controlar os bens do Banco Central da Venezuela detidos em Londres.

Durante todo este tempo, Guaidó pagou os seus custos legais do Reino Unido, utilizando milhões de dólares dos bens do seu país originalmente apreendidos pelo governo dos EUA. Por outras palavras, Guaidó tentou confiscar bens estatais venezuelanos com bens estatais venezuelanos saqueados.

Entretanto, parece certo que o Ministério dos Negócios Estrangeiros do RU também utilizou uma quantidade significativa de fundos públicos para sustentar o seu apoio a Guaidó.

Agora que Guaidó foi deposto, o argumento legal para transferir o ouro para a oposição venezuelana desintegrou-se efectivamente. Apesar disso, o ouro permanece congelado no Banco de Inglaterra, sem uma resolução clara à vista.

O que quer que aconteça a seguir, este caso cria um precedente que pode ter consequências de grande alcance: as armas golpistas do Reino Unido incluem agora o despojamento de ativos de um Estado estrangeiro, e a transferência desses bens para actores políticos envolvidos na mudança de regime.

Isto servirá certamente como um aviso a qualquer Estado que planeie armazenar o seu ouro no Banco de Inglaterra.

 

Reconhecimento de Guaidó

 

25 de Fevereiro de 2019: Juan Guaidó com o Vice-Presidente do Brasil Hamilton Mourão em Bogotá, Colômbia. (Gabriel Cruz, CC BY 2.0, Wikimedia Commons)

 

O reconhecimento de Guaidó foi um pré-requisito fundamental para a recusa do Banco de Inglaterra em libertar o ouro da Venezuela.

Guaidó nunca se tinha candidatado a um cargo presidencial. No entanto, a 23 de Janeiro de 2019, jurou como “presidente interino” venezuelano, utilizando o artigo 233 da Constituição venezuelana para declarar que Maduro tinha abandonado o seu posto, deixando assim um “vazio absoluto de poder”.

Este vazio, afirmou Guaidó, teria de ser preenchido pelo presidente da Assembleia Nacional da Venezuela – o cargo que ele então ocupava.

Sem o apoio do governo dos EUA, a ginástica jurídica de Guaidó não o teria provavelmente levado muito longe. No entanto, a administração Donald Trump moveu-se rapidamente para reconhecer Guaidó e começou a pressionar a chamada comunidade internacional a seguir o exemplo.

No dia a seguir à autoproclamação do Guaidó, o então Secretário dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido Jeremy Hunt visitou Washington e encontrou-se com membros-chave da administração Trump, incluindo o Secretário de Estado Mike Pompeo, o Vice-Presidente Mike Pence e o Conselheiro de Segurança Nacional John Bolton.

A crise política na Venezuela estava no topo da agenda. Antes de se encontrar com Pompeo, Hunt disse à imprensa que “o Reino Unido acredita que Juan Guaidó é a pessoa certa para levar a Venezuela avante. Estamos a apoiar os Estados Unidos, Canadá, Brasil e Argentina para que isso aconteça”. Esta foi uma declaração forte – mas ainda não um reconhecimento.

Documentos obtidos por Declassified mostram que Pompeo e Bolton agradeceram em privado a Hunt por isso. No entanto, a contribuição britânica para o derrube de Maduro iria mais longe.

 

“Encantados” por congelar o ouro

 

8 de Maio de 2019: o Secretário de Estado norte-americano Michael Pompeo, à direita, em Carlton Gardens, a residência formal do Secretário dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido Jeremy Hunt, à esquerda. (Departamento de Estado, Ron Przysucha, domínio público)

 

O Ministério dos Negócios Estrangeiros do RU recusa-se a dizer se os seus funcionários ou ministros tiveram discussões com homólogos nos Estados Unidos sobre o ouro venezuelano armazenado no Banco de Inglaterra desde 2019.

Em resposta a um pedido de Liberdade de Informação, afirmou também que “a divulgação de informações relativas a este caso poderia prejudicar as nossas relações com os Estados Unidos da América e a Venezuela”.

No entanto, segundo Bolton, Hunt ficou “encantado” por ajudar na campanha de desestabilização de Washington na Venezuela, “por exemplo, congelando os depósitos de ouro venezuelano no Banco de Inglaterra”.

Os directores do Banco, no entanto, estavam incomodados com as implicações legais do congelamento dos activos de um Estado estrangeiro. O Banco de Inglaterra já se tinha recusado a libertar o ouro da Venezuela em 2018, citando dúvidas sobre a legitimidade do governo de Maduro, embora estivessem em terreno jurídico instável.

Alan Duncan. (Chris McAndrew, CC BY 3.0, Wikimedia Commons)

O Ministério dos Negócios Estrangeiros trabalhou para acalmar os seus nervos. A 25 de Janeiro de 2019, Alan Duncan, ministro de Estado para a Europa e as Américas, escreveu no seu diário que efectuou uma chamada telefónica com Mark Carney, governador do Banco de Inglaterra, sobre o ouro da Venezuela. Ele escreveu:

“Digo a Carney que estou plenamente consciente que, embora se trate de uma decisão do Banco, necessita certa cobertura política da nossa parte. Digo-lhe que lhe escreverei a carta mais contundente que puder através dos advogados do FCO, e que exporá as dúvidas crescentes sobre a legitimidade de Maduro e explicará que muitos países já não o consideram o Presidente do país”.

Por outras palavras, o Banco de Inglaterra exigiu uma sólida fundamentação jurídica para manter o ouro da Venezuela congelado, e o Ministério dos Negócios Estrangeiros teve o prazer de lhe fornecer uma.

Uma semana mais tarde, a 4 de Fevereiro, Hunt deu um passo em frente ao emitir uma declaração oficial reconhecendo Guaidó “como Presidente interino constitucional da Venezuela, até que possam ser realizadas eleições presidenciais credíveis”.

Com isto, o governo do Reino Unido tinha-se comprometido com o esforço de golpe de Estado apoiado por Washington. Hunt aparentemente declarou: “A Venezuela está no seu [dos EUA] quintal, e é provavelmente a única aventura estrangeira que eles poderiam levar a cabo”.

Quando o Ministério dos Negócios Estrangeiros foi questionado no parlamento no mês passado se tinha recebido aconselhamento jurídico ao reconhecer o Guaidó como presidente, respondeu: “Não comentamos sobre quando é que o aconselhamento jurídico foi recebido”.

 

A Batalha Legal

O reconhecimento de Guaidó pelo Reino Unido desencadeou uma longa batalha legal sobre o ouro.

Em Maio de 2020, o governo de Maduro processou o Banco de Inglaterra pela sua recusa em libertar o ouro. A questão passou então para os tribunais, centrando-se em saber se o governo do Reino Unido reconhecia Guaidó e se o Banco de Inglaterra poderia, portanto, agir segundo instruções do “conselho ad hoc” do Banco Central da Venezuela.

Ao longo deste tempo, o governo do Reino Unido apoiou consistentemente o caso Guaidó, enfatizando o seu reconhecimento do mesmo.

Em 2020, por exemplo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros forneceu um certificado escrito aos tribunais para confirmar que o Reino Unido ainda “reconhece Juan Guaidó como o Presidente interino constitucional da Venezuela”.

Líderes estrangeiros saúdam o Presidente venezuelano Nicolas Maduro na sua segunda tomada de posse, 10 de Janeiro de 2019. (Presidente El Salvador CC0, Wikimedia Commons)

 

Em 2021, o Ministério dos Negócios Estrangeiros adquiriu mesmo os serviços de Sir James Eadie QC e Jason Pobjoy (da Blackstone Chambers) e Sir Michael Wood e Belinda McRae (da Twenty Essex) – alguns dos melhores advogados do país – para apresentar o seu caso sobre o reconhecimento de Guaidó no Supremo Tribunal.

Assim, parece certo que o governo do Reino Unido gastou uma quantidade significativa de fundos públicos neste caso. Isto lança dúvidas óbvias sobre a alegação do governo do Reino Unido de que se trata apenas de um assunto do Banco de Inglaterra ou dos tribunais: o Reino Unido investiu tanto capital político como aparentemente financeiro neste caso, com a intenção explícita de derrubar o governo de Maduro.

Declassified perguntou ao Departamento Jurídico do Governo quanto foi gasto em custos legais neste caso. Um porta-voz do Departamento disse: “Não comentaremos mais devido aos procedimentos legais em curso”.

A cada audiência, Guaidó e os seus representantes também incorreram em custos substanciais. Relatos publicados recentemente sugerem que a equipa de Guaidó gastou mais de 8,5 milhões de dólares em custas judiciais – cerca de 7 milhões de libras.

Notavelmente, os honorários e taxas legais de Guaidó no Reino Unido foram pagos com dinheiro que foi originalmente apropriado do estado venezuelano nos EUA.

 

Guaidó foi-se

 

Edifício do Banco Central da Venezuela em Caracas. (Caracasapie, CC BY-SA 2.0, Wikimedia Commons)

 

Guaidó e os seus representantes nunca conseguiram deitar as mãos ao ouro.

Na audiência mais recente, em Outubro de 2022, o Juiz Cockerill concedeu ao Conselho de Administração de Maduro permissão para recorrer, declarando que as questões em jogo eram “efectivamente sem precedentes” e que “as consequências da decisão têm o potencial de afectar todos os cidadãos da Venezuela”.

De facto, o congelamento do ouro da Venezuela tem servido como uma forma de punição colectiva.

Em 2021, a relatora especial das Nações Unidas sobre sanções, Alena Douhan, instou o Reino Unido “e os bancos correspondentes a descongelarem os activos do Banco Central da Venezuela para comprar medicamentos, vacinas, alimentos, equipamento médico e outros, peças sobressalentes e outros bens essenciais para garantir as necessidades humanitárias do povo da Venezuela”.

Com a questão ainda nos tribunais, os principais partidos da oposição venezuelana votaram em Dezembro de 2022 para retirar Guaidó como “presidente interino” e dissolver o seu governo paralelo.

O governo do Reino Unido anunciou que iria “respeitar o resultado desta votação”, acrescentando que: “O Reino Unido continua a não aceitar a legitimidade da administração de Nicolás Maduro”.

A base legal para congelar o ouro da Venezuela e transferi-lo para a oposição venezuelana desmoronou-se, portanto, em grande parte. Esperam-se novas audições no final deste ano.

Se o ouro permanecerá congelado até que a Venezuela realize eleições que sejam satisfatórias para o governo do Reino Unido, ou se os tribunais considerarão que o caso do congelamento do ouro já colapsou, permanece pouco claro.

A questão seria imediatamente resolvida se o Reino Unido normalizasse as relações com o governo de Maduro – embora isto implicasse um embaraçoso retrocesso e tivesse de ser resolvido juntamente com Washington.

O que está claro é que o regime de sanções contra a Venezuela não conseguiu remover Maduro, mas prejudicou os venezuelanos comuns.

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O autor: John McEvoy é um jornalista independente, de investigação em Declassified UK, que escreveu para a International History Review, The Canary, Tribune Magazine, Jacobin e Brasil Wire.

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