NOVOS MOVIMENTOS DE PROTESTO – O JACARÉ QUE COMEU O TRATADOR, por CARLOS MATOS GOMES

 

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Aproveito a momentânea pausa porque passa a agitação social, uma acalmia provocada pelo facto do presidente da República estar a viver o seu Maio 68, da proximidade das férias da Páscoa, das contradições entre reclamar e propor soluções a propósito da habitação, da saúde, do ensino, da agricultura. Aqueles que não acreditam em fenómenos inexplicados, sem uma mão, ou um pé, ou uma arma por detrás (ou uma transferência bancária) talvez possam pensar no que viram e ouviram nas TV nas manifes de professores em Portugal, e também nas de pessoal de saúde e nas que se seguirão. Se for caso disso, também podem passar uma vista de olhos pelas TV e jornais de Inglaterra, França com as cenas de série da Netflix, autos de fé e razias de vândalos com um pretexto qualquer. A primeira conclusão a tirar sobre a razão destas ações é que qualquer razão serve. São movimentos oportunistas e utilizam a “causa” que lhes parece mais apelativa no momento — os autos de fé também já serviram, ou espetáculos de guilhotinas.

Este tipo de ação de massas emergiu em França em meados dos anos oitenta e tem sido designado por quem não pertence aos fiéis e teólogos destas novas igrejas por Novos Movimentos de Protesto (NMP). Não estamos, pois perante uma novidade, mas de um aquecimento em micro-ondas. Esta designação de NMP não significa que exista um “sujeito coletivo” análogo ao dos movimentos sociais (NMS) dos anos setenta, e, muito menos ao sindicalismo, que exista uma conceção geral do presente e do futuro, nem sequer o aliciamento da construção de uma Terra Prometida, o engodo de Moisés aos judeus para os levar do Egito a Jerusalém. Os gurus destes movimentos nada têm a propor nem aos fiéis, nem aos seus concidadãos, a não ser cartazes e bombos e presença nos media. Nada de mal. A contradição está em que estes movimentos recorrem ao bordão do apelo aos trabalhadores (sempre heroicos e explorados), eles erigiram, em oposição a toda a história da humanidade o trabalho como a atividade finalista do homem (que sempre foi a tentativa de obter prazer) e depois dão música e danças! Por mim, sou a favor! Não sei se os pobres assalariados que dão aulas concordam com os seus influencers, mas na generalidade pareceram-me alegres como a audiência do Preço Certo, mesmos que, como é habitual não lhes saia qualquer prémio!

A nova geração de dirigentes “intelectuais vedetas”, “ativistas”, “influencers” (que varreu uma geração de pensadores com método e fundamentos) são personalidades com graduações académicas do topo, nas áreas das ciências sociais e politologia, que circulam entre Fóruns sociais alternativos e se coligam, de modo mais ou menos informal, numa galáxia de contestação autoqualificada como “esquerda da esquerda” (pelo menos enquanto a palavra esquerda for útil), sendo embora filhos diletos do neoliberalismo e dos melhores produtos (as grandes escolas e os seus clubes de pensamento).

Os gurus desta galáxia protestativa apresentam como alternativa ao neoliberalismo, o não ao neoliberalismo! — E acreditam que os seus fiéis, tal como os adeptos dos deuses únicos, deixam de ser pecadores se se afirmarem contra o pecado! A sua lógica é a de um paciente com dor de dentes que é contra a dor de dentes, mas não se atreve a arrancar o dente!

As ideias mais publicitadas (os NMP alimentam-se da publicidade, do espetáculo) são «anti»: antimundialistas, antiglobalistas — vendem a ideia que um planeta tão pequeno e tão cruzado por rotas de trocas de pessoas como Terra (que ele aliás reduzem a uma Europa central) bem pode ser, na sua visão classista, um arquipélago em que os vizinhos não se misturam e não interagem. Vendem ainda a ideia Ocidental de que os recursos do planeta permitem que toda a população goze dos mesmos benefícios e tenha os mesmos bens dos europeus e dos americanos! São movimentos intrinsecamente racistas: defensores da sua superioridade sobre todos os outros. Da superioridade das minorias e do direito destas imporem as suas conceções da vida — e não do mundo. Estes NMP não assentam, ao contrário dos grandes movimentos da História, ou das civilizações, numa conceção da História.

A sua finalidade é menos criar entraves ao bom funcionamento do capitalismo mundial e federar as forças vivas de uma “nova sociedade civil mundial”, do que forjar “ferramentas críticas da hegemonia cultural” do “neoliberalismo”. Pretendem quebrar o consenso que os media impõem aos cidadãos e fazer ouvir vozes alternativas, mas participando na elaboração do pensamento único sempre presentes nos palcos que, a pretexto da troca de ideias, se conclui que não há alternativa, que é o estuário onde desagua a sua ação. Estes NMP não apresentam qualquer alternativa a não ser anunciarem-se como movimentos alternativos! Eles são o paradigma do TINA (There is no alternative). Defendem a quadratura do círculo e o certo é que têm obtido o sucesso visível nos telejornais e fazem-no utilizando as ferramentas comunicacionais, para obter o efeito de “matraquear ideológico”.

O Estado é o inimigo destes NMP, como é visível há anos em França, mais recentemente em Inglaterra e em Portugal há pouco. Esta fixação no Estado-inimigo; no Estado-patrão tem origem na ideia de algumas escolas marxistas — do marxismo ocidental — de analisarem o Estado apenas através do que designam aparelhos repressivos do Estado, governo (apesar de eleito pelos cidadãos), polícias, exércitos, tribunais e até as escolas (porque ensinam a ler, presume-se). Os seus seguidores nunca conseguiram por carência de método controlar os preconceitos para realizar uma análise racional. Nunca conseguiram realizar a operação essencial do cientista de se separar do meio que analisa. Estes movimentos muito centrados em França, também tiveram os seus “custódios”, em Portugal através dos trotsquistas da LCI, uma filial da LCI francesa e do MRPP que nunca teve um pensamento, mas produziu homens de mãos do neoliberalismo como Durão Barroso.

Na Europa do pós II Guerra, o Estado assumiu um papel central na organização da sociedade, desde logo pela necessidade de reconstrução e passou a ocupar um lugar central que ia das obras públicas à animação cultural. O Estado, na Europa, em particular em França, na Alemanha e em Inglaterra é o Estado do Bem-estar, o dos serviços de saúde, de educação, de previdência — e é este Estado que o NMP toma por inimigo!

Tomar o Estado (este estado) por inimigo, e eu ouvi há umas semanas propor a destruição do Estado à nova vedeta dos NMP, o “pastor” do STOP, no largo da Assembleia da República numa manifestação de professores. O seu discurso não é mais que uma arenga inflamada que serve para mobilizar crentes para qualquer causa, incluindo a da opressão das sardinhas nas latas — o discurso da personagem não me merece mais consideração do que expor a sua demagogia. Foi muito aplaudido! Aqueles professores devem estar a preparar-se para abrir salas de estudo e explicações particulares. Um negócio de futuro. O Uberismo escolar. Lições ao domicilio. Os becos aonde conduzem os delírios de alguns destes pastores conduzem a estas aberrações!

O discurso do STOP (e a questão não o é o STOP, é a sintomatologia de uma falência interna de um corpo, o dos professores e servidores públicos, que o seu aparecimento reflete) incentiva deliberadamente uma cultura de atitudes extremadas, de confrontos abertos e de greves massivas em detrimento da negociação e do compromisso. Os NMP têm como área exclusiva de mobilização o sector público: hospitais, escolas, transportes.

Compreendo que aos ícones dos NMP, nacionais e estrangeiros, lhes seja desagradável verem-se despidos da pele de cordeiro, confrontados com a sua demagogia. Compreendo que é muito mais “simpático” passar nas TV pelo intelectual orgânico do novo sindicalismo, da leitura da história à la page, que os gurus destes Novos Movimentos de Protesto bem gostariam e gostam de passar por “antecipadores do futuro”, mas a realidade desmonta-lhes a pose: a teoria do Estado inimigo vem do tempo da Revolução Francesa e conduziu a maus resultados: ao Terror e ao Bonapartismo!

Quais são hoje as propostas dos ideólogos dos NMP — o que inclui aqui em Portugal o STOP (que levou a reboque a FENPROF), a Ordem dos Enfermeiros da desaparecida Cavaco, do sindicato Pardal dos motoristas de autotanques, mas também, em França os Coletes Amarelos e das manadas de lupmen que percorrem as praças de Paris?

Eles batem-se a favor dos “direitos sociais adquiridos” dos seus fiéis, em nome dos “valores republicanos”, mesmo à custa do desmantelamento dos serviços públicos e do Estado Social de acesso generalizado. Eles defendem os privilégios das corporações do Estado, o caso dos magistrados é o mais escandaloso e socialmente injusto. Os magistrados foram os primeiros beneficiários dos NMP! (Talvez vendo as coisas por este prisma se entenda a complacência com que são tratados os prevaricadores).

Estes movimentos são oportunistas, egoístas e são, além disso, irracionais. Os que estão por detrás destas manifestações agem com a inteligência de um crocodilo que, num dia em que o tratador lhe trouxe menos carne do que ele se achava com direito, comeu a carne que este trazia e também o tratador!

Que sejam os professores a mais recente carne para canhão dos NMP portugueses arrasta consigo a dura conclusão que estes pensam como o crocodilo. O que é um direito. Como dizia uma canção cubana: hoje comemos lagosta, amanhã não sabemos!

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Novos Movimentos de Protesto — O jacaré que comeu o tratador | by Carlos Matos Gomes | Mar, 2023 | Medium

1 Comment

  1. Muito bom. Continue com as suas excelentes análises. Até por aquilo que expõe, percebo quer estes novos sindicalista não liguem as suas reivindicações à necessidade urgente de lutar pela paz. Já me custa a entender que o mesmo aconteça com os sindicatos tradicionais, leia-se, aqui, FENPROF.

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