Ainda a falência da política energética da UE — Reforma do mercado da electricidade: suprimir o “mercado”, por Jakob Embacher e Stephen Thomas

Seleção e tradução de Francisco Tavares

5 min de leitura

 

Reforma do mercado da electricidade: suprimir o “mercado”

A reforma do mercado da electricidade proposta pela Comissão Europeia seria um penso rápido para um sistema que não funciona.

 

Por  Jakob Embacher e  Stephen Thomas

Publicado por  em 25 de Abril de 2023 (ver aqui)

 

Acalmado: no ano passado, o investimento na energia eólica na UE registou o valor mais baixo desde 2009 (Aerovista Luchtfotografie / shutterstock.com)

 

A crise dos preços da energia em 2022 pôs em evidência as deficiências estruturais do sistema energético da União Europeia, para além da nossa dependência fatal dos combustíveis fósseis, em grande parte importados. Em Junho passado, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ao anunciar uma “enorme reforma”, afirmou: “Este sistema de mercado já não funciona”. Vários Estados-Membros da UE fizeram eco destas opiniões.

O projecto de proposta da Comissão para reformar o mercado da electricidade da UE, publicado no mês passado, fica, no entanto, muito aquém dessa promessa. Embora as medidas destinadas aos agregados familiares vulneráveis – como a proibição dos cortes de energia – sejam louváveis, provavelmente só servirão como solução temporária para um mercado em dificuldades. Em vez de abordar as questões subjacentes e os desafios sistémicos, a proposta arrisca-se a ser apenas um penso rápido.

A Federação Europeia dos Sindicatos dos Serviços Públicos (EPSU) tem argumentado sistematicamente que a liberalização da energia tem sido um fracasso. A liberalização do mercado baseou-se em dois equívocos: a crença de que os mercados não regulados são inerentemente superiores aos sistemas planeados e a noção de que um serviço público crítico como a electricidade pode ser prestado eficazmente apenas através de mecanismos de mercado.

 

Em primeiro plano

A eficiência energética devia estar no centro dos nossos esforços para descarbonizar as nossas economias e apoiar as famílias. No entanto, do ponto de vista do consumidor, existe um desequilíbrio estrutural nas medidas de oferta e procura. As grandes empresas de produção podem adoptar uma perspectiva de investimento a longo prazo, que podem amortizar ao longo do tempo de vida de uma central – normalmente 30 anos ou mais. Em contrapartida, os agregados familiares, especialmente os mais vulneráveis, não dispõem frequentemente dos meios para pagar medidas atractivas de eficiência energética e, em muitos casos, permanecem presos em habitações decrépitas.

Uma filosofia de “planeamento de menor custo” colocaria as medidas de procura e de oferta em pé de igualdade. Esse planeamento deveria ser levado a cabo por fornecedores de energia públicos com mandato e capacidade para introduzir melhorias de eficiência energética nas habitações, reduzindo significativamente as facturas. Essas empresas públicas poderiam também fixar os preços da energia de modo a optimizar a acessibilidade dos agregados familiares, em vez de maximizar os lucros dos accionistas.

Os fornecedores públicos de energia assim mandatados fariam muito mais para apoiar os agregados familiares do que a concorrência a retalho. De facto, quando os fornecedores vão à falência em tempos de crise, as famílias sofrem custos adicionais, directamente ou através dos seus impostos, uma vez que os governos têm de intervir. No ano passado, o Trades Union Congress publicou um relatório que mostrava que, no Reino Unido, o custo dos resgates das empresas retalhistas de energia, no valor de 2,7 mil milhões de libras, se aproximava do preço estimado para voltar a tornar públicas as cinco grandes empresas retalhistas de energia (2,85 mil milhões de libras).

 

Protegido dos mercados

A expansão das fontes de energia renováveis (FER), como a eólica e a solar, também não foi uma consequência da liberalização. Pelo contrário, os projectos de FER desenvolveram-se em grande medida em domínios protegidos das forças de mercado, quer através de auxílios estatais quer de mecanismos alternativos, como as tarifas de aquisição ou os contratos para a diferença (CpD).

Isto deve-se à estrutura de custos das projetos FER, que implica um investimento inicial significativo mas custos de funcionamento relativamente baixos, tornando o investimento inerentemente arriscado. Este problema estrutural é mais evidente no subinvestimento na energia eólica. Apesar do aumento da ambição no que respeita à percentagem de FER no consumo final de energia no âmbito do plano RePower EU, no ano passado o investimento em energia eólica caiu para o seu nível mais baixo desde 2009 – o que se reflectiu na reunião de nove líderes da região do Mar do Norte numa cimeira sobre energia eólica realizada ontem em Ostende, na qual também participou von der Leyen.

O abrandamento da implantação das FER e os picos de preços descontrolados de 2022 são inaceitáveis. Consequentemente, o futuro mercado da energia poderá ser dominado por preços não comerciais fixados pelo governo, o que se reflecte no reforço do papel dos CpD nas propostas de reforma feitas pela Comissão.

 

Bem público

No entanto, em vez de nos limitarmos a remendar um mercado que é um fracasso, devíamos reconhecer que a energia, enquanto bem público, não pode ser deixada apenas às forças do mercado. Uma opção é a criação de uma entidade de propriedade pública e de comprador único, que compraria energia aos produtores através de acordos de energia a longo prazo, permitindo uma abordagem planeada da transição energética e preços estáveis para os consumidores.

A primeira directiva comunitária relativa à electricidade, de 1996 (96/92/CE), previa a possibilidade de um modelo de comprador único deste tipo, como alternativa aos mercados grossistas. Esta possibilidade foi, no entanto, revogada quando a directiva foi substituída sete anos mais tarde (2003/54/CE). A EPSU-Federação Europeia dos Sindicatos dos Serviços Públicos explorou esta opção e as suas implicações num relatório escrito por um de nós, publicado em Dezembro passado.

Nas últimas duas décadas, a liberalização do sector da energia não só conduziu a perdas maciças de postos de trabalho, como também alterou a natureza do trabalho. Os incentivos comerciais favoreceram um declínio geral dos empregos técnicos e de manutenção, muitas vezes facilitado e exacerbado pela externalização. Entretanto, os custos de transacção associados exigiram mais pessoal jurídico, de marketing e de vendas, com as empresas de energia a darem prioridade à conquista de clientes num mercado liberalizado. Estamos, portanto, a enfrentar uma falta de peritos técnicos para fazer avançar a transição energética.

Para que esta estratégia seja bem sucedida, é essencial a existência de trabalhadores qualificados. Para aumentar a capacidade de produção de energia limpa e actualizar a rede, é necessária uma estratégia sólida em termos de mão-de-obra. Os trabalhadores dos sectores dos combustíveis fósseis, que possuem competências valiosas neste domínio, devem ter prioridade para novos empregos no âmbito de uma transição justa.

Em suma, o mercado da electricidade da UE não está à altura da necessidade urgente de energia limpa e a preços acessíveis para as famílias, os serviços públicos e a indústria. Temos de passar a um debate aberto e alargado sobre as alternativas.

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Os autores:

Jakob Embacher é responsável pela política dos serviços de utilidade pública (energia, água, resíduos) na Federação Europeia dos Sindicatos dos Serviços Públicos (EPSU).

Stephen Thomas é professor emérito de política energética na Universidade de Greenwich, em Londres. Tem mais de quatro décadas de experiência como investigador no domínio da política energética, com especial destaque para a energia nuclear.

 

 

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