Marriner Eccles, os New Dealers e a criação das Instituições de Bretton Woods — Parte III – Texto 7. “A Batalha de Bretton Woods – Capítulo Oito – A história está feita” (1/3), por Benn Steil

Nota de editor:

A parte III , Keynes versus Harry White, é constituída pelos seguintes textos:

Texto 1 – Porque é que foi White e não Keynes a inventar o sistema monetário internacional do pós-guerra, por James M. Boughton

Texto 2 – Bretton Woods – Declaração de John Maynard Keynes sobre o proposto Banco para a Reconstrução e Desenvolvimento

Texto 3 – Discurso de Henry Morgenthau, Jr., na Sessão Plenária Inaugural (1 de Julho de 1944) em Bretton Woods

Texto 4 – Discurso de Henry Morgenthau, Jr., na Sessão Plenária de Encerramento da Conferência de Bretton Woods (22 de Julho de 1944)

Texto 5 – Cooperação Financeira Global como um Legado de Bretton Woods, por Randal K. Quarles

 Texto 6 – A Batalha de Bretton Woods, Introdução, por Benn Steil

 Texto 7 – A história está feita, por Benn Steil

 Texto 8 – Os fundamentos esquecidos de Bretton Woods, por Eric Helleiner

Dada a dimensão do presente texto 7, o mesmo será editado em três partes. Publicamos hoje a 1ª parte.


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

27 min de leitura

Parte III – Texto 7. A Batalha de Bretton Woods – Capítulo Oito – A história está feita (1/3)

 Por Benn Steil

Extracto do livro de sua autoria

(ver aqui)

 

     Junho de 1944 foi um mês memorável. As tropas americanas chegaram ao centro de Roma a 4 de Junho. Na noite seguinte, tropas britânicas de infantaria desembarcaram de planador em França, seis milhas a norte de Caen; à meia-noite de 6 de Junho, 155.000 tropas americanas, britânicas e canadianas estavam em terra na Normandia. A 10 de Junho esse total atingiria 325.000; a 20 de Junho, meio milhão. A lendária “Operação Overlord” aliada, que quase tinha sido anulada por um tempo de tempestade violenta, estava em pleno andamento.

     Apesar dos contratempos – Churchill temia muito pior, e tinha pressionado sem sucesso Franklin Delano Roosevelt (FDR) por uma frente alternativa no sul da Europa – os aliados faziam recuar os bem fortificados defensores alemães. A resistência teria sido muito pior se não fosse uma operação de engodo anglo-americana, massiva e sustentada, como nunca tinha sido vista em toda a história militar. A 25 de Junho, com as forças americanas a avançarem pelos subúrbios de Cherbourg, o Marechal de Campo alemão von Rundstedt ainda suspeitava que a Normandia era uma mera manobra de diversão; milhares de soldados alemães ficaram à espera na zona de Pas-de-Calais por uma invasão fantasma do Primeiro Corpo do Exército dos Estados Unidos. Na Frente Oriental, o Exército Vermelho estava a fazer grandes e rápidos avanços em direção a Minsk, matando 130.000 soldados alemães e fazendo 66.000 prisioneiros na última semana do mês. No entanto, não houve qualquer redução das atrocidades de horror praticadas pelos nazis; a 444 milhas de Minsk, vagões de comboio transportaram 1.795 judeus gregos que foram atirados para os campos de concentração de Auschwitz a 30 de Junho. Metade deles chegaram mortos. A outra metade estava em coma; foram rapidamente assassinados [1].

     Nesse mesmo dia, no outro lado do mundo, nas majestosas Montanhas Brancas de New Hampshire, os trabalhadores preparavam febrilmente o terreno para o mais importante encontro internacional desde a Conferência de Paz de Paris de 1919; um encontro que estaria bem longe da carnificina da guerra, destinado a instituir uma nova ordem mundial fundada no comércio e na cooperação. Dois filhos de imigrantes judeus europeus, o secretário do Tesouro americano e o seu adjunto, estavam reunidos no local com uma equipa especializada americana, a orientar a logística da eleição de Henry Morgenthau para a presidência da Conferência na tarde seguinte.

     Harry White estava preocupado que o discurso de aceitação do Secretário se perdesse no que Morgenthau apelidava de patacoadas. “Que tal a imprensa?”, perguntou White. “Será que o discurso do Secretário será bem publicitado?”

     “Oh, sim”, assegurou-lhe Fred Smith do Departamento do Tesouro, “porque vão ter os jornais de domingo”. Essa é a razão básica” para que se faça antecipar o discurso para sábado, mais cedo do que inicialmente previsto [2].

     O elemento central do plano do Tesouro para convencer os céticos mais maleáveis do Congresso era cativar a imprensa com uma liberdade de acesso e abertura sem precedentes num grande evento político internacional. A Administração americana estava determinada a não repetir a sua má experiência com repórteres hostis dos meios de comunicação social na conferência das Nações Unidas sobre Alimentação e Agricultura, realizada no ano anterior em Hot Springs, Virgínia. “Os responsáveis aqui presentes já tornaram óbvio que Bretton Woods não será ‘Hot Springs’ no que respeita ao tratamento da imprensa”, escreveu o Christian Science Monitor aprovando. “As conferências de imprensa entre os jornalistas e os altos responsáveis estão previstas para ocorrer diariamente [3]“.

     Uma vez assentes os detalhes do discurso, o outro ponto crítico consistia em tratar do sempre problemático chefe da delegação britânica. Numerosos membros do Congresso estavam convencidos de que o plano para a realização da conferência resultava da ação dos astutos e esbanjadores ingleses, liderados por um aristocrata de palavra fácil e manhosa – Lord Keynes. Morgenthau e White concordaram que não podiam deixar Keynes aproximar-se do pódio no dia da abertura. “[Diga-lhe que… se ele falar algures a meio da próxima semana, sozinho, ele ocupará todo o espaço da imprensa”, sugeriu Morgenthau a White, “[em caso contrário,] será abafado pelo Presidente e por todos nós [4]. “. Na verdade, Morgenthau e White esperavam abafar Keynes o mais cabalmente possível.

     Como habitualmente, White estava bem à frente do seu Secretário do Tesouro. No dia anterior, Keynes escrevera uma carta a Londres relatando “a ideia de White de que eu deveria fazer um discurso de fundo formal ” numa reunião plenária ainda por agendar depois de serem alcançados “progressos suficientes” no Fundo Monetário Internacional [5].

     O delegado britânico Lionel Robbins descreveu a abertura efetiva da Conferência como uma “longa série de discursos banais ou inaudíveis”. Para ele, o evento principal do dia foi um jantar privado organizado por Keynes no seu salão privado do hotel, comemorando um evento um tanto ou quanto alheio: o 500º aniversário da “Concordata” entre King’s College, de Cambridge e New College, de Oxford [6]. Tendo King’s College também uma relação de Concordata mais recente com a Universidade de Yale, entre os convidados de Keynes estavam Dean Acheson, o ilustre membro de Yale que, cinco anos mais tarde, se tornaria Secretário de Estado, e o seu ex-colega H.H. “Daddy” Kung, chefe da delegação chinesa.

     Kung, uma verdadeira força da natureza, foi Vice-Primeiro-Ministro e Ministro das Finanças da China, presidente do Banco Nacional da China, e presidente dos conselhos de gestão da Universidade de Yenching, da Universidade Cheeloo, de Oberlin na China, de cooperativas industriais chinesas, da Sociedade Confúcio e da Associação das Finanças Públicas. Um descendente da 75ª geração de Confúcio, Kung, fez fortuna em cadeias de estabelecimentos comerciais, bancos, fábricas de algodão e minas. Jogando habilmente o jogo da política familiar chinesa, Kung tornou-se Ministro das Finanças no governo nacionalista de Chiang Kai-shek em 1933, aos 51 anos de idade [7].

     Sendo Bretton Woods uma oportunidade ímpar de diplomacia improvisada, Acheson não desperdiçou a oportunidade. “Com a delicada habilidade de um grande advogado de empresas,” registou Robbins, Acheson tentou “levar o desgastado Kung a reconhecer o estado de divisões internas da atual política chinesa. Como era de esperar, o velho pirata era demasiado esperto para cair nesta armadilha … desviando-se para uma longa divagação histórica sobre a natureza das suas relações com o Presidente Roosevelt e Neville Chamberlain … O diálogo entre os dois terminou homrosamente para ambos” [8].

     Quanto a Harry White, apesar de ter sido o arquiteto da Conferência, nunca pôde furtar-se totalmente à presença imponente de Keynes. O Christian Science Monitor noticiou haver críticas em Washington sobre a ausência na delegação dos EUA “dos proeminentes economistas da nação” – certamente ninguém à altura das mentes de Keynes, Robbins, e Dennis Robertson do lado britânico – e questionou se as deliberações mostrariam, po conseguinte, “uma inclinação keynesiana [9]“. O mais colorido e nacionalista Chicago Tribune legendou a foto de Keynes com as palavras “O inglês que dirige a América [10]“, e deplorou que ele “ofuscasse todas as outras figuras” na conferência. Sobre Harry White, o jornal ironizou como estando entre os “fervorosos admiradores e discípulos de Keynes”. Pela sua parte, White eriçou-se com a sugestão de que ele era uma mera câmara de eco americano para as novas ideias de Keynes, limitando-se a dizer à imprensa que “qualquer economista que não conheça o seu trabalho é um ignorante [11]“.

     Quanto ao novo Fundo Monetário Internacional proposto, o povo americano seria “louco… se entrasse neste esquema”, descreveu o jornal Tribune:

O seu autor, John Maynard Keynes… é um ardente inflacionista. Ele nunca conseguiu antes da guerra que o seu governo aceitasse as suas teorias, porque era uma nação credora, e teria sido idiotice inundar o mercado de libras para depois as outras nações pagarem as suas dívidas aos britânicos numa moeda depreciada. Agora a Inglaterra é uma nação devedora. Como Keynes disse no seu discurso na Câmara dos Lordes em Maio, “sobrecarregámo-nos com um peso de endividamento diferido para com outros países, sob o peso do qual iremos cambalear”. Keynes propõe-se aliviar o fardo através da estrutura fantástica agora aqui em debate. O povo americano vai querer ajudar a arruinada nação britânica a reabilitar-se, mas nenhum americano, exceto um White, um Morgenthau, ou um Roosevelt, completamente dominado pelos britânicos, aprovará dar esta ajuda à custa da nossa própria solvência [12].

     O Wall Street Journal foi igualmente mordaz quanto à ideia de “uma intrincada conferência, num canto salubre dos Estados Unidos”, pretensamente com o intuito de estabilizar as taxas de câmbio, quando a verdadeira motivação era o refinanciamento da Grã-Bretanha [13]. A revista Time pintou os interesses britânicos e americanos como rivais evocando o pano de fundo do Dia da Independência:

[Muita ] da fricção preliminar entre britânicos e americanos na Batalha dos Planos teve lugar em segredo. O primeiro golpe em aberto foi desferido na Primavera passada por John Maynard Keynes, Primeiro Barão Tilton, com uma proposta que, de facto, daria aos britânicos uma posição dominante nos acordos monetários mundiais. O segundo foi uma contraproposta de Harry D. White, pelo Tesouro dos EUA, que dava preponderância aos EUA através das suas vastas reservas de ouro. Para o Hotel Mount Washington, de pilares brancos, que foi o campo de batalha escolhido, Lord Keynes encabeçou uma delegação britânica de 15 pessoas que incluía dois dos melhores cérebros económicos da Inglaterra: Lionel C. Robbins e Dennis H. Robertson [14]

     Na manhã seguinte, 1 de Julho, apenas algumas horas antes da chegada das 43 delegações estrangeiras, a delegação americana e os conselheiros reuniram-se para a sua primeira sessão estratégica oficial. Morgenthau presidiu ao grupo americano sendo igualmente Presidente da própria Conferência; um pouco como ser simultaneamente o treinador da equipa bem como o árbitro do torneio. Desempenhou este duplo papel com equilíbrio, até porque, não tendo a pretensão de ser o autor dos detalhes das posições americanas, não lhes tinha qualquer apego de ordem emocional. Quando os delegados estrangeiros se manifestavam ruidosamente, ele podia dizer-lhes com um ar sério, com a consciência limpa e uma mentalidade aberta, que qualquer ponto em desacordo poderia ter uma solução. E este seria o trabalho de Harry White e dos seus técnicos.

     O juiz Fred Vinson, vice-diretor do Gabinete de Estabilização Económica, que era também ex-jogador de basebol e congressista do Kentucky, era o vice-presidente da delegação. Sendo o estado natal de Vinson anfitrião do famoso Kentucky Derby, ele gostava de analogias com as corridas de cavalos, o que o levava a alertar os chefes das delegações estrangeiras quando a conferência estava “a chegar à estreita a reta final”, e a avisar que o “cavalo” das Nações Unidas poderia “cair e partir uma perna” antes de alcançar “a linha da meta (“wire” no original)” [15].

     Harry White não tinha título especial dentro da delegação americana, mas era tão essencial para Morgenthau em Bretton Woods como o General Marshall era para FDR na Europa. Em virtude da sua auto nomeação como presidente da Comissão Um, cobrindo o Fundo Monetário Internacional e o novo regime monetário global, White tinha-se arrogado um vasto poder sobre a redação das deliberações essenciais da Conferência. Morgenthau não tinha nenhuma ideia sobre a dinâmica organizacional que White tinha planeado para se assegurar do controlo da Conferência, mas o Secretário do Tesouro estava determinado a impedir que White se apropriasse das luzes da ribalta. Designou o economista do Tesouro Edward (“Eddie”) Bernstein e o advogado Ansell Luxford para controlarem as conferências de imprensa diárias, mas de forma anónima. “É apenas mais um exemplo da rivalidade mesquinha entre White e Morgenthau, sobre quem iria ficar com os louros”, explicou Bernstein muitos anos mais tarde. Ele ficou “espantado ao ver até que ponto podia chegar esta vontade de ficar com os louros. Keynes também a tinha. Ele queria que fosse o seu plano a ser aprovado [16]“.

    Também da Administração americana estavam Acheson, representando o Departamento de Estado, e Leo Crowley, chefe da Administração Económica Estrangeira. Marriner Eccles falou em nome da Reserva Federal.

     O Congresso americano tinha quatro representantes na delegação. Morgenthau escolheu uma figura do Senado e uma da Câmara dos Representantes de cada partido. O Senador de Nova Iorque Robert Wagner e o Congressista do Kentucky Brent Spence representaram os Democratas. Wagner, presidente da Comissão Bancária e Monetária do Senado, foi um elemento proeminente do New Deal, progressista favorável da defesa dos interesses dos trabalhadores e um membro do grupo de peritos que rodeavam o Presidente Roosevelt, tendo servido com ele na legislatura do estado de Nova Iorque antes da primeira Guerra Mundial. Spence, presidente da comissão parlamentar correspondente na Câmara dos Representantes, foi igualmente um defensor sincero da legislação económica interna liberal e de iniciativas de política externa, tais como a independência das Filipinas. Advogado da cidade, que fez o seu nome a defender com sucesso a cidade de Newport contra todas as ações judiciais intentadas contra ela entre 1916 e 1924, ganhou pela primeira vez as eleições para o Congresso em 1930. Uma figura discreta e um orador sem grande rasgo, ganhou a reputação de íntegro entre os seus colegas, sem, de forma pouco comum, nunca alterar os seus discursos no Plenário da Câmara antes de estes aparecerem nas Actas do Congresso [17].

     O Senador Charles Tobey da sua cidade natal de New Hampshire e o Congressista Jesse Wolcott, do Michigan, representaram os republicanos. Tobey, um antigo isolacionista independente, de língua cortante, e membro da comissão de Wagner, foi uma escolha controversa, tendo sido imposto por Morgenthau e pelo líder da maioria do Senado Alben Barkley, contra a opinião do Senador de Ohio Robert Taft, presidente da comissão de gestão do Senado Republicano e membro da comissão de Wagner, que já tinha declarado que a adesão ao Fundo seria “como deitar dinheiro pelo esgoto abaixo [18] “. Wolcott, membro do comité de Spence, era um veterano da Primeira Guerra Mundial, tendo servido como segundo tenente num regimento de artilharia, que se tornou procurador do ministério público antes de entrar no Congresso com Spence em 1930. Em 1958 tornar-se-ia diretor e mais tarde presidente da Federal Deposit Insurance Corporation. Tendo inclinação para sociedades de todos os tipos, foi membro da Legião Americana, Veteranos de Guerras Estrangeiras, Maçonaria, Elks, Alce, Cavaleiros de Pitias, Lions, Moose e Odd Fellows [19].

     Dois delegados vieram de fora do governo. Edward E. Brown, presidente do First National Bank of Chicago, foi escolhido pela sua notoriedade entre “a maleável comunidade bancária [20]“. O Chicago Tribune descreveu o seu delegado local como uma “notável exceção” entre os delegados dos EUA, que não passavam de “paus mandados do New Deal [21]” e “da ordem dos mediocratas [22]“. A Time Magazine desenhou um quadro um pouco menos lisonjeiro de Brown, relatando que ele “se passeou durante dias [na Conferência] com o mesmo fato de sarja azul com cinzas de charuto acumuladas na parte da frente, com os seus olhos raiados de sangue por falta de sono [23] …”. Keynes teve uma visão mista, descrevendo Brown como “um enorme homem de 20 stones [280 libras] que se alimenta exclusivamente de carne de vaca… e abana a cabeça como um touro num estábulo. Mas… o seu discernimento mental e força de carácter são totalmente invulgares. Há muito tempo que não conheço um banqueiro mais competente ou distinto [24]“.

     A professora de economia da Escola Vassar, Mabel Newcomer, era a única mulher do grupo. A partir de meados da década de 1920, foi repetidamente nomeada para comissões estatais sobre temas fiscais relacionados com assuntos tão diversos como impostos, finanças escolares, propriedade imobiliária e vida rural [25]. Taciturna, ela não deixou praticamente nenhuma pegada nas atividades de Bretton Woods. No entanto, o jornal New York Times interessou-se muito por ela; uma notícia de 4 de Julho dizia que a conferência a manteve “demasiado ocupada para poder dedicar-se ao seu passatempo de escalada de montanha”. O jornal perguntou-lhe “Como é que… uma mulher chega a ser professora de economia e a qualificar-se como especialista em finanças internacionais e divisas”, Newcomer respondeu ao repórter dizendo que “simplesmente aconteceu [26]“.

     A forte delegação de doze membros foi assistida por um número igual de conselheiros técnicos do Departamento do Tesouro, da Reserva Federal, do Departamento de Estado, da Administração Económica Estrangeira, da Comissão de Títulos e Câmbios e do Departamento de Comércio, bem como por quatro conselheiros jurídicos, sete secretários técnicos, quatro assistentes do presidente, e um secretário-geral da delegação.

     Morgenthau pediu encarecidamente, em reunião com os elementos da delegação que renunciassem ao partidarismo; que deviam “trabalhar em equipa e apresentarem-se como uma frente unida”. Esta conferência é “maior do que o Partido Republicano ou o Partido Democrata”. As diferenças dentro do grupo precisavam de ser resolvidas “ao balão do bar aqui nesta sala”.

     Isto suscitou um ponto de ordem à mesa por parte do Senador Wagner: “Onde está o bar? [27]

     White, que raramente se deixou ir nas piadas dos congressistas, expôs longamente as posições-chave das delegações americana e estrangeiras. Outras nações, disse ele, acreditavam que nos próximos anos “os Estados Unidos estarão… a pressionar os sistemas monetários do resto do mundo… em virtude do facto de que os Estados Unidos estarão a abarcar uma maior proporção dos mercados mundiais e estarão em posição de desenvolver aquilo a que chamamos um excedente de exportação”. Eles quererão que os Estados Unidos “sejam sujeitos a alguma pressão através do Fundo… para que adote uma política que coloque menos pressão nas suas divisas e lhes permita vender mais mercadorias aos Estados Unidos”. Mas os Estados Unidos não tolerariam a interferência do Fundo na sua posição excedentária.

      “Temos sido perfeitamente categóricos nesse ponto”, insistiu White, num tom que mais parecia um alto funcionário chinês dos dias de hoje. ” Quanto a isso tomámos a posição de um não absoluto [28] “.

     Keynes e outros queriam mesmo “cobrar-nos juros, como credores”, continuou White. Mas a posição dos EUA era “o oposto disso… nós queremos cobrar-lhes juros”. A razão era que “o Fundo foi concebido para um fim especial, e esse fim é o de evitar a depreciação competitiva das moedas [29]…”.

     O ouro em Fort Knox, continuou White, é ” a razão pela qual os Estados Unidos estão numa posição invejável… a razão pela qual nós estamos numa posição de poder nesta Conferência… a razão pela qual dominamos praticamente o mundo financeiro, porque temos os meios para comprar todas as divisas que quisermos. Se fosse apenas a Inglaterra a estar nesta posição, ou qualquer um dos outros países, seria uma história muito diferente [30]“.

     Os credores, considerava White, é que estabelecem as condições. Os devedores desesperados, mesmo aqueles com emissários tão eloquentes como Lord Keynes, não podiam fazer mais nada senão propalar um novo palavreado – palavras como “inflexível” e “tranche”, que muito divertiam Morgenthau. “Estamos a aprender muitos termos ingleses novos, não estamos?”, comentou ele depois de ler uma típica objeção do altamente prolífico Keynes [31]. Nesta fase avançada do drama financeiro anglo-americano, o chefe da delegação britânica tinha sido reduzido, em grande parte, ao estatuto de refilão sistemático e Morgenthau podia brincar com as suas missivas emocionadas. Tal como Estaline poderia ter dito, quantas divisões tinha o King’s College?

     Ainda assim, o próprio facto de a posição dos EUA ser tão forte foi precisamente o que levou os opositores americanos da Conferência a questionar o seu propósito. “O americano médio não precisa de ser informado de que a maior parte do ouro monetário mundial está guardado em segurança no Kentucky”, observou o Christian Science Monitor, e, por isso, “quando peritos de outras paragens vêm falar sobre dinheiro e empréstimos e comércio e reembolsos, dá aos não iniciados a sensação desconfortável de que pode haver ladrões na despensa de casa” [32].

     Tais pontos de vista não tinham em conta o facto de que enquanto os Estados Unidos detinham praticamente todas as cartas em Bretton Woods, o resto do mundo tinha uma posição de trincheira bem conhecida, se bem que intragável: a troca direta. “Lord Keynes, com um tato considerável mas uma intenção muito evidente”, observou o Washington Post, “teve tempo de sobra para levar a água ao seu moinho”:

Numa entrevista à imprensa, salientou que a Grã-Bretanha poderia ser forçada a recorrer a alguns meios muito indesejáveis para aumentar o seu comércio externo, caso o plano monetário fosse rejeitado. Um retorno ao sistema de troca era, disse ele, a única alternativa à vista, e poderia ter de ser tentado como “último recurso”. Esta é uma possibilidade que os Estados Unidos certamente não desejam ver concretizada. Os britânicos, como dois dos seus ministros recentemente afirmaram, podem estar “falidos” (uma vez que não possuem meios para cumprir as suas obrigações externas), mas não estão sem possibilidades para aumentar a colocação dos seus produtos nos mercados estrangeiros através de acordos comerciais bilaterais [33].

     A Alemanha vinha a operar desta forma há alguns anos, obrigando os detentores estrangeiros de marcos a trocá-los por produtos alemães. A Grã-Bretanha podia fazer o mesmo com os enormes saldos de libras esterlinas bloqueados do Império e das nações neutras, tornando a libra convertível, outrora atrativa, em nada mais do que nos produtos que a Grã-Bretanha escolhesse colocar à disposição deles nos mercados externos. Esses infelizes têm, em todo o caso, pelo menos uma carta credível para jogar: a sua situação não pode piorar muito. “Para o Senador Taft é provavelmente impensável que o credor não possa estar em posição de agir contra os devedores”, observou Walter Lippmann, o célebre colunista político que White admirava enormemente,

Mas, de facto, esta situação está mais próxima da realidade económica do que aquela que os peritos americanos tiveram o cuidado de anunciar ou do que os governos estrangeiros nos quiseram dizer abertamente. E isto, porque num mundo em que existe apenas uma grande potência capaz de conceder elevados créditos internacionais, não se verifica a relação credor-mutuário característica dos negócios privados normais. As outras grandes potências estão em posição de ter muito a dizer sobre as condições em que aceitarão aqueles créditos. Esse é o facto que temos obrigação de seriamente compreender … se o grande credor não oferecer condições que se ajustem às necessidades internas e ao sentido de dignidade nacional daquelas outras potências, estas têm uma alternativa ao sistema de comércio internacional geral que o nosso país deseja. A alternativa é o comércio controlado pelo governo, numa base bilateral ou de troca direta.

Não é uma boa alternativa, e o mundo será um lugar mais pobre e mais conturbado se esta alternativa for adotada. Mas não tenhamos ilusões: as outras grandes potências financeiras irão certamente pensar que esta fraca alternativa é o menor de dois males se não conseguirem obter crédito para restaurar o comércio geral sem ser em condições que considerem como uma imposição autoritária dos Estados Unidos sobre a sua política interna, e como humilhantes.

Isto pode ser deplorável. Mas é um facto da vida, e quanto mais cedo o enfrentarmos, melhor [34].

 

     O jornal Times de Londres fez a mesma observação: “O insucesso da criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial obrigaria os Estados Unidos ou a assumir os deveres e aceitar os riscos de ambas as instituições, ou a assistir ao declínio progressivo do seu comércio de exportação num mundo cada vez mais voltado para os controlos governamentais e acordos de troca direta [35] “. Os americanos teriam, portanto, de jogar o jogo, na expressão do Times.

     Na Europa, as forças soviéticas reconquistaram dramaticamente Minsk, a capital da Rússia Branca, a 3 de Julho, fazendo prisioneiros mais de 150.000 soldados alemães e capturando 2.000 tanques [36]. Entretanto, de volta a Bretton Woods, White, numa reunião noturna da delegação americana, delineou cuidadosamente a sua ideia sobre os Comités da Conferência.

     Cada um dos Comités seria presidido por um não-americano – no que diz respeito ao do Fundo, por delegados da China, União Soviética, Brasil e Peru. Aos membros de cada Comité seria entregue um documento de trabalho, a Declaração Conjunta de Princípios já antecipadamente preparada – um produto da equipa do Departamento do Tesouro de White, com pequenas alterações à margem para apaziguar Keynes e os britânicos. Os textos alternativos apresentados pelas várias delegações representadas em Atlantic City foram anotados como “A”, “B”, “C”, etc. A alternativa “A” era sempre a americana. O texto “A” tinha, em princípio, sido aprovado previamente com os britânicos, e apareceria no registo oficial da Conferência como sendo proposto conjuntamente pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido. White assegurou a Vinson e Wolcott, que representariam os Estados Unidos em diferentes Comités, mas que tinham pouco conhecimento dos porquês e dos motivos do seu esquema, que “os rapazes”, ou seja, os técnicos, “… estarão convosco” e que lhes “indicariam se pensam que alguma coisa devia ser dita. “.

      Vinson teve dificuldade em deduzir qualquer tipo de regras processuais do texto de trabalho entregue por White. Como é que se sabe quando se terá “passado” alguma coisa “? Os comités pareciam andar a “jogar à apanhada”, disse ele.

     Deveria haver apenas “uma regra geral”, sugeriu Emanuel Goldenweiser, diretor de investigação do FED, “que qualquer pessoa possa falar pelo temppo que lhe apetecer, desde que não diga nada! Separarem-se os assuntos do Comité das conversas”.

     Tratava-se de uma “frivolidade.”, esclareceu ele. Contudo, era também precisamente o que White tinha em mente.

     Emilio Collado do Departamento do Tesouro – que depois da guerra se tornaria o primeiro americano como diretor executivo do Banco Mundial – interveio. Os presidentes dos Comités “devem fazer repassar as moções em pormenor, perguntando, pelo menos, se existem alternativas, porque, afinal … havia trinta países que não tinham estado representados” em Atlantic City [37].

     No entanto, a coordenação de um debate com sentido sobre as moções apresentadas pela assembleia revelar-se-ia quase impossível. “Havia muitas… variedades ininteligíveis de inglês falado”, observou Goldenweiser, nascida na Rússia. Os russos, por exemplo, “não falavam inglês; nem os seus tradutores… estes debatiam-se no dilema entre o pelotão de fuzilamento, por um lado, e a língua inglesa, por outro [38]“.

     Em qualquer caso, na mente de White, nunca houve o risco de os debates do Comité darem, na realidade, forma ao Fundo. Os secretários eram todos americanos, nomeados por White, e foram eles que redigiram as atas oficiais. Além disso, os Comités relativos ao Fundo reportavam à Comissão Um, que era presidida pelo próprio White.

     Quando a certa altura Acheson sugeriu que poderia haver “uma votação de mão no ar ” se houvesse “qualquer objeção à decisão do Presidente da mesa”, White rebateu-o rapidamente. É preferível, insistiu ele, que o presidente apenas “avalie o sentido da reunião. É muito mais seguro [dessa] forma”, explicou ele, “se for legal”. [39]

     “Quem preside à Comissão Um esta tarde?”, perguntou ingenuamente Morgenthau. O Secretário tinha criticado White por tê-lo mantido no escuro durante os procedimentos de Atlantic City e, no entanto, surpreendentemente, continuou na ignorância sobre o que o seu adjunto estava a orquestrar em Bretton Woods ou como o estava a fazer.

     “Um americano”, respondeu White de forma evasiva. 

     “Quem é?”

    “Presumo que será uma tarefa minha”, disse White, como se o pensamento lhe tivesse ocorrido apenas naquele momento, “porque o que está em discussão são apenas questões técnicas”.

     “Então aceita com relutância”, disse Morgenthau, tentando ser simpático.

     “Aceito com relutância e inevitavelmente!”, afirmou White, num tom de humor ligeiro. “A importância do porquê de termos necessidade de um Presidente na Comissão Um, um Presidente que domine completamente a matéria”, continuou ele energicamente, “é que ele deve evitar chegar à fase de votação sobre matérias que não deseja sejam votadas, e em geral organizar o debate de tal forma que nunca sejamos apanhados num acordo no seio da Comissão sobre algo que não queremos, porque então é demasiado tarde”.

     Morgenthau ficou satisfeito: “Não conheço ninguém mais competente [40]“.

     Questões importantes relacionadas com o futuro do dólar e do ouro surgiram de várias formas durante as duas primeiras semanas. Um ponto de grande preocupação no seio da delegação americana era a escassez de divisas. White tinha lutado para conter os danos políticos do conceito de escassez de divisas desde que o enunciou pela primeira vez há um ano e meio. Isto era potencialmente um meio para outras nações se juntarem contra os Estados Unidos por causa dos seus persistentes excedentes comerciais, para erguerem barreiras discriminatórias contra as exportações americanas, e os erros da política que a América estava a seguir… e penso que aceitar… o direito do Fundo de criticar-nos pela nossa política”… seria algo que não poderíamos aceitar”.

     “[A] tendência dos países estrangeiros é sempre de assumir que a culpa é toda nossa”, acrescentou White.

     Acheson queria “deixar de lado a questão das medidas relativas à escassez de divisas”. Seria necessária uma maioria de dois terços dos votos, efetivamente cinco sextos dos estados membros, para ser apresentado um relatório contra os Estados Unidos. Isto “matou as críticas descabidas”.

     “Isso praticamente dá-nos um veto”, admitiu White.

     Ainda assim, a política relativa à disponibilidade de divisas era preocupante. “Bob Taft vai [insistir] que estás aqui a abdicar da soberania “, disse o conselheiro jurídico Oscar Cox.

     Taft, de facto, continuou os seus ataques durante toda a Conferência. “Não vai demorar muito até que todos os nossos ativos desapareçam e o Fundo seja inteiramente constituído por moedas fracas ou sem valor”, declarou ele. “Toda a engrenagem elaborada parece ter sido concebida para encobrir o facto de que o nosso dinheiro estará destinado, de facto, a ser emprestado por um Conselho de Gestão no qual temos apenas uma participação minoritária”. Ele profetizou que a criação do Fundo e do Banco Mundial seriam rejeitados pelo Congresso [41].

     “Penso que todos nós aqui no Congresso estamos conscientes das potencialidades dos discursos que não fazem outra coisa senão agitar bandeiras”, disse Wolcott. “Se eu estivesse a falar na Câmara contra este Fundo, não me preocuparia com as equivalências do ouro [ou] com taxas de câmbio. Ninguém compreende isso na Câmara. Eu aqui agitaria simplesmente as bandeiras [42]“.

     Os meios de comunicação social mais coloridos continuaram precisamente a incitá-los a agitar as bandeiras. “Estamos rodeados de estrangeiros que tentam organizar um casamento poligâmico entre uma Miss América, que fez 168 anos na passada terça-feira, e um conjunto de países unidos, de idades variadas”, escreveu um correspondente no local do Chicago Tribune. “Não posso dizer que eles estejam realmente apaixonados pela senhora, mas ela tem um grande dote, e negócios são negócios. Não se sabe no que é que isto vai dar – nem quanto é que, já agora, isto irá custar. Algumas pessoas ainda se lembram de uma cerimónia, há alguns anos atrás, no decorrer da qual muitos desses cavalheiros, vestindo casacos de cerimónia e calças às riscas, lhe fizeram promessas de amar, honrar e retribuir [43].”

     Ainda assim, a perspetiva de precipitar uma grande disputa na Conferência se fosse rejeitada a atribuição ao Fundo de poderes para emitir um eventual relatório sobre a escassez de divisas – mesmo um relatório sem poderes de coação – não era atraente. Havia peixes maiores para fritar. No final, o grupo considerou uma cláusula estabelecendo que “um representante do país membro cuja moeda esteja em causa participe na preparação do relatório” a fim de dar cobertura política suficiente para permitir que a disposição avançasse.

     Um outro tema irritante era o silenciamento dos interesses da prata. Vinte e cinco senadores dos Estados do oeste americano tinham escrito uma carta ao Presidente Roosevelt a 21 de Junho, instando à remonetarização da prata; os planos da Conferência, argumentaram eles, sofriam de um “defeito básico, orgânico” ao não atribuírem àquele metal um papel na base monetária [44]. Estes senadores tinham aliados na delegação mexicana, que exigia “facilidades de crédito extraordinárias” para os países produtores de prata [45]. A ideia foi, não surpreendentemente, tratada com desdém por países sem grandes indústrias extrativas de prata. Um representante indiano declarou abertamente numa conferência de imprensa que o seu país não tinha “qualquer interesse” num papel monetário para a prata [46]. Os britânicos consideraram-no “totalmente inaceitável”. Dos americanos, Robbins observou que estavam relutantes em alimentar um problema político interno, se se opusessem publicamente aos interesses do sector da prata, “preferindo tratar do assunto”, como o fizeram com outros, “por acordos na sombra nos corredores da Conferência”. Os mexicanos acabaram por baixar o nível de exigência depois de lhes ter sido oferecido aquilo a que alguns chamaram a “Cláusula do Coco – uma frase para salvar a face permitindo ao Fundo… aceitar várias mercadorias como garantias, incluindo, possivelmente, a prata [47]“.

     Uma “pequena sensação” foi causada pela descoberta de que um representante publicitário da empresa americana Smelting and Refining, que possuía extensas propriedades mineiras de prata nos EUA e no México, tinha de alguma forma conseguido a admissão no Mount Washington sem estar acreditado. Robbins relatou que o homem parecia ter “pedido um passe emprestado a um dos delegados menores e que tinha estado a organizar o bloco de prata durante dois dias [48]“. Questionado numa conferência de imprensa sobre a presença e agenda do homem, um Morgenthau desconcertado desviou as perguntas para um assessor de imprensa do Departamento de Estado. Obrigado a abandonar a Conferência, o pobre Sr. David Hinshaw da Smelting disse aos jornalistas que “nunca tinha sido tão humilhado [49]“.

     Enquanto alguns lutaram para fazer da prata um complemento monetário ao ouro, a obsessão pessoal de White era de tornar o dólar tão bom como o ouro. Na medida em que isso até podia ser feito por decreto, ele tencionava utilizar o FMI como o seu veículo. Keynes, contudo, tinha resistido ferozmente às anteriores tentativas de White de dar ao dólar qualquer forma de estatuto especial. Portanto, isso teria de ser feito fora da sua vista. O esquema do Comité de White era perfeito para isto.

     Tal como na Operação Overlord na Normandia, a estratégia de White relativa ao dólar baseou-se em engodos e erros dos inimigos. Ele realizou a primeira manobra fulcral a 6 de Julho, numa reunião do Comité da Comissão 2 do Fundo. O documento de trabalho da Declaração Conjunta indicava que o valor cambial da moeda de um país membro, que seria acordado com o Fundo quando o país fosse admitido, “seria expresso em termos de ouro”. Os americanos apresentaram um texto “Alternativa A” que dizia que o valor cambial seria, em vez disso, “expresso em termos de ouro, como denominador comum, ou em termos de uma unidade monetária convertível em ouro do peso e finura em vigor em 1 de Julho de 1944”. No entanto, o texto nunca tinha sido aprovado pelos britânicos; Keynes nunca o tinha sequer visto.

     Bernstein explicou que a revisão sugerida era “insignificante”, mas “formulada de modo a mostrar que não havia nenhuma obrigação implícita de vender ouro”. Disse ainda que era óbvio que “existirá, por definição, uma moeda convertível em ouro no quadro dos termos do acordo”, disse ele. Keynes tinha insistido repetidamente antes da Conferência que o termo “moeda convertível em ouro” não podia ter um significado fixo, e por isso era inaceitável. No entanto, ninguém na reunião do Comité levantou qualquer questão a este respeito, e o texto com a “Alternativa A” conseguiu subir para a Comissão do Fundo [50].

     “A reunião da Comissão esta tarde é extremamente importante”, disse White a Morgenthau numa sessão de estratégia da manhã de 13 de Julho. “É aí que, na maioria destas coisas, ou pescamos ou perdemos o isco [51]“. Que “coisas” foi coisa que deixou por esclarecer. White nunca levantou a questão do papel do dólar em qualquer reunião de delegação americana, apesar de ser a coisa que para ele era a mais importante; ele estava determinado a gerir o assunto longe dos radares, através dos seus agentes operacionais cuidadosamente escolhidos.

     Na reunião da Comissão das 14:30h, a questão da inescrutável “moeda convertível em ouro” foi naturalmente suscitada [52]. O delegado indiano queria saber o que é que isso era exatamente: “Penso que é já mais que tempo”, interrompeu ele durante uma longa discussão técnica em que White tinha invocado o termo, “que a delegação dos EUA nos dê uma definição de ouro e de moeda convertível em ouro”. Nessa altura, Dennis Robertson, o delegado britânico no Comité, imaginando aparentemente que a questão era de mera contabilidade, sugeriu que “o pagamento da subscrição oficial de ouro deveria ser expresso em ativos oficiais em ouro e dólares dos Estados Unidos”. Esta alteração exigiria, observou ele incautamente, alterações de redação noutros pontos do acordo. Bernstein concordou com Robertson que “a moeda convertível em ouro ” era difícil de definir, e que arranjar uma definição “que seja satisfatória para todos aqui… envolveria uma longa discussão”. Mas por uma questão “prática”, explicou, dado que as autoridades monetárias nacionais podiam comprar livremente ouro por dólares dos Estados Unidos, e que as existências internacionais de moedas que poderiam ser utilizadas para comprar dólares eram pequenas, “seria mais fácil para este fim considerar o dólar dos Estados Unidos como aquilo que se pretendia quando se falava de moeda convertível em ouro”.

     White deve ter tido dificuldade em esconder o seu sentimento de excitação. Com Keynes preocupado em gerir as questões da criação do Banco Mundial, Robertson tinha caminhado diretamente para a armadilha de White. Ele fez então a sua segunda manobra fulcral, dando perentoriamente por finda a discussão da Comissão sobre o assunto. “A menos que haja objeções”, disse ele, “esta questão será remetida para o Comité Especial”. Não tendo sido levantadas quaisquer objeções, passou rapidamente para outra questão [53].

     Na manhã seguinte, 9h30 de 14 de Julho, Morgenthau iniciou uma reunião da equipa americana completa relatando alegremente que White tinha “trabalhado até às três horas desta manhã com o Comité de Redação do Fundo e considera que [o texto] está em excelente forma [54]“. Morgenthau não tinha ideia do que isso significava exatamente, e provavelmente nem isso tinha interesse para ele. Mas entre as realizações do Comité, composto inteiramente por técnicos de White, estava, estrategicamente, a substituição de “ouro” por “ouro e dólares americanos” ao longo das 96 páginas da Ata Final. White nunca submeteu as alterações à consideração da Comissão Um, no entanto, elas tornar-se-iam uma parte importante dos Artigos de Acordo do FMI. Keynes só as descobriria após a sua partida de Bretton Woods.

     “A Grã-Bretanha está ‘falida'”, declarou o New York Times a 7 de Julho: “Não vale a pena estar com rodeios”, disse o Ministro do Trabalho Ernest Bevin. “Gastámos tudo nesta luta e estou contente por o termos feito”. Nesse dia, bombardeiros britânicos lançaram 2.500 bombas sobre Caen, em preparação para a sua recaptura durante os dois dias seguintes, enquanto os americanos estavam a libertar a ilha de Saipan, no Pacífico, com quase 4.300 japoneses a morrer numa carga final “banzai” sobre as tropas americanas [55]. O artigo do Times dizia que “relatórios pessimistas… de Bretton Woods sobre o futuro da Conferência Monetária foram apontados [em Londres] como desencorajadores para… a difícil tarefa” de impulsionar as oportunidades de exportação da Grã-Bretanha. [56]

     Keynes, no entanto, estava com uma disposição mais ligeira. Numa carta de 4 de Julho ao Governador do Banco de Inglaterra, Lord Catto, retomou a sua narrativa de Atlantic City: que a delegação britânica estava a construir uma posição comum com os americanos “nos bastidores”, e que tudo estava a correr bem com White. “Harry White está a travar várias batalhas no seu próprio campo e na sua própria Imprensa e está muito pouco inclinado a levantar qualquer questão connosco se ele puder evitá-lo – o que, claro, torna muito mais fácil para nós sermos satisfeitos”. Relativamente à área de maior preocupação para Catto, a soberania sobre a taxa de câmbio (aquilo a que Keynes chamou a “cláusula Catto”), Keynes falou em quase vitória. Apesar de “os advogados americanos o tornarem muito mais difícil do que é necessário”, Keynes tinha “convencido White da sensatez de tentar encontrar uma forma de nos conceder isso em a substância:

… ou seja, um país tem o direito, em último recurso, de alterar a sua taxa de câmbio sem incumprimento de obrigações e sem ter de abandonar o Fundo, desde que esteja disposto a deixar de ter os privilégios do Fundo e, em caso de diferendo prolongado, a ser obrigado a abandonar o Fundo… O problema não era realmente entre nós e White mas entre White e o resto da sua Delegação… Ele tem realmente lutado valentemente para manter a confiança em nós… [Harry] tem sido tudo sorrisos, gentileza e generosidade. A posição é, definitivamente, a de que somos aliados e o inimigo comum é externo [57].

     Keynes continuou a atacar a ideia de a Grã-Bretanha contrair um empréstimo privado junto de banqueiros americanos como alternativa à assinatura de um acordo em Bretton Woods. O New York Times citou “o perito financeiro britânico e defensor do financiamento do défice e do dinheiro barato” tinha dito que, sendo o programa defendido pelos opositores bancários da Conferência, o que envolveria o empréstimo à Grã-Bretanha de 5 mil milhões de dólares, era “demasiado bom para ser verdade [58]“. O próprio White contra-atacou os críticos da banca, dizendo à imprensa que os únicos perdedores de um acordo em Bretton Woods seriam os “abutres” dos mercados de divisas.[59]

     Contrastando com o relato de Keynes sobre a harmonia anglo-americana, as tensões no seio da “família” britânica, como o New York Times sarcasticamente se referia ao Império, foram embaraçosamente colocadas a vista de todos. Robbins, a 2 de Julho, registou “uma confabulação especial entre Keynes e os representantes indianos sobre a questão do equilíbrio da libra esterlina que… ameaçou ser um ponto doloroso durante toda a Conferência”[60]. A Índia, informou o Times, mais tarde “fez uma ‘cena’ em frente das outras delegações ao exigir que o Fundo providenciassse algum meio de transformar a enorme dívida libra esterlina da Grã-Bretanha à Índia em dólares. Só a dívida da Grã-Bretanha à India, quase 12 mil milhões de dólares, era 50% maior do que a totalidade da capitalização proposta para o Fundo. O Egipto juntou-se à Índia ao insistir “em alguma magia internacional para dar às suas libras a capacidade de comprar algo que é desejado”; sendo as libras inúteis enquanto a capacidade industrial da Grã-Bretanha estivesse concentrada na produção bens e equipamentos de guerra em vez de fornecer aos credores produtos de exportação úteis [61]. Robbins qualificou “não particularmente agradável ter de me levantar perante as nações reunidas na assembleia e defender uma posição em que somos incapazes de pagar as nossas dívidas em termos aceitáveis para os nossos credores [62]“.

(continua)

 

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Notas

[1] Gilbert (1990 [1989])

[2] Morgenthau Diaries, Vol. 748, Jun. 30, 1944, pp.228-229.

[3] Christian Science Monitor (Jul. 3, 1944:1).

[4]. Morgenthau Diaries, Vol. 748, Jun. 30, 1944, pp.228-229.

[5] Keynes XXV, Dec. 15, 1941, p.71

[6] Robbins (1990:167).  Skidelsky (2000:347) e o filho de Morgenthau (Morgenthau III, 1991:339) escrevem que Keynes faltou às cerimónias de abertura, o que poderia ter feito sentido dado o desdém americano.  Mas não há provas de que Keynes não tenha comparecido, o que certamente teria causado uma confusão diplomática.  Moggridge, editor da Collected Works de Keynes, escreve apenas que “Keynes não participou formalmente nas preliminares e discursos de abertura”, o que claramente não é a mesma coisa que não comparecer (Keynes XXV, p.71.) O filho de Morgenthau fabrica estranhamente uma citação de Moggridge indicando que Keynes “escolheu, em vez de assistir às cerimónias, dar um pequeno jantar”. Moggridge não só não escreveu isto, como também sabemos pelos Anais da Conferência (Vol. 1, p.3) que o evento de abertura começou às 15 horas e terminou antes das 17 horas, muito antes do jantar de Keynes.

[7] Time (Jul. 3, 1944).

[8] Robbins (1990:168).

[9] Christian Science Monitor (Jul. 1, 1944:1).

[10] Chicago Tribune (Jul. 23, 1944:G9).

[11] Chicago Tribune (Jul. 3, 1944:13).

[12] Chicago Tribune (Jul. 9, 1944:10).

[13] Wall Street Journal (Jul. 5, 1944:6).

[14] Time (Jul. 10, 1944).

[15] Morgenthau Diaries. Vol. 756, Jul. 21, 1944, pp.251-252.

[16] Bernstein citado em Black (1991:45).

[17] Tenkotte and Claypool (eds.) (2009). Kenton County Historical Society (Feb. 1997).

[18] Blum (1967:252).

[19] Biographical Directory of the United States Congress.

[20] Blum (1967:251).

[21] Chicago Tribune (Jun. 12, 1944:12).

[22] Chicago Tribune (Jul. 2, 1944:6).

[23] Time (Jul. 17, 1944).

[24] Keynes Papers, W/1, JMK to Lord Catto, Jul. 22, 1944.

[25] Vassar Encyclopedia

[26] New York Times (Jul. 5, 1944:20).

[27] Morgenthau Diaries, Vol. 749, Jul. 1, 1944, pp.22-23.

[28] Morgenthau Diaries, Vol. 749, Jul. 1, 1944, p.24.

[29] Morgenthau Diaries, Vol. 749, Jul. 1, 1944, p.25.

[30] Morgenthau Diaries, Vol. 749, Jul. 1, 1944, p.30.

[31] Morgenthau Diaries, Vol. 753, Jul. 13, 1944, p.125.

[32] Christian Science Monitor (Jul. 15, 1944:16).

[33] Washington Post (Jul. 8, 1944:4).

[34] Lippmann, Walter (Jul. 13, 1944:7).

[35] The Times (London) (Jul. 17, 1944:3).

[36] Gilbert (1990:551).

[37] Morgenthau Diaries, Vol. 749, Jul. 3, 1944, pp.284-286.

[38] Goldenweiser Papers, Bretton Woods Conference, Box 4.

[39] Morgenthau Diaries, Vol. 753, Jul. 13, 1944, pp.90-91.

[40] Morgenthau Diaries, Vol. 749, Jul. 2 or 3, 1944, pp.210-211.

[41] Washington Post (Jul. 12, 1944:1).

[42] Morgenthau Diaries, Vol. 752, Jul. 10, 1944, pp.58-78.

[43] Chicago Tribune (Jul. 7, 1944:10).

[44] Wall Street Journal (Jul. 3, 1944:4).

[45] Wall Street Journal (Jul. 7, 1944:2).

[46] Christian Science Monitor (Jul. 12, 1944:17).

[47] Robbins (1990:174, 184).

[48] Robbins (1990:179).

[49] Chicago Tribune (Jul. 9, 1944:A5).

[50] Bourneuf (Jul. 6, 1944:3-4).  Van Dormael (1978:201-202).

[51] Morgenthau Diaries, Vol. 753, Jul. 13, 1944, p.85.

[52] Os termos “moeda de ouro convertível” e “câmbio de ouro convertível” foram utilizados indiferentemente nas discussões.

[53] Ver Rosenberg and Schuler (a publicar: número de página não disponível), transcrição da quarta reunião da Comissão I, July 13, 1944, 2:30 PM.  Ver também Bourneuf (Jul 13, 1944:3).

Na reunião da Comissão das 10 horas da manhã seguinte, 14 de Julho, Robertson levantou novamente a questão num contexto diferente.  “Quero ter a certeza de que a correcção sugerida da última vez está agora a ser devidamente incorporada no Artigo III”, disse ele.  “Na página 3, em vez da frase ‘dez por cento das suas participações oficiais [de ouro e ouro convertível] permuta,’ leia-se ‘dez por cento das suas participações oficiais líquidas de ouro e dólares norte-americanos'”.

Bernstein respondeu: “Foi minha intenção referir-me a esta alteração quando surgir a questão da definição.  Penso, no entanto, que é o pensamento daqueles que consideraram esta questão que a mudança “troca de ouro convertível” para “dólares norte-americanos” seria, na realidade, uma reafirmação do mesmo princípio.  Há poucas, se alguma, moedas para além do dólar americano que satisfariam agora esta definição, e se pudermos inserir este ponto, isso facilitaria o progresso”.

“Então a alteração sugere a substituição da ‘troca de ouro convertível’ por ‘dólares americanos'”, concluiu White, sem objecções (Rosenberg e Schuler, a publicar).

[54] Morgenthau Diaries, Vol. 754, Jul. 14, 1944, p.3.

[55] Gilbert (1990:552-553).

[56] New York Times (Jul. 7, 1944:7).

[57] Keynes XXVI, Jul. 4, 1944, pp.78-79, 81.

[58] New York Times (Jul. 7, 1944:9).

[59] New York Times (Jul. 5, 1944:19).

[60] Robbins (1990:168).

[61] New York Times (Jul. 9, 1944:E6).

[62] Robbins (1990:179).

 


O autor: Benn Steil [1963-] é um economista e escritor americano. Foi educado no Nuffield College, Oxford e na Wharton School da Universidade Pennsylvania. Steil é o membro sénior e director de economia internacional no Council on Foreign Relations. É o fundador e editor da revista International Finance, tendo-lhe sido atribuído o Prémio da New-York Historical Society para o melhor livro sobre história americana, o Prémio do Livro Douglas Dillon da Academia Americana de Diplomacia, o Prémio do Livro Hayek, e o Prémio do Livro Spear em História Financeira.

 

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