Seleção e tradução de Francisco Tavares
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Grandes apostas frente a ventos contrários
Publicado por em 15 de Maio de 2023 (original aqui)

Não há qualquer garantia de que as perspectivas tecnológicas se concretizem. Pode acontecer, mas também pode não acontecer. E isso é um grande risco.
As forças económicas – os fortes ventos de cauda do pós-guerra – que moldaram os últimos 35 anos e que aceleraram as viagens douradas durante a “era da abundância” ocidental, já não sopram numa direcção favorável. Já estavam a abrandar, mas agora estão a inverter-se.
Os ventos mudaram 180° de direcção – estão a soprar contra. Trata-se de uma mudança estrutural num ciclo longo. Não há soluções rápidas do tipo “bala de prata”. Os anos de boa disposição do “Cabaret” já lá vão. Teremos de nos “desenrascar” com menos; e a consequente volatilidade política é inevitável.
A China já se tinha industrializado anteriormente, dando-nos produtos manufacturados baratos e destruidores da inflação; a Rússia deu-nos a energia barata que manteve as economias ocidentais (só) competitivas e (quase) sem inflação. Nessa altura, uma “facilidade sem fricções” caracterizava os movimentos de bens, capitais, pessoas – tudo. Actualmente, porém, prevalecem a fricção e o impedimento.
A “viragem” começou com a determinação dos EUA em não permitir que um “centro” asiático os suplantasse. Mas a mudança adquiriu o seu próprio impulso poderoso, gerando agora blocos comerciais separados que estão determinados a libertar-se das “velhas hegemonias”.
No lugar da “facilidade sem fricções”, temos uma dissociação económica: sanções, apreensão de bens, degradação da protecção jurídica, discriminação regulamentar; discriminação da Agenda Verde e dos factores do meio ambiente, sociais e de governança; “cerco” da segurança nacional e narrativas que transformam, no limite, em “traição” uma série de actividades económicas até então banais.
Simplificando, há fricção… em todo o lado.
Para além desta transição geral para a fricção, existem dinâmicas distintas que estão a transformar uma base de fricção em ventos contrários furiosos.
A primeira é de ordem geo-política. A esfera multipolar está a crescer. Mas a sua “atracção” não é apenas pela multipolaridade, per se; trata-se essencialmente da reapropriação das autonomias nacionais; das soberanias estatais e da recuperação de modos de ser e valores civilizacionais discretos por parte dos Estados multipolares aspirantes.
Como Ted Snider sucintamente afirma:
“O monopólio do dólar não assegurou apenas a riqueza dos EUA: assegurou o poder dos EUA. A maior parte do comércio internacional é efectuado em dólares e a maior parte das reservas de divisas são detidas em dólares. Esse domínio do dólar permitiu muitas vezes aos EUA ditar o alinhamento ideológico ou impor ajustamentos estruturais económicos e políticos a outros países. Permitiu também que os EUA se tornassem o único país do mundo que pode efectivamente sancionar os seus opositores. A emancipação da hegemonia do dólar – é a emancipação da hegemonia dos EUA”.
A fuga à utilização do dólar americano no comércio torna-se assim o mecanismo chave para substituir o mundo unipolar liderado pelos EUA por um mundo multipolar. Dito de forma simples: os Estados Unidos utilizaram abusivamente o dólar como arma e a opinião pública mundial (mesmo a do Presidente Macron e de alguns outros Estados da UE) virou-se contra eles.
Porque é que isto é tão importante? Simplesmente, deu-se início a uma “corrida ao dólar” a nível mundial – um pouco como uma “corrida a um banco”, à medida que a confiança diminui.
A segunda dinâmica é o “vírus” da inflação – o flagelo histórico de todas as economias. Este último acumulou discretamente força durante a “era dourada” do crédito a custo zero, mas depois turbo alimentou-se com os direitos aduaneiros sobre a China – com a UE a auto-eleger-se para renunciar à energia barata na esperança de que o seu boicote implodisse financeiramente a Rússia. E com a crescente “guerra” do Ocidente pela deslocalização de um leque cada vez maior de linhas de abastecimento, que devem proteger-se sob a designação de segurança nacional.
Essencialmente, o Ocidente abraçou a autoflagelação económica, “a partir de um sentimento subjacente de pavor existencial, uma suspeita persistente de que a nossa civilização se pode destruir a si própria, como tantas outras o fizeram no passado”. (Daí o impulso para reafirmar uma primazia civilizacional, mesmo ao preço de acelerar um possível auto-suicídio económico ocidental).
O bilionário Stan Druckenmuller, gestor de fundos, constata causticamente os riscos de cauda inerentes – corridos conscientemente – durante a era de vento de cauda da inflação zero/juros zero/abundância de liquidez:
“[Mas] … quando se tem dinheiro à borla, as pessoas fazem coisas estúpidas. Quando se tem dinheiro grátis durante 11 anos, as pessoas fazem coisas muito estúpidas. Por isso, há coisas por baixo do capô, que estão a começar a surgir. Obviamente, os bancos regionais, recentemente… Mas presumo que venham aí muitos mais organismos… É um cocktail assustador que nos está a ser apresentado“.
Bem, quem é que quer ser o desmancha-prazeres? Não é certamente o 1% da elite, que se estava a dar muito bem com este paradigma. A Reserva Federal manteve as taxas de juro baixas e os auditores do governo encorajaram os bancos a comprar títulos do Tesouro dos EUA e hipotecas de longo prazo, dando-lhes um tratamento contabilístico favorável. (Os bancos não tinham de os avaliar pelo seu valor de mercado actual nas contas, desde que pudessem fingir que os manteriam até à maturidade).
Depois veio o flagelo da inflação e da subida das taxas de juro, que destruiu o valor desses activos. Isso deixou os passivos a descoberto e expostos.
As autoridades foram capazes de forjar este castelo de cartas do “dinheiro grátis”, deixando-o crescer durante tanto tempo. Era uma aposta que, inevitavelmente, teria o seu “tecto”, um limite para além do qual não poderia continuar a ser sustentada. Nessa altura, décadas mais tarde, as pessoas tinham passado a acreditar que podia ser prolongado – para sempre. Muitos ainda acreditam. Não se aperceberam de que o vento de cauda tinha dado uma volta de 180º e se tinha tornado num forte vento contrário inflacionista.
Foi então que surgiu a verdadeiramente extraordinária “Grande Aposta”: A Europa decidiu que podia “passar” sem energia barata e recursos naturais (por causa da irritação com a Rússia por causa da Ucrânia). Decidiu apostar forte na chegada de novas tecnologias (tecnologias que ainda não foram desenvolvidas ou comprovadas), que chegassem a tempo e a um custo que pudesse sustentar uma economia moderna e competitiva – na ausência de combustíveis fósseis para uma infra-estrutura originalmente construída dessa forma.
Não há qualquer garantia de que esta perspectiva tecnológica se concretize. Pode acontecer, mas também pode não acontecer. E isso é uma aposta de grande risco.
Os Estados europeus primordialmente travaram guerras no século XIX precisamente para garantir energia ou recursos como o petróleo, o carvão e o minério de ferro. Na Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha lutou no Médio Oriente para assegurar os depósitos de combustível – o petróleo – que permitiria a conversão dos navios de guerra britânicos do carvão para o petróleo. A conversão para o petróleo deu à marinha britânica uma vantagem competitiva sobre a frota alemã alimentada a carvão. Mas a UE de hoje decidiu prescindir dos recursos fósseis do século XIX, numa aposta panglossiana no engenho humano para produzir uma revolução técnica – antes do prazo limite – e no custo.
“Mas falta o facto de a tecnologia não poder criar energia [pelo menos do tipo de que a sociedade moderna necessita]. Esta convicção da acção humana há muito que se revelou demasiado optimista. Aqueles que partem do princípio de que o mundo político pode ser reconstruído pelos esforços da vontade humana, nunca antes tiveram de apostar tanto na tecnologia em detrimento da energia [fóssil] – como motor do nosso avanço material“, escreve Helen Thomson.
Apostar na tecnologia em detrimento da energia fóssil é, no entanto, apenas metade da Grande Aposta. A outra metade consiste no facto de a economia ocidental ter sido fundada e construída em torno da energia barata. É esse o seu “modelo de negócio”: É difícil conceber outro. Irá a Europa passar as próximas décadas a desmantelar e a substituir infra-estruturas energéticas eficientes por novas fontes de energia que, no essencial, não passam de um “brilho nos olhos” de um inovador?
Se assim for, será a primeira vez na história que alguém aposta tão fortemente na tecnologia em detrimento da energia. Nunca antes se considerou seriamente a redundância das infra-estruturas energéticas existentes (e a sua perda de valor). E – nunca antes – as infra-estruturas energéticas eficientes foram desmanteladas, para serem substituídas por novas estruturas verdes que são menos eficientes (ver aqui e aqui como dois exemplos), menos fiáveis e mais caras.
É a primeira vez na história que um tal investimento é feito a esta escala. Isso torna tudo mais caro, mais difícil e menos eficiente. É uma receita para aumentar ainda mais a inflação e a degradação económica.
Na verdade, trata-se de navegar contra ventos contrários. Como é que esta infra-estrutura será financiada? A era do dinheiro grátis ficou para trás; o custo fiscal é agora o custo REAL. A degradação da eficiência, da fiabilidade e a fricção irão então encontrar e enfrentar a futura ideologia Net Zero da UE, com o clima a tornar-se o pretexto para a introdução de restrições radicais aos modos de vida.
Nos Estados Unidos, supunha-se que a financeirização da economia alargaria a primazia económica ocidental. Foi o que aconteceu durante algum tempo, mas os produtos financeiros acabaram por disparar, sugando a economia real que produzia coisas e empregava pessoas de forma produtiva.
Estes produtos derivados semelhantes ao dinheiro (que se substituem à economia real) tenderam mais para o domínio do irreal. Actualmente, é difícil distinguir entre dinheiro e coisas que são “reais e irreais”. A saga do FXT (para os que a seguiram) ilustrou este facto com precisão: Quão real e de que forma era o “token” FXT?
A moda dos “produtos” verdes e ESG soa consideravelmente como uma ideia derivada que sai do mundo dos produtos financeirizados: isto é, promover o plim tecnológico que atrai o investimento, mas que se torna cada vez mais desligado dos verdadeiros fazeres de uma economia clássica – mais abstracto, mais baseado em promessas, esperanças e desejos do que em coisas derivadas da natureza.
Para o europeu comum, é de facto “um cocktail assustador que lhe está a ser apresentado“, prognostica um documento da BBC. “O objectivo do Net Zero não pode permitir a “escolha pessoal”: “Que aspeto têm os estilos de vida verdadeiramente com baixas emissões de carbono – e será que podem ser alcançados apenas por escolha pessoal?“, lamenta o artigo. Bem, se a resposta é “não”, então isso significa que o estilo de vida com baixíssimas emissões de CO2 tem de ser para toda a gente. Como consegui-lo é uma questão de “mudança tanto individual como de sistemas“.
Olhando para o futuro, o que pressagia este “cocktail”? Provavelmente, turbulência política. Parafraseando a franqueza de Churchill: “Este é o tipo de disparate que eles [o povo] não tolerarão”.
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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).