Espuma dos dias — Massacre – O BCE está a levar a economia europeia contra a parede e toda a gente a ver, por Heiner Flassbeck

Seleção e tradução de Francisco Tavares

5 min de leitura

 

Massacre – O BCE está a levar a economia europeia contra a parede e toda a gente a ver

 Por Heiner Flassbeck

Publicado por em 26 de Julho de 2023 (original aqui)

 

A situação económica na Alemanha está má, muito má mesmo. Há indicadores, como o chamado Markit PMI, que prevê um cenário devastador para a indústria alemã semelhante ao da grande crise financeira mundial de 2008/2009 ou ao do choque do coronavírus em 2020. O índice ifo (índice sobre o clima de negócios na Alemanha) também caiu drasticamente em Julho. O estudo do Banco Central Europeu (BCE) sobre os empréstimos bancários, recentemente publicado, mostra até que ponto o endurecimento da política monetária já está a ter efeitos: os empréstimos às empresas estão a cair rapidamente. Mas os responsáveis do governo e do banco central olham para o outro lado. Não querem ver o que está a acontecer, porque não querem admitir o quão fundamentalmente errados estavam nas suas estimativas e previsões.

A começar pelo Ministro Federal da Economia, que continua a não querer tomar nota da realidade. No seu último relatório mensal, escreve que os dados actuais sobre os indicadores económicos apontam para uma “dinâmica económica subjacente moderada, após um arrefecimento notório no final do primeiro trimestre” e “para uma recuperação gradual da economia industrial nos próximos meses”. Já não se trata de uma atirar poeria para os olhos, trata-se de ter os olhos bem fechados com que as crianças pequenas acreditam que podem afastar um perigo agudo.

Noutros locais responsáveis, existe igualmente pouca competência para chegar a uma avaliação realista da situação e para tomar as contramedidas adequadas: O BCE, que, com a sua política, influencia decisivamente a situação económica dos países membros, está, como já demonstrámos várias vezes, bloqueado pelos seus erros de avaliação anteriores.

Uma vez que os responsáveis do BCE se convenceram coletivamente de que têm de combater a “inflação”, independentemente da situação económica e das causas dos aumentos de preços, o choque da procura causado pelos aumentos maciços dos preços das matérias-primas transformou-se numa espiral descendente para a economia europeia: O investimento empresarial na construção e na indústria está agora a substituir a fraqueza inicial do consumo como fator impulsionador.

Mesmo depois de ter ficado claro que, desde o final do ano passado, não se registou mais nenhuma pressão inflacionista, mas sim uma tendência deflacionista observável a nível mundial, os defensores de uma política anti-inflação intransigente no BCE e nos bancos centrais nacionais não pararam de alertar para uma solidificação da inflação dos preços no consumidor. Os indicadores avançados, como os preços no produtor ou os preços por grosso, que já estão a assinalar a deflação, são deliberadamente ignorados porque eles não querem admitir que estão errados. O BCE, que em Março deste ano ainda afirmava que os preços da produção industrial, enquanto indicador avançado dos preços no consumidor, eram “um elemento comprovado e central da análise do BCE no que respeita às pressões sobre o sistema”, agora já não o menciona.

Embora não haja e não tenha havido, obviamente, uma aceleração perigosa dos aumentos salariais na Europa, apesar das perdas salariais reais, o BCE está a jogar cada vez mais a carta do “risco dos aumentos salariais”. Isto é uma posição pérfida, porque foi o BCE que declarou precipitadamente que os aumentos temporários e externos dos preços eram “inflação”. No entanto, apesar deste grave erro de avaliação, a maioria dos sindicatos europeus nunca foi suficientemente forte para evitar perdas salariais reais significativas. Os pagamentos pontuais têm sido uma forma adequada de limitar as perdas salariais reais (especialmente para os grupos salariais mais baixos) sem ajustar os salários à “inflação”. Apresentar agora a evolução salarial como o verdadeiro perigo inflacionista é apenas mais uma tentativa desesperada de desviar a atenção dos seus próprios fracassos.

O funcionário do FMI responsável pela Europa, Alfred Kammer, deu o tom errado de uma forma particularmente incisiva. Numa publicação no seu blogue, escreve:

“É provável que as pressões inflacionistas persistam durante algum tempo. Os trabalhadores tentarão recuperar as perdas de poder de compra pressionando por salários mais elevados, enquanto as empresas procurarão provavelmente proteger os seus lucros fixando os seus preços de retalho de modo a refletir os custos laborais mais elevados. Não prevemos que a inflação regresse ao objetivo antes de meados de 2025 – e a inflação poderá eventualmente revelar-se mais persistente se, por exemplo, as expectativas de inflação se alterarem no sentido ascendente ou se aumentar a percentagem de contratos salariais que contêm cláusulas de indexação retroactiva.”

Então, numa economia de mercado, as empresas tentarão proteger os seus lucros quando os salários aumentarem? Exatamente. Sempre o fizeram, até agora? Se a concorrência entre fornecedores funcionar, as empresas repercutirão, em média, os aumentos dos custos unitários do trabalho nos preços, ou seja, a parte dos aumentos salariais que não é compensada por ganhos de produtividade. Os dados empíricos sobre este facto são claros para quase todos os países do mundo (como se pode ver aqui): Consequentemente, não houve margem arbitrária para as empresas aumentarem os preços nos últimos quarenta anos e não há nada que sugira que isso tenha mudado desde 2021. Pelo menos é isso que o FMI deveria saber.

Mas, para além disso, não faz qualquer sentido que sejam as empresas do sector retalhista, de entre todos os sectores, a repercutir os aumentos dos custos salariais. No sector grossista e ao nível do produtor, os preços estão a baixar, embora também aí sejam pagos salários normais. Se as pressões salariais fossem geralmente elevadas, não se registaria deflação nos sectores não ligados ao consumo. Além disso, as expectativas de inflação, que nunca podem estar ausentes, existiriam em todas as fases da produção e das vendas e não apenas ao nível do retalho. Não se trata de uma análise teoricamente sólida, mas sim de uma especulação que não pode ser justificada por nada e cujo único objetivo é justificar o comportamento dos banqueiros centrais europeus. Se o FMI não tem mais nada a dizer, é melhor estar calado.

O facto de os políticos democraticamente eleitos em toda a Europa assistirem impávidos e impotentes aos tecnocratas do BCE, durante meses, a uma corrida na direção errada, causando enormes prejuízos, já não é compreensível. Mas é (como demonstrado no meu último contributo) a consequência direta do mandato errado que a Alemanha impôs ao BCE. Quem se escuda na posição de que, em caso de dúvida, só é responsável pela estabilidade dos preços, tem o mandato errado e uma desculpa barata. A recessão é então declarada como o preço infelizmente inevitável a pagar pela estabilidade dos preços. E o facto de a estabilidade dos preços ser um bem social indispensável, pelo qual o banco central luta, é simplesmente aduzido sem que se diga o que é realmente a estabilidade dos preços numa época de grandes choques externos sobre os preços.

Assim, o BCE continuará com a sua política errada e voltará a aumentar as taxas de juro amanhã. Se, até mesmo no fim deste caminho, ninguém assumir a responsabilidade pessoal pelas decisões erradas, veremos que grandes partes da população estará perdida para a democracia. Porque, mesmo que as relações não sejam compreendidas em pormenor, parte-se do princípio de que “aqueles que estão lá em cima” falharam, mas não cargam com as consequências do seu fracasso, antes deixam que seja o “povo da rua” a pagar a fatura.

 

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O autor: Heiner Flassbeck [1950 – ], economista alemão (1976 pela Universidade de Saarland), foi assistente do Professor Wolfgang Stützel em questões monetárias. Doutorado em Economia pela Universidade Livre de Berlim em julho de 1987. Em 2005 foi nomeado professor honorário na Universidade de Hamburgo. Foi secretário de estado (vice-ministro) do Ministério Federal de Finanças de outubro de 1998 a abril de 1999 sendo Ministro das Finanças Oskar Lafontaine (primeiro governo Schröeder), e era responsável pelos assuntos internacionais, a UE e o FMI.

Trabalhou na UNCTAD- Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento desde 2000, onde foi Diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento de 2003 a dezembro de 2012. Desde janeiro de 2013 é Diretor de Flassbeck-Economics, uma consultora de assuntos de macroeconomia mundial (www.flassbeck-economics.com). Colaborador de Makroskop. Autor de numerosas obras e publicações, é co-autor do manifesto mundial sobre política económica ACT NOW! publicado em 2013 na Alemanha, e são conhecidas as suas posições sobre a crise da eurozona e as suas avaliações críticas sobre as políticas prosseguidas pela UE/Troika, nomeadamente defendendo que o fraco crescimento e o desemprego massivo não são resultado do progresso tecnológico, da globalização ou de elevados salários, mas sim da falta de uma política dirigida à procura (vd. The End of Mass Unemployment, 2007, em co-autoria com Frederike Spiecker).

 

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