ADÃO CRUZ – REFLEXÃO SOBRE SAÚDE

Não é fácil nem agradável falar de saúde, porque tudo aquilo que se possa dizer não passa de uma forma parcial de enfrentar este grave problema. Falar de saúde é muito complexo, no que diz respeito aos agentes prestadores de cuidados de saúde, no que diz respeito àqueles que são objecto dos cuidados de saúde, os doentes, no que respeita à sociedade em que se processa a prestação dos cuidados de saúde e no que diz respeito aos complexos interesses que envolvem a prestação de cuidados de saúde.

Falar de saúde é complexo no que respeita aos agentes prestadores de saúde, nomeadamente ao médico. A prática clínica é uma prática difícil, arriscada e incerta que requer extrema competência, dedicação, dignidade, humanidade, espírito ético e bom senso. Não é rara nem pequena a incerteza na definição da doença, a incerteza no diagnóstico, a incerteza no tratamento, a incerteza na avaliação dos resultados do tratamento e a incerteza na adesão dos doentes. Uma boa parte da clínica inclui doentes que não têm uma doença óbvia. Além disso o conceito de normal não é tão claro como se pensa. Há situações aparentemente normais que podem ser patológicas e há situações patológicas que parecem normais. Além disso, a doença é um fenómeno multifactorial e multifacetado que tem de ser abordado de modo específico em cada doente e de uma forma abrangente e integrada.

Falar de saúde é complicado no que diz respeito àqueles que recebem os cuidados de saúde, os doentes. Cada doente é um doente único, cada doente é uma pessoa com todo o mundo que encerra. Não se pode tratar sintomas ou factores de risco ou valores analíticos, tem de se tratar pessoas, e cada pessoa pode ser completamente diferente da outra, em termos físicos, psicológicos, sociais, culturais e económicos.

Uma boa relação médico-doente é fundamental e imprescindível para a adesão aos cuidado e conselhos do médico, bem como para o sucesso da terapêutica. E o que nós hoje observamos é uma perda cada vez maior da relação médico-doente. O doente passou a ser um número, uma senha, sendo tratado mais pelos resultados dos exames do que pela pessoa e pela doença em si.

Falar de saúde é muito complicado no que respeita à sociedade em que a prestação de cuidados se insere. Não é fácil abordar o tema da saúde até porque se encontra escamoteado o verdadeiro sentido de saúde. O médico e os agentes de saúde apenas constituem um dos elementos de criação de saúde, e a criação de saúde identifica-se rigorosamente com o crescimento da qualidade de vida. A saúde não pode ser guiada apenas por parâmetros clínicos e laboratoriais. Da saúde faz parte o bem-estar das pessoas, a ausência de fome, a habitação condigna, a satisfação das aspirações, o aproveitamento das capacidades individuais, o emprego e a realização profissional, a coesão das relações sociais, a justiça e o combate à solidão.

Falar de saúde é extremamente complicado no que respeita aos complexos interesses que envolvem a prestação dos cuidados de saúde. A nossa sociedade vive triturada por uma poderosíssima máquina de mentir a verdade. A esta máquina não é poupada a assistência médica e a medicina, que sofrem também as consequências deste soro universal da mentira que cada vez mais induz as pessoas a precisarem da medicina através de um movimento de mercado e de uma mercantilização ignóbil da saúde. São admiráveis os progressos científicos e tecnológicos, bem patentes nas numerosas reuniões e congressos, mas quando o doente precisa de uma consulta ou de uma intervenção espera meses ou anos. A despeito de haver muitos profissionais competentes, conscientes e humanos, existe, fora do SNS, uma ânsia desmedida do lucro e uma imposição de falsas necessidades de saúde, “saúde” vendida na especulação de duvidosos benefícios, na escamoteação de consequências e no desapegar das consciências, sustentada no privilégio e no conformismo que o beneplácito público oferece à coligação de interesses entre a medicina, a indústria e o comércio. Esta coreografia não é fácil de captar mesmo por pessoas cultas. Hoje em dia a saúde da humanidade deixou de ser um fim em si mesma, passando a ser um pretexto para atingir outros fins.

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