A EPOPEIA DAS FRANCESINHAS NAS INVASÕES FRANCESAS
Conto – Ficção
Parte 1 de 2
I
Vivia-se no ano da graça de 1809 e o mês de Junho.
Soult, General e mais tarde Marechal, regressava a casa triste, acabrunhado e abalado com a derrota. A bem da verdade não tinham sido os Portugueses a vencê-lo, tinham sido os Ingleses, mas isso era ainda uma desonra maior. Perdera fama, prestígio e muita gente nesta campanha. E só fora ‘dono’ da cidade pouco mais de dois meses. E, diga-se, de uma cidade destroçada pela recente tragédia da Ponte das Barcas, de que só ele tinha sido o responsável. Tinha sido muito pouco tempo para que a cidade lhe tivesse perdoado ou pelo menos passado a ignorar a sua responsabilidade de invasor. Só tinha podido andar pela cidade nas alturas em que estivesse escoltado pelos seus mais próximos guardas pessoais.
Era de noite e o General tinha fome.
Apesar de a Galiza estar ocupada pelas suas tropas e no trono espanhol estar o irmão de Napoleão, José Bonaparte, há dois dias que só comia fruta dos pomares por onde passava e um caldo horroroso que Pascal, seu novo escudeiro, lhe preparava com o que ia encontrando pelo caminho. Estava a ser difícil o regresso por terras espanholas, os Galegos também lutavam contra o invasor, e os seus mais dedicados criados tinham desaparecido. E que falta lhe faziam, já que um era o seu cozinheiro particular que sabia segredos culinários que mais ninguém sabia e o outro o padeiro cujas mãos para amassar pão de diversas qualidades o levara ao seu serviço.
Há já alguns anos, a bem dizer muitos, que esses dois homens o acompanhavam. Teriam morrido? Teriam sido capturados pelas gentes do Porto? Não sabia e não tinha hipóteses de os ir procurar. Que maçada!
Com eles tinham desaparecido, sido mortos ou capturados, muitos escudeiros, muitos soldados, alguns animais e as três ajudantes de cozinha, Nanette, Suzette e Margarette.
O General e mais tarde Marechal salivava ao pensar nos petiscos de Trippe. Aqueles molhos, aquelas sandes, o pão do Moullet, a dobrada que aprendeu a comer nos últimos meses, o feijão, o molho. Felizmente as três criadas conseguiam trazer-lhe dos mercados, todos os dias, legumes e frutas frescas e carnes para serem cozinhadas. Graças à sua beleza e simpatia, os locais não lhes faziam mal.
Tudo lhe bailava à frente dos olhos, incluindo as ajudantes de cozinha, fazendo-o entrar em delírio. Estava já a perder a esperança de os encontrar o que de facto nunca veio a acontecer.
As três criadas e ajudantes de cozinha do General eram muito amigas. Oriundas dos subúrbios de Lyon, tinham ido para Paris, ainda muito novas, mal tinham feito quinze anos, para trabalharem como criadas para todo o serviço, numa casa de uns senhores muito abastados que tinham uma família enorme.
Lá conheceram Monsieur Trippe, o chefe cozinheiro, que a par dos muitos agrados que lhes exigia, lhes proporcionava uma vida calma e sem preocupações.
Soult, ainda General e visita assídua da casa, era apreciador de boa comida, e um dia conseguiu convencer o cozinheiro a mudar-se para o seu serviço exclusivo no exército Francês, pelo que pagou pesada indemnização aos donos da casa e seus amigos. Trippe aceitou depois de impor como condição a companhia das suas três ajudantes, imprescindíveis, dizia, na confecção dos petiscos que Soult tanto apreciava.
Agora no Porto, perdidas e órfãs de General e de Trippe, as três meninas francesas procuravam de um modo ou de outro, encontrar alguém que as acolhesse, fosse a troco do que fosse, tarefa que não se mostrou muito difícil de executar.
Estavam dispostas a tudo.
Já não tinham a protecção de Soult, que tinha sido derrotado e fugira para a Galiza, e estavam perdidas numa cidade quase desconhecida.
Pelas suas cabeças os pensamentos atropelavam-se num turbilhão desgovernado. As lembranças e as saudades de casa e da família misturavam-se com saudades e desejos mais comezinhos, como fossem os carnais, os económicos e os alimentares. Tinham sido surpreendidas pela invasão das tropas e viram-se no meio da batalha quando faziam compras na Ribeira. Estavam a escolher os bróculos, os tomates e os agriões, e também as alfaces e as pencas de que o ainda General tanto gostava, para lhe prepararem um almoço magnífico, quando a luta começara. Tinham até negociado já a compra de vísceras de vitela e um suculento naco de carne, mas tiveram de deixar o negócio perder-se.
Desde criança que Moullet trabalhava na padaria de seu pai. Lá aprendeu a confeccionar os mais diversos tipos de pão, em especial uns redondinhos e pequenos, fofos e saborosos, que eram procurados por gentes de todo o lado em Marselha.
Quando fez dezassete anos, foi convocado para o exército Francês onde depressa se impôs como padeiro. Aos vinte anos foi recrutado para servir o General Soult que quando provou os seus pães, o informou de que ele trabalharia para ele para sempre. E assim fora, até agora.
Natural de uma aldeia a norte de Nice, Trippe trabalhara em tudo quanto era ofício, desde a amanha da terra até ao roubo quando a fome apertava. Foi num dos assaltos que cometeu, ainda não fizera dezoito anos, que foi visto e reconhecido pelo dono da casa e teve de fugir. Foi para longe, só parando onde se julgou a salvo. Entrou numa estalagem a sul de Lyon, onde pediu trabalho. Aceitaram-no como ajudante da cozinheira, trabalhando a troco de comida. A cozinheira adoptou-o como seu protegido e, recebendo carinhos como só Trippe sabia dar, ensinou-lhe tudo o que sabia, inclusive alguns segredos que já vinham de sua avó, a melhor cozinheira que Lyon alguma vez tivera. Aprendeu os mais diferentes modos de cozinhar carnes com poucos ingredientes, e a utilizar ervas aromáticas e molhos. A cozinheira morreu dois anos depois e Trippe ficou dono da cozinha da Estalagem. Foi lá que conheceu e travou alguma amizade com um ‘bom vivant’ que o convenceu a substituir a cozinheira que adoecera em casa dos pais, em Paris, e que se sabia não mais trabalharia nas condições desejáveis.
Sabendo que iria ter uma vida regalada e com um bom salário, Trippe aceitou.
Os petardos e os tiros sucediam-se e matavam gente ao lado deles. Estavam longe do centro da batalha, que era o lugar que lhes competia dado o trabalho que efectuavam, mas mesmo assim já tinham morrido alguns camaradas, não se sabendo se por via dos disparos franceses se pelos dos luso-britânicos. Lá em baixo, junto ao rio, as tropas Inglesas e portuguesas tinham atravessado o Douro e estavam a derrotar os soldados franceses, que começavam a debandar.
Moullet e Trippe, transidos de medo, e tremendo como varas verdes, esconderam-se numa casa velha do Campo da Regeneração (actual Praça da República), após terem fugido do quartel militar.
A dona da casa, que via muito mal e ouvia ainda pior, resolveu acolhê-los e por lá acabaram por ficar até terem aprendido a falar um português decente e compreensível.
Parte 2 a publicar brevemente
Obs – Conto publicado em Junho de 2017 no meu livro “COMO SE FORA UM CONTO”
Artigo interessante pois prende a atenção.
Abraço,
Amiel Bragança