A EPOPEIA DAS FRANCESINHAS NAS INVASÕES FRANCESAS
Conto – Ficção
Parte 2 de 2
(Pode ler ou reler a primeira parte AQUI)
II
Passaram-se alguns anos após estes acontecimentos.
Vamos encontrar Moullet, Trippe e as três amigas a trabalhar em Valongo numa estalagem.
Após a fuga de Soult e dos seus soldados, as tropas luso-britânicas ainda os perseguiram, regressando tempos depois com a certeza de que os franceses tinham sido completamente derrotados e não voltariam. Engano total, já que eles tentariam de novo a conquista de Portugal em Setembro do ano seguinte, comandados por Masséna, tendo sido igualmente derrotados, mas de facto não voltaram ao Porto.
Nanette, Suzette e Margarette, trabalharam em tudo e mais alguma coisa nos vários tascos da Ribeira, até que um dia, Trippe, ao fazer compras no mercado local as viu e encaminhou para a sua estalagem em Valongo..
Na altura, trabalhavam para um tal Manoel Augusto, dono de uma estalagem de 5ª categoria. Este Manoel, viria a fazer parte das tropas internacionais que ao lado dos franceses invadiria de novo Portugal em 1812 sob o comando de Masséna. Seria ainda um dos cem sobreviventes da batalha de Lubino, fazendo parte da Legião Lusitana que ao lado de Napoleão combateria na Campanha da Rússia. Por via disso viria a ser agraciado pelo próprio Bonaparte com a Legião de Honra.
O reencontro delas com os amigos franceses, ainda para mais, elas e o cozinheiro eram provenientes da mesma terra, permitiu que a felicidade transbordasse, abandonassem de imediato o Augusto e passaram a ser, num muito curto espaço de tempo, para além de amigos e companheiros de trabalho, para além de patrões e empregadas, também confidentes e por fim amantes, numa relação confusa e aberta conquanto muito sigilosa. Nunca ninguém se apercebeu da íntima ligação entre estes cinco franceses, e nós nunca a saberíamos, não fosse Ninnette, tetraneta de Suzette, nos ter contado e mostrado umas cartas muito antigas que possuía, escritas pelos diversos intervenientes da altura, onde esses amores eram descritos com algum detalhe e com muito carinho e admiração por sua avó.
Ninnette era filha da Zeza da Rua Fresca e vive, tal como a mãe em Leça da Palmeira. A Zeza diz-se, ainda, descendente de Junot, o General que comandou as tropas Francesas durante a primeira invasão Napoleónica e que também fez parte da terceira, comandada por Masséna, embora não passasse da neta de uma enteada de Marcelle, essa sim trineta do General e que vivera em Leça até à sua morte nos fins dos anos oitenta do século passado. [(1) – nota de rodapé – em “Guiomar de Menezes” conto do mesmo livro]
Na estalagem, que já tinha uma clientela fixa e muito dedicada, todos trabalhavam alegremente desde o alvorecer até noite cerrada. Eram felizes e bem aceites pela comunidade, os franceses que tinham vindo com a invasão. A sua simpatia e os petiscos com sabores novos e apetitosos que apresentavam fizeram a sua parte, a cordialidade e o bem saber receber das gentes do Porto fizeram o resto. A vida cheia de dificuldades tinha ficado para trás.
Moullet fazia um pão que rapidamente ganhou fama. Era feito à moda deles, dos franceses, e tinha um sabor diferente dos conhecidos na região. Gentes vinham de longe para lhe comprar os “moletes”, como eram conhecidos, que mesmo com um ou dois dias de fabrico eram maravilhosos de comer, ou apareciam unicamente para os comerem com os petiscos que Trippe confeccionava.
Trippe por seu lado reinventou sandes e molhos, e mudou a maneira de confeccionar um dos pratos mais tradicionais do lugar onde estava. A sua fama de excelente cozinheiro fazia com que fosse conhecido em todo o lado.
As meninas, que eram bastante bonitas, para além de ajudarem nos cozinhados e fazerem as limpezas, serviam às mesas, insinuavam-se aos clientes não os deixando, no entanto, abusar, e eram de uma simpatia assombrosa. Muita gente vinha também à estalagem só para as ver, olhar para elas e coquetear um pouco, na esperança de poder ter mais do que era devido.
A estalagem passou, em pouco tempo, a ser conhecida por “A Casa das Francesinhas”.
Mas o seu reconhecimento popular não se ficava pelos petiscos em geral, pelo pão e pelas meninas. Havia o vinho!
O vinho que acompanhava os petiscos, servido na estalagem, era novo e especial. Nunca ninguém tinha provado nada assim. Palhete, apaladado e com gás natural, e razoavelmente graduado. Todos se perguntavam onde eles o arranjavam, já que ninguém sabia como e onde se fazia.
Moullet fazia segredo da origem do vinho. Alguns anos antes, quando viera com Soult invadir Portugal, passaram por Trás-os-Montes, por uma terra perto de Vila Real. Lá, ele e Trippe vasculharam tudo à procura de vinho para servir o General, e não conseguiram encontrar. Desapontados, mas não convencidos, partiram para a terra seguinte, e para a seguinte, até que conseguiram encontrar o que pretendiam. Depois da derrota Francesa, Moullet resolveu fazer um passeio pelas terras por onde passaram anos antes e curioso pelo insólito caso que tinha presenciado, voltou à aldeia onde não havia vinho. Na primeira taberna onde entrou, provou o mais maravilhoso vinho que alguma vez bebera. Lá não se falava de outra coisa quando o assunto era a bebida. Tinham enganado os franceses, enterrando o vinho que tinham, e mais tarde, quando eles se foram embora, ao irem desenterrá-lo, descobriram que aquele tempo debaixo da terra tinha provocado que o normal vinho que eles sempre tinham conhecido se tivesse transformado numa bebida de excepção. Era o vinho de Boticas, que Moullet se propôs a comprar em quantidade, e que agora era servido na sua estalagem. Por ter sido enterrado, tinham passado a chamar-lhe “O Vinho dos Mortos”, e assim se conservou esse nome até aos nossos dias.
Ao longo dos anos a popularidade da Estalagem das Francesinhas foi crescendo, bem assim como, a espaços, as barrigas das três meninas. A certa altura, eram já dez os pimpolhos que por ali corriam e gritavam em brincadeiras continuadas. Olhando para eles não se conseguia ver bem quem era filho de quem, já que eram todos muito parecidos uns com os outros, como se fossem todos gerados pelo mesmo pai e a mesma mãe. E, como é bom de ver, eram o orgulho daqueles cinco pais babados.
As comidas que serviam na estalagem foram ficando cada vez mais requintadas, sendo já procurados pelos seus nomes de guerra, e o vinho, único na região, vinha em carroças desde longe, ninguém sabia de onde.
Aos domingos faziam as refeições na sala grande, que tinha sido construída recentemente, e que albergava uma multidão. Também o número de quartos da estalagem tinha aumentado, por causa dos catraios, mas também pela procura de local onde dormir que tinha começado a haver. Muitos forasteiros paravam a descansar antes da sua entrada na cidade do Porto, aproveitando para saborear a boa comida e bebida lá servidas.
Para além do Vinho dos Mortos, havia dois tipos de refeição que eram servidos constantemente e que ainda hoje, nos nossos dias, existem espalhados agora por tudo quanto é local.
Um ostentava e ainda tem o nome do seu inventor. Trippe sabendo da predilecção dos portuenses pela dobrada, preferência existente desde a época dos descobrimentos, usou os seus conhecimentos culinários e reinventou a maneira de a confeccionar, misturando molhos usados na sua terra natal e feijão às entranhas das vitelas, transformando um prato que já de si era bom, numa iguaria gastronómica digna de Reis. Ao longo dos anos, deixou de se chamar Dobrada à Trippe, e passou a chamar-se simplesmente tripas, Tripas à Moda do Porto, sobrevivendo com esse nome até à presente data, sendo hoje em dia uma delicia procurada por pessoas de todo o mundo.
Outro, foi desde o princípio conotado com as meninas da Estalagem. Usava-se em França, naquela altura, uma sandes feita com carnes e enchidos e também com queijo, dentro de um pão. Moullet decidiu pedir a Trippe que a fizesse usando para tal o pão mais conhecido que ele fazia, o molete (também este, o molete, tal como o vinho dos mortos e as tripas, sobreviveu ao tempo e ainda hoje, na região do Porto, se chama assim a este tipo de pão). O seu amigo e cozinheiro assim fez mudando a forma de apresentação, retirando o queijo de dentro do pão e colocando-o por cima deste regando-o depois com um molho muito quente que só ele sabia fazer. A sandes era de tal modo boa, que começou a ser conhecida por francesinha, em honra das meninas da estalagem, e procurada diariamente pela população da cidade.
Com o passar dos anos, com a morte das meninas de Moullet e de Trippe, com o casamento dos seus filhos com os naturais da cidade e com o desinteresse dos herdeiros deles pelas coisas da culinária e pelos pergaminhos que ostentavam, o segredo desta sandes desapareceu, regressando nos anos cinquenta do século passado, pelas mãos de um ex-emigrante em França, na altura empregado de um famoso restaurante do centro do Porto, que sabendo desta história, ou talvez não, decidiu recriar, quase cem anos depois, a famosa sandes, dando-lhe o nome por que ela fora conhecida, e usando os mesmos ingredientes usados na sandes do século dezanove, regando-a com um molho cuja confecção tinha aprendido nos tempos em que viveu e trabalhou em Paris.
Ficaram assim perpetuadas as Francesinhas e a sua vinda para Portugal, bem assim como uma série de grandes acontecimentos que marcaram a vida da região do Porto e que tiveram origem na segunda invasão Francesa ao nosso País.
FIM
Obs – Conto publicado em Junho de 2017 no meu livro “COMO SE FORA UM CONTO”

“Si non e vero e ben trovato”.
Abraço
Pura ficção baseada na História.
Deu-me muito gozo escrevê-la.
Abraço
lol boa invenção lol boa história e vivam as Francesinhas… eu casei com uma nascida em Vichy, por acaso (mas portuguesa). Belo conto