Espuma dos dias — “Os meios de comunicação social e as mentiras sem verdade”, por Giorgio Agamben

Nota de editor: agradeço a António Oliveira que no seu artigo “da causalidade e novos caminhos” chamou a atenção para este texto de Giorgio Agamben.

FT

Seleção e tradução de Francisco Tavares

2 min de leitura

Os meios de comunicação social e as mentiras sem verdade

 Por Giorgio Agamben

Publicado por  em 3 de Julho de 2023 (original aqui)

 

Existem vários tipos de mentiras. A forma mais comum é a daqueles que, apesar de saberem ou acreditarem que sabem como são as coisas, por alguma razão conscientemente dizem o contrário ou pelo menos parcialmente negam o que sabem ser verdade. É o que acontece no falso testemunho, que por isso é punido como crime, mas também de forma mais inocente sempre que temos de justificar um comportamento que nos é reprovado.

A mentira com que lidamos há quase três anos não tem esta forma. É, antes, a mentira de quem perdeu a distinção entre palavras e coisas, entre notícias e factos e, por isso, já não sabe se está a mentir, porque para ele todos os critérios possíveis de verdade falharam. O que os meios de comunicação dizem não é verdade porque corresponde à realidade, mas porque o seu discurso substituiu a realidade. A correspondência entre a linguagem e o mundo, sobre a qual a verdade se baseou, simplesmente não é mais possível, porque os dois se tornaram um, a linguagem é o mundo, a notícia é a realidade. Só isso pode explicar por que a mentira não precisa ser tornada plausível e não esconde de forma alguma o que para aqueles que ainda aderem ao antigo regime da verdade parece ser uma mentira óbvia.

Assim, durante a pandemia, os meios de comunicação social e os organismos oficiais nunca negaram que os dados de mortalidade que declararam se referissem àqueles que morreram com resultados positivos, independentemente da causa real da morte. Apesar disso, embora evidentemente falsas, foram aceites como verdadeiras.

Da mesma forma, hoje ninguém nega que a Rússia conquistou e anexou vinte por cento do território ucraniano, sem o qual a economia ucraniana não consegue sobreviver; e, no entanto, as notícias apenas falam da vitória de Zelenski e da agora inevitável derrota de Putin (nas notícias, a guerra é entre duas pessoas e não entre dois exércitos).

O problema é, neste momento, quanto tempo essa mentira pode durar. É provável que, mais cedo ou mais tarde, seja simplesmente abandonado, para substituí–la imediatamente por uma nova mentira, e assim por diante – mas não infinitamente, porque a realidade que já não se queria ver acabará por se apresentar para exigir as suas razões, mesmo que ao preço de catástrofes e infortúnios não indiferentes, que serão difíceis, se não impossíveis de evitar.

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O autor: Giorgio Agamben [1942 -] é um filósofo italiano. Na sua obra confluem estudos literários linguísticos, estéticos e políticos, sob a determinação filosófica de investigar a presente situação metafísica no Ocidente e a sua possível saída. Licenciado pela Universidade de Roma. Para mais detalhes ver wikipedia aqui.

 

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