Espuma dos dias — Médio Oriente, no fio da navalha com a mobilização militar dos EUA, China e outros países pela guerra de Gaza, por Juan Antonio Sanz

Seleção e tradução de Francisco Tavares

7 min de leitura

Médio Oriente, no fio da navalha com a mobilização militar dos EUA, China e outros países pela guerra de Gaza

 Por Juan Antonio Sanz

Publicado por .es em 23 de Outubro de 2023 (original aqui)

 

Veículos de combate militares e tanques israelitas cerca da fronteira entre Gaza e Israel, a 14 de outubro de 2023. – Ilia Yefimovich / EUROPA PRESS

 

Podem os EUA lidar com duas guerras ao mesmo tempo? A sua implantação militar no Médio Oriente e o apoio multimilionário à Ucrânia e Israel sugerem isso. Mas nem todos parecem dispostos a aceitá-lo.

 

O fracasso da cimeira de paz do Cairo no sábado deixou caminho livre às mútuas ameaças e ao envio de forças para o Médio Oriente por todos os países com interesses na região. Estados Unidos, Rússia, China e Irão movem as suas fichas num jogo cada vez mais perigoso.

Nessa cimeira, na qual participaram no sábado passado representantes do mundo árabe, Europa e outras regiões do mundo [N.T. e contou também com a participação do SG da ONU, António Guterres], não foi assinada uma declaração final e nela ficaram em evidência as diferentes posições entre os países árabes e o Ocidente sobre o Médio Oriente. Nem Israel nem os EUA enviaram representantes seus ao Egito.

Desde o dia 7 de outubro passado, quando ocorreu o ataque das milícias do Hamas contra território israelita, a guerra entre Israel e esse grupo islamita palestiniano cobrou um altíssimo preço. Mais de 1.400 israelitas morreram nesse massacre desencadeado pelo Hamas. A vingança lançada por Israel sobre a faixa de Gaza deixou nada menos que 5.000 mortos, entre eles 2.000 crianças.

A guerra está apenas a começar. Israel mobilizou centenas de milhares de soldados nos limites de Gaza dispostos a entrar na Faixa e os combates já se estenderam ao outro território palestiniano, a Cisjordânia, e ao Líbano.

No sul do Líbano, o exército israelita está a devolver redobrados os ataques que desse país está a lançar o Hezbollah, uma milícia xiita aliada do Hamas e patrocinada pelo Irão, o grande inimigo de Israel.

Enquanto os países árabes condenam diplomaticamente e com manifestações a desproporção da vingança israelita, que sofre sobretudo a população palestina, o governo dos Aiatolás iranianos move-se na sombra e incita contra Israel os seus aliados do Hezbollah no Líbano, que sofre uma escalada de violência que não se via desde 2006.

Por enquanto, essa extensão do conflito entre Israel e Gaza afeta apenas os territórios imediatos. No entanto, a desestabilização provocada por esta crise já mobilizou potências mais distantes que não estão dispostas a que o Médio Oriente expluda num caos de sangue.

 

Os EUA aceleram os seus preparativos para uma nova guerra

Na semana passada, os Estados Unidos vetaram a resolução apresentada pelo Brasil no Conselho de segurança da ONU para declarar “pausas humanitárias” nos combates em Gaza. A resolução também condenava os ataques a civis por ambas as partes em conflito, Israel e Hamas.

Doze dos quinze membros do Conselho apoiaram a resolução, A Rússia e o Reino Unido abstiveram-se e os EUA impuseram o seu veto como membro permanente deste órgão das Nações Unidas. A própria União Europeia mostrou a sua distância com o seu aliado americano nesta crise de Gaza e reclamou também essas “pausas humanitárias”.

Enquanto ao presidente Biden lhe escrevem os seus discursos repletos de palavras de moderação e paz, as ações exteriores do seu país impedem qualquer desentendimento com a estratégia belicista do seu aliado Israel e apostam sem disfarces na mobilização militar.

Estes dias estamos a testemunhar os movimentos no tabuleiro do Médio Oriente por parte dos Estados Unidos, Irão, Rússia e inclusive China, até agora simples observador de longe do que ocorre numa região chave para a sobrevivência das economias asiáticas.

Os EUA já enviaram duas frotas para as costas de Israel, comandadas por dois porta-aviões e com dezenas de aviões de combate e vários milhares de fuzileiros navais. Além disso, comprometeu 14.300 milhões de dólares em armas a Telavive e assegurou que aumentará, se possível, a sua presença militar na região, com sistemas antiaéreos e mísseis.

Aos dois porta-aviões americanos despachados para o Médio Oriente, o Gerald R. Ford (o mais avançado na sua classe da frota dos EUA) e o Dwight D. Eisenhower, somou-se o envio ao Mediterrâneo Oriental do Mount Whitney, navio almirante da Sexta frota dos Estados Unidos.

Há poucos dias, um dos navios americanos destacados na região, o contratorpedeiro Carney, interceptou e neutralizou uma saraivada de mísseis de cruzeiro lançados do Iémen pelas milícias Huties aliadas do Irão. Este ataque, muito fora do comum, mostrou o grau de tensão no Médio Oriente e o altíssimo risco de uma extensão da guerra de Israel contra o Hamas.

Nos EUA já se ouve a pergunta mais incómoda: poderia Washington lidar com duas guerras, na Ucrânia e no Médio Oriente, ao mesmo tempo? Porque se Biden prometeu a Israel essa portentosa soma em armas e assistência militar, o montante oferecido à Ucrânia passa dos 61.000 milhões de dólares, independentemente do que já foi enviado pelos Estados Unidos.

 

Os EUA podem lidar com duas guerras ao mesmo tempo, mas não devem

Os EUA têm o potencial para manter duas guerras e participar diretamente numa delas. Mas não se pode permitir esse custo económico nestes momentos de instabilidade financeira internacional e com as eleições presidenciais a um ano de distância.

A estratégia da Administração Biden na guerra da Ucrânia está a despertar crescentes críticas no Congresso estado-unidense, sobretudo no lado republicano, reticente quanto a continuar a entregar tanto material militar a Kiev para lutar contra a Rússia.

A guerra de Israel contra o Hamas conta, por outro lado, com quase todas as simpatias na classe política americana e os grupos de pressão judeus são muito fortes no mundo empresarial e jornalístico dos EUA.

Mas a administração do presidente Biden não pode deixar a Ucrânia em apuros como já fez com governos amigos no Afeganistão, Iraque e, inclusive, no Vietname. As enormes somas prometidas na semana passada a Kiev mostram que a vontade da Casa Branca é continuar no vespeiro ucraniano. A menos que fosse necessário concentrar todos os recursos numa guerra em grande escala no Médio Oriente.

 

China também mostra a sua força naval no Golfo Pérsico

A China enviou ao Golfo Pérsico meia dúzia de navios de guerra que participavam em manobras com Omã. Entre esses navios, envolvidos em tarefas de escolta no Oceano Índico, há um contratorpedeiro dotado de mísseis e uma fragata.

O enviado especial de Pequim à região, Zhai Jun, qualificou nesta segunda-feira a situação em Gaza como “muito grave” e destacou o risco de uma escalada regional do conflito, com evidentes sinais desta extensão já no Líbano e na Síria, após os recentes bombardeamentos israelitas de aeroportos sírios.

A chegada de navios chineses à área não passa de anedótica quanto à sua capacidade de fogo. Mas Pequim não tem interesse algum numa guerra no Médio Oriente e sim em lançar um aviso contra o obstrucionismo bélico de Washington.

A China teme que um conflito maior afete o seu abastecimento principal de petróleo num momento muito complicado para a economia do gigante asiático. Por isso, insistiu desde que começou a guerra entre Israel e Hamas em levar o conflito à mesa das negociações. Para isso, a China uniu as suas reivindicações por um fim das hostilidades às reivindicações russas nesse sentido.

 

Moscovo reforça as suas posições na Síria

Mas a Rússia também não fica quieta à espera de que alguém pense em dialogar. Por enquanto, reforçou o seu apoio ao regime sírio, outro inimigo jurado de Israel. Moscovo apoiou o presidente da Síria, Bashar al-Assad, na guerra civil declarada neste país árabe em 2015 e ali combateu depois o Estado Islâmico lado a lado com os paramilitares iranianos, o Hezbollah e inclusive o Hamas.

Fruto do pragmatismo russo e israelita, apesar de tudo isso, as relações entre Moscou e Telavive não se deterioraram. É agora que as coisas podem dar para o torto.

Além da base aérea de Hmeimim, o exército do Kremlin controla na Síria as instalações de Tartus, o único porto militar russo no Mediterrâneo. Um lugar estratégico como poucos.

 

Irão, a faísca que pode explodir o barril de pólvora do Médio Oriente

A chave para uma possível extensão do conflito entre Israel e Hamas está no Irão, possível conhecedor ou coparticipante dos massacres de 7 de outubro. Não é segredo que Teerão apoia os ataques do Hezbollah no sul do Líbano e espera apenas que o exército israelita invada Gaza para apoiar uma ofensiva da milícia xiita contra o norte de Israel.

Esta é uma das razões que estão a travar a invasão de Gaza por Israel. O potencial bélico do Hezbollah é muito superior ao do Hamas, com dezenas de milhares de milicianos e milhares de foguetes e mísseis. Além disso, o seu reabastecimento da Síria e do Irão estaria garantido. Israel ficaria preso numa tenaz e o risco de o próprio Irão entrar diretamente na guerra é muito elevado.

O Irão é também o inimigo jurado dos Estados Unidos no Médio Oriente e para confrontar a superpotência dispõe do chamado “Eixo de resistência”, que engloba numerosos grupos islamitas, como o próprio Hezbollah e Hamas, prontos para atacar os interesses americanos na região.

Uma eventual passividade de Teerão ante a invasão de Gaza retirar-lhe-ia toda a credibilidade perante estes combatentes. No entanto, os Aiatolás não esquecem algo muito importante em face de um confronto direto: Israel tem armas atómicas.

 

A guerra no Médio Oriente, algo mais que uma possibilidade

“Estamos diante da perspectiva de uma potencial escalada de ataques contra as nossas tropas e a nossa gente na região”, afirmou neste domingo o secretário de Defesa americano, Lloyd Austin, em entrevista à rede ABC.

Os EUA vão fazer “o necessário “para garantir que as forças americanas no Médio Oriente” estejam protegidas e preparadas para responder “a tais ataques. “Mantemos nosso direito de nos defender e tomaremos as ações apropriadas para isso”, disse.

 

__________

O autor: Juan Antonio Sanz [1966-], é um jornalista espanhol, independente. É especializado em temas internacionais com a maior parte de sua carreira profissional desenvolvida no exterior, na Rússia e na ex-União Soviética (especialmente Ásia Central e Cáucaso), Coreia do Sul, Japão, Uruguai, Bolívia e Cuba. Além disso, exerceu como comunicador no âmbito da cooperação internacional e deu aulas de jornalismo e comunicação na Universidade Católica San Pablo de La Paz e no Estado-Maior do exército boliviano sobre Inteligência estratégica. Autor do livro ” Vampiros, príncipes do abismo. Crônicas de vampiros, nosferatus e outros mortos-vivos”, Editorial Almuzara 2020.

 

Leave a Reply