Espuma dos dias — Será que o Escorpião picará a Rã estado-unidense?  Por Alastair Crooke

Seleção e tradução de Francisco Tavares

8 min de leitura

Será que o Escorpião picará a Rã estado-unidense?

 Por Alastair Crooke

Publicado por em 20 de Novembro de 2023 (original aqui)

 

Foto: media

 

Netanyahu está a preparar o terreno para aprisionar o Governo Biden, manobrando para que os EUA não tenham outra escolha a não ser juntarem-se a Israel.

 

A alegoria é aquela em que um escorpião depende da rã para a sua passagem através de um rio inundado, apanhando uma boleia nas costas da rã. A rã desconfia do escorpião; mas relutantemente concorda. Durante a travessia, o escorpião pica fatalmente a rã nadando no rio, sob o escorpião. Ambos morrem.

É um conto da antiguidade destinado a ilustrar a natureza da tragédia. Uma tragédia grega é aquela em que a crise que está no cerne de qualquer tragédia não surge por puro infortúnio. O sentido grego é que a tragédia é onde algo acontece porque tem de acontecer; devido à natureza dos participantes; porque os actores envolvidos a fazem acontecer. E não têm outra escolha senão fazê-la acontecer, porque essa é a sua natureza.

É uma história que foi utilizada por um ex-diplomata israelita, bem versado na política dos EUA. A sua narração da fábula da rã faz com que os líderes de Israel se defendam desesperadamente da responsabilidade pelo desastre de 7 de Outubro, com um gabinete a tentar furiosamente transformar a crise (psicologicamente) de um desastre culposo, para apresentar ao público israelita, em vez disso, uma imagem de oportunidade épica.

A quimera que está a ser apresentada é aquela que, remontando à ideologia sionista mais antiga, Israel pode transformar a catástrofe em Gaza – como o Ministro das Finanças Smotrich argumentou durante muito tempo – numa solução que de uma vez por todas resolve unilateralmente a contradição inerente entre as aspirações judaicas e palestinianas – acabando com a ilusão de que qualquer tipo de compromisso, reconciliação ou partição é possível.

Esta é a potencial picada de escorpião: o gabinete israelita apostando tudo numa estratégia extremamente arriscada – uma nova Nakba – que poderia atrair Israel para um grande conflito, mas ao fazê-lo também afundar o que resta do prestígio Ocidental.

É claro que, como sublinha o ex–diplomata israelita, este estratagema é essencialmente construído em torno da ambição pessoal de Netanyahu – ele manobra para aliviar as críticas e permanecer no poder o máximo que puder. Mais importante ainda, ele espera que isso lhe permita espalhar a culpa, eliminando toda e qualquer responsabilidade e prestação de contas de si mesmo. [Melhor ainda], “pode colocar Gaza num contexto histórico e épico como um evento que pode tornar o primeiro-ministro um líder formativo de grandeza e glória em tempos de guerra”.

Rebuscado? Não necessariamente.

Netanyahu pode estar a retorcer-se politicamente para sobreviver, mas ele também é um verdadeiro ‘crente’. No seu livro, Going to the Wars, o historiador Max Hastings escreve que Netanyahu lhe disse na década de 1970 que, “na próxima guerra, se o fizermos bem, teremos a chance de sacar todos os árabes … podemos limpar a Cisjordânia, resolver Jerusalém.”

E o que pensa o gabinete israelita sobre a ‘próxima guerra’? Pensa o Hezbollah. Como observou recentemente um ministro, ‘depois do Hamas, voltaremos a tratar do Hezbollah’.

É precisamente a confluência de uma longa guerra em Gaza (ao longo das linhas estabelecidas em 2006), e uma liderança israelita aparentemente com a intenção de provocar o Hezbollah para uma escalada, que está a fazer piscar luzes vermelhas no interior da Casa Branca, de acordo com o ex-diplomata israelita.

Na guerra de 2006 com o Hezbollah, todo o subúrbio urbano povoado de Beirute – Dahiya – foi destruído. O General Eizenkot (que comandou as forças israelitas durante essa guerra e é agora membro do ‘Gabinete de guerra’ de Netanyahu) disse em 2008: “o que aconteceu no bairro Dahiya de Beirute em 2006 acontecerá em todas as aldeias a partir das quais Israel é alvejado … do nosso ponto de vista, estas não são aldeias civis, são bases militares … isto não é uma recomendação. Este é um plano. E foi aprovado.

Daí o tratamento que está a ser dado a Gaza.

Não é provável que o Gabinete de guerra israelita procure provocar uma invasão em larga escala de Israel pelo Hezbollah (o que representaria uma ameaça existencial); mas Netanyahu e o gabinete gostariam de ver a actual troca de tiros na fronteira norte aumentar até ao ponto em que os EUA se sentem compelidos a lançar alguns golpes de advertência sobre a infra-estrutura militar do Hezbollah.

Com as FDI já a atingirem 40 km de profundidade no Líbano contra civis (um carro com uma avó e as suas três sobrinhas foi incinerado na semana passada por um míssil das FDI), a preocupação dos EUA com a escalada é real.

É isso que preocupa a Casa Branca, diz o diplomata. O Irão confirma que recebeu nada menos que três mensagens dos EUA dentro de um dia dizendo a Teerão que os EUA não estão buscando guerra com o Irão. E um enviado americano, Amos Hochstein, tem estado a fazer rondas em Beirute, insistindo que o Hezbollah não deve escalar em resposta aos ataques transfronteiriços israelitas.

“A relutância de Netanyahu em enunciar quaisquer ideias sobre o ‘dia seguinte’ em Gaza – e os grandes e ameaçadores desenvolvimentos de escalada no Líbano – estão a criar um fosso entre as políticas dos EUA e de Israel, a ponto de alguns membros da Administração Biden e do Congresso começarem a pensar que Netanyahu está a tentar arrastar os americanos para uma guerra com o Irão”.

“[Netanyahu] ‘não está interessado numa segunda frente no norte com o Hezbollah”, diz o ex-funcionário, acrescentando, no entanto, que eles [na Casa Branca] acreditam que um ataque dos EUA contra as provocações do Irão potencialmente transformaria o abjeto desastre de Netanyahu em algum tipo de triunfo estratégico”.

“Essa é a mesma lógica complicada que o guiou quando encorajou a sua alma gémea, o então presidente Donald Trump, a retirar-se unilateralmente do acordo nuclear com o Irão em maio de 2018. Essa foi também a lógica subjacente à sua audição no Congresso de 2002, encorajando os americanos a invadir o Iraque, porque “estabilizaria a região” e “repercutiria” para o Irão”.

Estes receios estão no cerne da ‘tragédia’ que ‘tem de acontecer’ – a rã concordou muito cautelosamente em carregar o escorpião na travessia do rio, mas quer uma garantia de que, dada a natureza do escorpião, não picará o seu benfeitor.

A equipa Biden, da mesma forma, não confia em Netanyahu. Ele não quer ‘ser picado’ por ser arrastado para o atoleiro de uma guerra com o Irão.

O aguilhão é palpável: o gabinete de Netanyahu está gradual e deliberadamente a preparar o terreno para o aprisionamento da Administração Biden, manobrando para que Washington não tenha outra escolha a não ser juntar-se a Israel, se a guerra se alargar.

Como em todas as tragédias clássicas, o resultado surge porque os actores envolvidos o fazem acontecer; eles não têm outra escolha, senão fazê-lo acontecer, porque essa é a sua natureza. “Não só o primeiro-ministro israelita rejeita qualquer ideia ou pedido vindo de Washington; Netanyahu quer explicitamente que a guerra de Gaza continue indefinidamente sem qualquer corolário político”, refere o ex-funcionário.

Considere também a posição explícita de Jake Sullivan das linhas vermelhas dos EUA: nenhuma reocupação de Gaza; nenhum deslocamento da sua população; nenhuma redução do seu território; nenhuma desconexão política com as autoridades da Cisjordânia; nenhuma tomada de decisão alternativa, à excepção dos palestinos – e não voltar ao status quo anterior.

Netanyahu simplesmente rejeita todas essas “linhas” [vermelhas] numa única frase: Israel, disse ele, supervisionaria e manteria “responsabilidade geral de segurança” por um período indefinido de tempo. De uma só vez, ele mina o final de jogo identificado pelos EUA, deixando-o pendurado nos ventos frios do sentimento global e doméstico cada vez mais antipático, e as areias da ampulheta que se vão esgotando.

O ‘fim do jogo’ de Smotrich é evidente: Netanyahu está a construir um apoio interno popular para um novo ultimato silencioso para Gaza: “emigração ou aniquilação”. Este é um anátema para a equipa Biden. As décadas de diplomacia da América no Médio Oriente ‘estão a afundar-se’.

Washington observa com crescente inquietação a ‘escalada militar horizontal’ em toda a região e pergunta-se se Israel sobreviverá a este aperto. No entanto, os EUA têm apenas meios e tempo limitados para restringir Israel.

O apoio imediato de Biden a Israel está a criar turbulência interna e a implicar um preço político que – com as eleições um ano de distância – tem consequências. Talvez fosse ‘da natureza de Biden’ que ele acreditasse que poderia’ abraçar Israel em conformidade com os interesses dos EUA. No entanto, não está a funcionar – deixando-o preso com um escorpião nas costas.

Alguns defendem que a solução é simples: ameaçar cortar o fornecimento de munições ou o financiamento que está a fluir para Israel. Parece simples. Constituiria uma poderosa ‘ameaça’; mas para que isso acontecesse, seria necessário que Biden confrontasse o todo-poderoso ‘lobby’ e a sua forte influência sobre o Congresso. E este não é um concurso que ele provavelmente venceria. O Congresso está firmemente com Israel.

Alguns sugerem que uma resolução no Conselho de Segurança das Nações Unidas poderia impor ‘um fim ao pesadelo de Gaza’. Mas Israel tem um longo historial de simplesmente ignorar tais resoluções (de 1967 a 1989, o Conselho de segurança da ONU adotou 131 resoluções que abordam diretamente o conflito árabe–israelita, a maioria das quais teve pouco ou nenhum impacto). Na quarta-feira desta semana, o CSNU aprovou uma resolução pedindo pausas humanitárias. Os EUA abstiveram-se e, muito provavelmente, a resolução será ignorada.

Será que um apelo mundial para uma solução de dois estados poderia ser melhor? Não foi até agora. Sim, teoricamente, o CSNU pode exigir uma resolução, mas o Congresso dos EUA ‘enlouqueceria’ se o fizesse, e ameaçaria impor a força a qualquer pessoa que tentasse implementá-lo.

No entanto, sem rodeios, a retórica de dois estados não faz sentido: não é apenas o mundo islâmico que está a passar por uma irada transformação popular irada – também o está Israel. Os israelitas estão furiosos e apaixonados e, com uma esmagadora maioria, aprovam a aniquilação em Gaza.

A contextualização de Netanyahu da guerra de Gaza em termos maniqueístas absolutos – luz versus escuridão; civilização versus barbárie; Gaza como sede do mal; todos os habitantes de Gaza cúmplices do diabo Hamas; palestinos como não humanos – tudo isso está a agitar as emoções israelitas e as memórias de uma ideologia ao estilo de 1948.

E isso não se limita à direita – o sentimento popular em Israel está a mudar de liberal-secular, para bíblico-escatológico.

A presidente do Conselho Executivo da B’Tselem, Orly Noy, escreveu um artigo – O público israelita abraçou a doutrina Smotrich – que sublinha como a internalização do ‘Plano decisivo’ de Smotrich se manifesta no apoio popular à política de ‘emigração ou aniquilação’ de Israel em Gaza:

“Há seis anos, Bezalel Smotrich, então um jovem membro do Knesset no seu primeiro mandato, publicou seu pensamento de um fim de jogo para o conflito israelo-palestiniano … em vez de manter a ilusão de que um acordo político é possível, argumentou ele, a questão deve ser resolvida unilateralmente de uma vez por todas.

[A solução que Smotrich propôs foi oferecer] “aos 3 milhões de residentes palestinianos uma escolha: renunciar às suas aspirações nacionais e continuar a viver nas suas terras com um estatuto inferior, ou emigrar para o estrangeiro. Se, em vez disso, optarem por pegar em armas contra Israel, serão identificados como terroristas e o exército israelita começará a “matar aqueles que precisam de ser mortos”. Quando perguntado uma reunião, na qual ele apresentou o seu plano a figuras religiosas-sionistas, se ele também queria dizer matar famílias, mulheres e crianças, Smotrich respondeu: “Na guerra como na guerra””.

Orly Noy argumenta que este pensamento não se limita simplesmente ao gabinete ou à direita israelita – pelo contrário, tornou-se dominante. A comunicação social e o discurso político israelitas mostram que, quando se trata do actual ataque das FDI a Gaza, grande parte do público israelita internalizou completamente a lógica do pensamento de Smotrich.

“De facto, a opinião pública israelita sobre Gaza, onde a visão de Smotrich está a ser implementada com uma crueldade que nem ele pode ter previsto, é agora ainda mais extrema do que o texto do próprio plano. Isso porque, na prática, Israel está a retirar da agenda a primeira possibilidade da oferta — de uma existência inferior, des-palestiniana — que até 7 de outubro era a opção escolhida pela maioria dos israelitas”.

A implicação para esta ‘Smotrichização’ do público é que Israel – no seu conjunto – está a tornar-se radicalmente alérgico à existência de qualquer forma de Estado Palestiniano. O público, observa ela, passou agora a ver a recusa dos palestinianos em submeter–se ao poder dos militares israelitas como uma ameaça existencial em si mesma – e razão suficiente para a sua deslocalização.

 

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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

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