Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homenagem ao Joaquim Feio — Capítulo 1 – Parte A: Texto 3 – Os preços de equilíbrio nas trocas interiores (2/2),  por Arghiri Emmanuel

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 1 – Dos Clássicos a Sraffa, de Sraffa aos neo-ricardianos

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

22 min de leitura

Parte A: Texto 3 – Os preços de equilíbrio nas trocas interiores (*) (2/2)

 Por Arghiri Emmanuel

Extrato da obra “A troca desigual” (Edição Estampa, abril de 1976)

Obra original, “L’échange inégal: essai sur les antagonismes dans les rapports économiques internationaux” (Editions François Maspero, 1969)


Nota de editor: dada a extensão do presente texto, o mesmo é publicado em duas partes – hoje a segunda parte


 

III. Economia capitalista – Vários fatores

 

1. Mobilidade do segundo fator – Perequação dos lucros

Até aqui pressupusemos a existência de um único fator, concorrente e homogéneo. Nestas condições, é perfeitamente indiferente que o valor de troca se meça pela quantidade do fator ou pela sua remuneração. Dado que a concorrência interna do fator (mobilidade) implica a perequação das suas remunerações, é evidente que ambos os métodos conduzem a resultados perfeitamente idênticos. Uma vez que todos os trabalhos específicos tenham sido convertidos em trabalho simples e geral, a relação das quantidades de trabalho despendidas na produção e duas mercadorias diferentes iguala a relação das remunerações dos dois produtores. E é esta a razão pela qual, neste caso, a teoria do valor-trabalho e a dos custos de produção se confundem, e nós próprios não fizemos entre elas qualquer distinção na secção precedente.

Por outro lado, na hipótese da existência de um fator único, isto e, de uma só categoria de direitos na partilha do produto social, o sentido da determinação não oferece qualquer controvérsia. Ele deriva diretamente da. definição deste fator. Com efeito, se este fator for homogéneo e concorrente, a sua remuneração deve tender a ser igual em todos os sectores da produção. E ela só pode ser igual se as mercadorias se trocarem na proporção da quantidade deste fator socialmente necessário para as produzir.

As coisas mudam essencialmente quando passamos da produção mercantil simples para a produção capitalista, em que o instrumento passa a estar separado do produtor e em que aparece uma segunda categoria de atores com direitos sobre a partilha da produção: os detentores dos capitais.

Segundo a nossa definição, e abstraindo de momento da renda e dos impostos, temos presentemente dois fatores, o trabalho e o capital [21]. Se o primeiro só se torna homogéneo pela redução do trabalho complexo a trabalho simples, do trabalho concreto a trabalho abstrato, o segundo é direta e perfeitamente homogéneo, pois que é, pela sua natureza, sempre abstrato. [22]

Como tal, o capital é por si mesmo e salvo obstáculos exteriores, perfeitamente homogéneo e concorrente. No interior da nação tais obstáculos não existem em princípio e os economistas estão geralmente de acordo sobre este ponto, mesmo que se encontrem em oposição quando se trata de reconhecer a mesma mobilidade no plano internacional [23] .

Tal, como para o fator trabalho, esta mobilidade implica que a remuneração da unidade de capital seja idêntica em todas as suas aplicações. Isso significa que a taxa de lucro de equilíbrio, que constitui o eixo de oscilação da taxa de lucro real, deve ser igual em todos os ramos. Qualquer diferença para mais ou para menos da taxa de lucro real provoca movimentos de capitais à procura do máximo lucro, movimentos que tendem a restaurar o equilíbrio.[24]

 

2. Conjunção desigual dos dois fatores

Se em todos os ramos a intervenção deste direito do capital fosse proporcional a quantidade de trabalho despendido para cada produção, o facto da remuneração deste direito a uma taxa única não teria qualquer influência sobre os valores de troca das mercadorias, tal como estes se estabelecem segundo as respetivas quantidades de trabalho nelas incorporadas [25].

Esta verificação é independente da própria natureza deste direito e da sua remuneração. Que o lucro seja uma parte da riqueza criada pelo trabalhador ou que seja algo acrescentado pela circulação das mercadorias, que represente uma mais-valia criada pelo trabalhador para além do valor da sua força de trabalho, ou que, seja subtraído ao próprio valor da sua força de trabalho, que seja a justa remuneração de um serviço produtor ou um tributo pago por aqueles que trabalham àqueles que detêm um direito exclusivo sobre os meios e as condições do trabalho, nada disso altera o facto atrás citado, isto é, que se a conjunção dos dois fatores for igual, a remuneração do capital, de onde quer que provenha, não modifica em nada o valor de troca dos produtos.

Suponhamos que uma unidade de A contém 10 horas de trabalho e uma unidade de B, 20 horas. Nas condições da economia mercantil pré-capitalista trocam-se 2 unidades de A por uma unidade de B. Continuarão a trocar-se às mesmas taxas, após a introdução das relações capitalistas se, e somente se, sendo o lucro por unidade de capital idêntico em todos os ramos, a quantidade de capital consagrada a cada um destes ramos for proporcional à quantidade de trabalho.

Assim, no nosso exemplo, se a taxa geral de lucro é de 10 por cento e se o capital intervém à razão de 5 unidades por hora de trabalho, será necessário contar no ramo A um lucro equivalente a 5 horas de trabalho e no ramo B a 10 horas. Que este lucro seja subtraído a remuneração pertencente ao trabalhador, ou: que seja acrescentado, é evidente que a relação 2 A = 1 B não se altera.

Mas a conjugação dos dois fatores não é igual em todos os ramos. A importância do instrumento de produção não é idêntica em todas as produções. Torna-se evidente que se os produtos fossem trocados hora de trabalho por hora de trabalho, os dois interessados não poderiam continuar a ser remunerados a uma taxa única válida para todos os ramos.

No nosso exemplo atrás citado, se no ramo A o capital intervém à razão de 10 unidades por hora de trabalho, e no ramo B à razão de 5 unidades por hora de trabalho, e se trocarmos 2 A por 1 B, teremos que repartir em cada um dos ramos o mesmo valor de 20 horas, mas no ramo A este valor terá de ser partilhado por trabalhadores que trabalharam 20 horas e capitalistas que contribuíram com 200 unidades de capital, enquanto que no ramo B o mesmo valor devera ser partilhado pela mesma quantidade de trabalho, por um lado, e por 100 unidades de capital, por outro. Seria, portanto, necessário que quer a hora de trabalho, quer a unidade de capital, quer ambos, fossem remunerados a uma taxa diferente em A e em B, o que é contrário à nossa hipótese de mobilidade perfeita dos dois fatores. Logo, nas condições postas, a troca não poderá efetuar-se na base de 2 A = B. Com a introdução das relações capitalistas, a primitiva teoria do valor-trabalho chegava a um impasse, impondo-se uma modificação da forma original do valor.

 

3. Custos de produção

Neste ponto, o cálculo do valor de troca pelas quantidades respetivas dos fatores e o cálculo pelas remunerações respetivas dos fatores, pelos custos de produção, divergem e separam-se. Na verdade, o primeiro cálculo torna-se impossível, e nenhum valor de troca pode ser encontrado fora da remuneração dos fatores, dado que o único denominador comum entre os dois fatores, que torna mensurável a soma das suas quantidades, é a taxa da sua remuneração.

Como por outro lado nós supusemos a existência de dois únicos fatores, isto é, de apenas dois direitos estabelecidos sobre o produto social, é evidente que, conhecido este último, a taxa de remuneração de um só pode variar em razão inversa da taxa de remuneração do outro. E isso que faz com que, na hipótese de uma conjunção igual dos dois fatores em todas as produções, a variação destas taxas seja indiferente para o valor de troca dos produtos, e poderíamos limitar-nos sem problema à quantidade de qualquer deles à nossa vontade, logo à do trabalho. Mas sendo esta hipótese absolutamente irrealista e devendo ser imediatamente rejeitada, somos obrigados, a fim de levar em conta as quantidades dos fatores que se combinam em proporções diferentes nas diversas produções, de as ponderar através das respetivas taxas de remuneração.

Além disso, com a introdução das relações capitalistas de produção, a própria forca de trabalho, transforma-se numa mercadoria, para cujo prévio pagamento é necessário empregar uma determinada quantidade de capital. Resulta daí que a remuneração do fator trabalho não intervém apenas como elemento constitutivo primário do valor. Mas também como parte do capital total investido, sobre o qual deve ser calculada a remuneração do fator capital. Ela deve, por conseguinte, ser acrescentada ao multiplicando do lucro. Assim o valor de troca viria a ser a soma dos salários dos trabalhadores, mais o lucro sobre os meios de trabalho, mais o lucro sobre os salários. Ou, segundo a terminologia marxista, o capital variável mais o lucro sobre os dois tipos de capital, constante e variável [26].

Abstraímos aqui de um valor que se transfere tal qual para o valor do produto, independentemente da existência de um ou de vários fatores e da taxa de remuneração destes ou das suas variações: o dos produtos consumidos na produção e o do desgaste dos bens de equipamento. Trata-se de um elemento por assim dizer exógeno, que existia igualmente na economia mercantil pré-capitalista e que em nada influencia a formação do valor de troca segundo qualquer dos dois princípios enunciados. É preciso precavermo-nos desde já contra possíveis confusões. A remuneração do segundo fator, o lucro, não se encontra ligada ao desgaste, mas ao uso do capital.

 

4. A transformação do valor nos clássicos

A ideia de uma modificação do valor de troca na sequência da intervenção de um segundo fator foi francamente tratada pelos clássicos e inteiramente integrada na sua teoria.

No modo pragmático de A. Smith, ela encontra-se um pouco confusa e a sua formulação não é satisfatória. Está exposta no capítulo VI do I Livro da Richesse des Nations.

Smith verifica que o valor que os trabalhadores acrescentam aos materiais utilizados se divide em duas partes, destinando-se a primeira ao pagamento dos seus próprios salários, e cobrindo a segunda o lucro da entidade patronal sobre o “stock” inteiro (consumido e não consumido) dos materiais, e sobre os salários adiantados.

Observa seguidamente que o empresário não teria interesse em empregar mais capital por trabalhador se o seu lucro não fosse proporcional ao seu capital. E conclui além disso que o preço natural de uma mercadoria é justamente o necessário para pagar, às suas taxas naturais, a renda fundiária, o salário e o lucro do capital.

Mas não explica qual é a natureza e o sentido da divergência entre o valor de troca segundo a quantidade de trabalho, no caso de um só fator, e o valor de troca segundo as remunerações dos fatores, no caso de vários. Esta deficiência era inevitável num autor que, mesmo no caso da forma simples do valor-trabalho confundia constantemente a quantidade de trabalho necessária para produzir uma mercadoria, com a quantidade de trabalho contra a qual essa mercadoria podia ser trocada.

Na verdade, Smith não pode marcar convenientemente a passagem do valor de troca segundo a quantidade de trabalho ao valor de troca segundo os custos de produção, porque, na sua primeira forma, a sua teoria do valor-trabalho oscilava já entre os dois determinantes.

Esta oscilação, de resto, não é estranha à insuportável contradição em que cai ao declarar que o preço natural é composto da renda fundiária, do salário e do lucro, enquanto noutras partes da sua obra afirma categoricamente que os salários e o lucro são a causa do preço, ao passo que a renda apenas é uma consequência deste, ou que a renda fundiária natural é o excedente do preço sobre os custos de produção acrescidos do lucro habitual.

Ricardo, na sua maneira de raciocinar mais abstrata, é naturalmente mais coerente. A passagem da forma simples a forma desenvolvida do valor de troca dá-se entre a Secção III por um lado, e as Secções IV e V por outro, do primeiro capítulo dos seus Principles.

Mas ele aborda esta modificação dos valores de troca indiretamente por meio das flutuações de salários, verificando que, contrariamente ao que toda a gente até então pensava, uma elevação geral dos salários não provoca um aumento geral dos preços, mas sim uma baixa dos preços nos ramos em que a relação capital-trabalho é superior à média social, e um aumento nos ramos em que essa relação é inferior à média. Maravilhado com esta descoberta, detém-se sobretudo no seu aspeto mais sensacional. Estende-se longamente e com abundância de pormenores sobre o que ele próprio designa de ”novelty”, descurando os outros aspetos do problema e sobretudo a sua ligação com a perequação dos lucros.

Mas, no conjunto, o raciocínio de Ricardo é correto. Depois de se ter esmerado a demonstrar que o aumento ou a diminuição dos salários não tem qualquer influência sobre os valores, tendo como único efeito provocar uma variação do lucro em sentido inverso, explica seguidamente que o aumento dos salários faz aumentar o valor relativo dos produtos na produção dos quais intervém relativamente pouco capital- (ramos de baixa composição orgânica segundo a terminologia marxista, ou de fraca intensidade capitalista, segundo a terminologia moderna), e faz diminuir o valor relativo dos produtos de “elevada composição orgânica”. Uma diminuição dos salários provocaria o efeito exatamente contrário.

Esta contradição aparente explica-se pela diferença das hipóteses. Na terceira Secção Ricardo supõe que:

“os arcos e as flechas do caçador sejam de valor igual e de igual duração à piroga e aos instrumentos do pescador, sendo ambos o produto da mesma quantidade de trabalho. Nestas condições, o valor do veado… seria exatamente igual ao valor do peixe… seja qual for a taxa geral dos salários e dos lucros.”

Na quarta Secção considera a suposição contrária:

“Supusemos até aqui que os instrumentos e as armas necessárias para matar o veado e o salmão são igualmente duráveis e o resultado da mesma quantidade de trabalho… Mas em cada fase da evolução social os instrumentos de trabalho, edifícios e máquinas necessárias nos diferentes empregos podem ter uma duração diferente e necessitar, para serem produzidos, de diferentes quantidades de trabalho. Pode também acontecer que o capital destinado à subvenção do trabalho e aquele que é investido em instrumentos, edifícios e máquinas, estejam em diferentes proporções um em relação ao outro. Esta diferença no grau de durabilidade dos capitais fixos e esta multiplicidade das proporções que se podem combinar as duas espécies de capitais, criam a par da menor ou maior quantidade de trabalho necessária à produção das mercadorias, uma segunda causa de flutuação dos seus valores relativos. Esta causa é o aumento ou a diminuição do valor do trabalho. (Ler: salário)… 0 grau de modificação do valor relativo das mercadorias provocado por um aumento ou uma diminuição dos salários depende da relação entre o capital fixo e o total do capital empregado”.

E na quinta Secção:

“…qualquer aumento de salários, ou, o que vem a dar no mesmo, qualquer diminuição dos lucros, diminuiria o valor das mercadorias que são produzidas com um capital mais durável e aumentaria proporcionalmente o valor relativo das outras que são produzidas com um capital mais rapidamente consumível. Uma diminuição dos salários teria um efeito exatamente contrário”.

Esta última passagem explica-nos a razão pela qual Ricardo, em todos estes raciocínios, apenas nos fala de salários descurando os lucros. A partir do momento em que a perequação dos lucros é pressuposta, as variações da taxa geral de lucro têm necessariamente de acompanhar em sentido inverso as dos salários, dado que o lucro na ótica clássica é apenas um resíduo, isto é, é o que sobra da produção depois de assegurado aos trabalhadores o mínimo fisiológico de subsistência.

Ao mesmo tempo que a terceira edição (1821) dos Principles… de Ricardo, foi publicada a primeira edição dos Elements of Political Economy de James Mill: “o trabalho imediato e o trabalho acumulado não são pagos à mesma taxa, quer dizer, o preço de um não se eleva nem baixa ao mesmo tempo que o preço do outro. Estes dois trabalhos nem sempre contribuem na mesma proporção para a produção de todos os artigos. Logo, há uma diferença nos valores trocáveis sempre que se dá uma flutuação na taxa dos salários. 0 mesmo se passa no caso de flutuações diferenciais para cada qualidade de trabalho”.

Curiosamente, James Mill introduz aqui um novo fator de divergência que nenhum outro clássico parece ter assinalado: as flutuações diferenciais, não das remunerações respetivas dos dois fatores, mas da remuneração do mesmo fator (trabalho) ao longo do tempo. Aqui acontece um erro, pois que as flutuações dos salários do trabalho imediato repercutem-se no valor do trabalho acumulado, dado que não é o custo de produção do capital fixo (constante) que conta, mas sim o seu custo de reprodução.

Mas a seguir recupera este lapso, fazendo intervir a taxa de lucro, e a sua conclusão é correta: “quando os salários aumentam e os lucros baixam, é evidente que todos os artigos produzidos com uma menor porção de trabalho do que de capital baixarão de valor relativamente aos que são produzidos com uma maior porção do primeiro… os artigos… para cuja produção se utiliza uma maior porção de trabalho do que de capital aumentam de preço… e por fim, opera-se sobre a massa geral de artigos uma tal compensação que não há nem baixa nem alta”. (Cap. III, secção III, pp. 108-111. Trad. J.P. Parisot, Paris 1823.)

Em conclusão, James Mill vai mais longe do que Ricardo. Introduz na passagem acima a ideia de compensação das altas e das baixas, o que implica que o total dos preços de equilíbrio, tal como foram determinados pela adjunção de um segundo fator, é estritamente igual ao total dos valores, tais como seriam calculados em quantidades de trabalho, se este segundo fator não existisse. Não encontramos esta ideia – pelo menos formulada de forma tão direta e tão clara – em qualquer dos clássicos. James Mill vai aqui ao encontro, para além de Ricardo e de J. Stuart Mill, das fórmulas dos preços de produção de Marx.

Esta igualdade entre a soma dos valores e a soma dos preços de equilíbrio constitui na verdade o mais tenaz argumento contra aqueles que consideram a teoria dos preços de equilíbrio dos clássicos ou dos preços de produção de Marx como uma negação da primitiva teoria do valor-trabalho.

 

5. A transformação do valor em Marx

Preço de Produção = Preço de Equilíbrio

O passo dado por Ricardo entre a terceira e a quarta secção do primeiro capítulo dos Principles…, Marx dá-o entre o 1º e o 3º Livro de 0 Capital. No primeiro Livro, mas sobretudo nos três primeiros capítulos – e parte do Capítulo VI no que se refere ao valor, e nos capítulos VII a XII e XVI a XVIII no que se refere a mais-valia, Marx abstrai da diferença na composição orgânica dos capitais nos diferentes ramos [27]. Por conseguinte, esta primeira parte da sua teoria apenas pode cobrir três casos:

a) 0 caso de uma produção mercantil simples (não-capitalista) em que cada produtor é proprietário dos seus próprios meios de produção, que são inalienáveis.

b) O caso de uma produção capitalista pouco desenvolvida, em que os bens de equipamento são nulos ou sem importância, ou em que a diferença por profissão é desprezível, de forma que o empresário só avança efetivamente os salários, ou os salários mais bens de equipamento praticamente proporcionais aos salários.

c) O caso especial da produção capitalista desenvolvida, em que a composição orgânica do ramo considerado é igual à média social.

 

Nestes três casos, além do total dos preços do mercado ser em cada momento igual ao total dos valores, o preço do artigo oscila em torno do seu valor, de maneira que o seu preço médio tenda, a longo prazo, a aproximar-se do seu valor. Nesta perspetiva, é claro que a taxa dos salários não tem qualquer influência sobre os preços, dado não ter nenhuma sobre os valores. Uma vez que o valor é a soma de duas variáveis em razão inversa, o trabalho pago e o trabalho não pago, aquele permanece naturalmente constante independentemente da relação dessas duas grandezas entre si [28] .

No terceiro Livro, Marx introduz, pela primeira vez, a diferença das composições orgânicas como um dado real do regime capitalista. 0 fundo do problema é discutido nos Capitulas VIII e IX. 0 Capítulo VIII tem por título: “Composição diferente dos capitais em ramos de produção diferentes, donde a diversidade das taxas de lucro”. 0 Capítulo IX: “Estabelecimento de uma taxa geral de lucro e transformação dos valores das mercadorias em preços de produção”. A justaposição destes dois títulos resume toda a transformação do valor-trabalho simples em preço de equilíbrio. 0 pensamento de Marx processa-se da seguinte maneira: se os preços do mercado se equiparassem aos valores, isto é, a quantidade de trabalho vivo, as taxas de lucro nos diferentes ramos seriam desiguais, em virtude da desigualdade de capitais investidos por unidade de trabalho vivo e da sua velocidade de. rotação. Esta desigualdade impediria o capitalismo de funcionar, porque o capitalista que elevasse a composição orgânica da sua empresa para economizar trabalho vivo obteria menos lucro do que antes e seria, portanto, prejudicado em benefício daqueles que não mecanizassem. A fim de que a produção capitalista se desenvolva, é necessário que os lucros sejam proporcionais, não ao número de trabalhadores empregados, mas à totalidade do capital investido por cada capitalista. E Marx põe ponto final na sua teoria do valor introduzindo no capítulo IX a sua fórmula célebre dos “Preços de Produção”[29].

Ramo Capital Constante

(c)

Capital variável

(v)

Mais-Valia

(m)

Valor

(V)

c+v+m

Taxa de lucro

∑m/(∑(ci+vi)

Lucros

l=r(ci+vi)

Preço de Produção

(c+v+l)

 

I

80

20 20

120

 

R=60/300=

20%

20

120

II

90

10 10

110

20

120

III

70

30 30

130

20

120

Total

240

60 60

360

60

360

Neste conjunto de três ramos o valor acrescentado é de 120 (∑v+∑m), de que os salários absorvem metade e os lucros a outra metade. Portanto, a taxa da mais-valia é de 100 por cento, sendo igual em todos os ramos, como é lógico. Mas como a totalidade do capital investido (∑ ci+ -∑vi), é de 300 e o total da mais-valia 60, a taxa de lucro geral só pode ser de 20 por cento. Este lucro acrescentado ao custo de produção (ci+vi), de cada ramo, dá-nos os preços de produção que diferem do valor de cada artigo se esse valor for a soma de trabalho, vivo e passado, despendido na produção [30] .

É incontestável que de acordo com a definição de equilíbrio que adotámos na segunda secção deste capítulo, os preços de produção de Marx são preços de equilíbrio pois que só com este preço e que os dois fatores são remunerados a mesma taxa em todos os ramos e que deixa de haver transferências. Todo e qualquer desvio destes preços provocado pelo mercado acarretaria movimentos de fatores de um ramo a outro, e se tivermos em conta que os preços correntes não afetam. os salários, uma vez que estes são pagos antes da venda e independentemente dos resultados desta, se considerarmos, portanto, que a perequação dos salários é um dado a priori, e que e o lucro que varia com flutuações dos preços a curto prazo, devemos concluir que todo e qualquer desvio dos preços efetivos para mais ou para menos dos preços de produção, acarretará um movimento de capitais para os ramos favorecidos, o qual tenderia a aumentar a produção destes ramos e reaproximar o preço do mercado do nível do preço de produção. Os preços de produção são preços de equilíbrio porque constituem o único mecanismo capaz de assegurar a perequação dos lucros.

 

6. A causa e o efeito

Se é fácil demonstrar que no momento do equilíbrio existe correspondência entre os preços as mercadorias e as taxas de remuneração respetivas dos dois fatores, devemos pelo contrário reconhecer que, à primeira vista, não parece existir qualquer prova de razão pura sobre a questão de saber qual dos dois é o determinante e qual o determinado.

No caso da existência de um só fator, – esta prova decorria das premissas. Bastava indicar que a perequação das remunerações do fator único era necessária a fim de atingir o equilíbrio, para demonstrar pelo mesmo raciocínio que são as condições de produção, e não o mercado, que determinam os preços de equilíbrio, uma vez que, sendo a perequação conhecida, só podia haver um único ponto de equilíbrio. A partir do momento em que um segundo fator entra em jogo, o sentido da determinação deixa de ser tão evidente. Porque os preços de produção, ou preços de equilibro, já não dependem unicamente do simples facto da perequação dos salários e dos lucros. Dependem igualmente do nível de uns e de outros. Para salários e lucros respetivamente iguais em todos os ramos, existe teoricamente um número infinito de preços de equilíbrio possíveis, correspondendo a um número infinito de combinações, taxas de salários – taxas de lucro. A cada aumento ou diminuição da taxa geral de salário, e, portanto, a cada diminuição ou aumento da taxa geral de lucro, corresponde um outro conjunto de preços de equilibro (preços de produção).

Efetivamente, se aplicarmos ao esquema de Marx um aumento de 50 por cento da taxa geral de salário, os preços de produção serão modificados da seguinte maneira:

Ramo Capital constante Capital variável Mais-valia Valor Taxa de lucro Lucro Preço de Produção
I

80

30 10

120

 

R=∑[mi/(ci+vi)]

9 1/11%

10

120

II

90

15 5

110

9 6/11

114 6/11

III

70

45 15

130

10 5/11

125 5/11

240

90 30

360

30

360

Como era de esperar, os valores não se alteraram, mas todos os preços de produção (preços de equilíbrio), salvo o do ramo I, que acontece ter a composição orgânica média, se modificaram. Como afirmar então se foi a alteração dos salários que determinou a alteração dos preços de equilíbrio, ou se foi a variação destes últimos em – virtude da oferta e da procura – que determinou a alteração dos salários[31]?

 

No quadro das hipóteses clássicas pré-marxistas, a escolha a favor do primeiro termo da alternativa impunha-se de antemão. Havia então um salário real de base, predeterminado e imutável. Era um certo «cabaz de bens a que correspondia ao mínimo fisiológico de subsistência do operário e da sua família». Nenhum movimento do mercado podia modificar a longo prazo o conteúdo o deste “cabaz”. Toda e qualquer diminuição fazia morrer de fome uma parte dos trabalhadores, e a penúria subsequente de mão-de-obra provocava uma elevação dos salários. O “cabaz” era, incompressível. Qualquer aumento para além do mínimo vital acarretava a proliferação das famílias operárias, e, ao aumentar a oferta de braços, fazia com que o salário se reaproximasse da sua base de partida. Uma lei biológica independente do mercado e das relações económicas dos homens fixava o salário real. Como este salário era predeterminado, o lucro era-o igualmente por diferentes e conhecidas as composições orgânicas, todos os preços de equilíbrio eram determinados.

Quanto ao salário nominal, esse podia certamente variar, mas só se as condições de produção das subsistências fossem modificadas. Se após o aproveitamento para cultivo de terras menos férteis o mesmo “cabaz” de subsistências só pudesse ser produzido com seis horas de `trabalho em vez das quatro anteriormente necessárias, e sendo o dia de trabalho de 10 horas, é evidente que o lucro baixava de 60 para 40 por cento do total, o que acarretava uma modificação de todos os preços de equilíbrio, para cima ou para baixo, conforme a relação da composição orgânica de cada ramo com a media social. Mas na altura era igualmente evidente que essa alteração não tinha sido provocada pelo mercado, mas sim pelas condições de produção.

0 mesmo deixa de se verificar desde que aceitemos, com Marx, que o salário não é unicamente determinado por fatores biológicos, mas também por fatores sociológicos e históricos. Com o alargamento dos seus limites, abrimos a possibilidade teórica de uma determinação do salário, e, por conseguinte, do lucro, pelas forças do mercado. A partir deste momento, parece que só poderemos efetuar a escolha da determinação a que aderimos, se quisermos progredir nesta análise, na base de considerações empíricas.

Numa economia livre concorrência extra pura, em que os salários e os lucros poderiam flutuar sem limites entre 0 e 100 por cento, parece que nada se oporia-pelo menos teoricamente a admitir que sejam os preços que determinam os custos de produção e não os custos de produção que determinem os preços. Mas este modelo nunca existiu nem pode existir. Por conseguinte, as considerações seguintes abonam em favor da determinação inversa:

1.Ultrapassado pelo mínimo socio-histórico, o mínimo fisiológico do salário nem por isso deixa de existir. Existe aí, portanto, um limite inferior absoluto contra o qual o mercado é impotente.

2. A própria noção do mínimo fisiológico é elástica. Uma necessidade criada pelo progresso técnico e a força da demonstração transforma-se em necessidade biológica se for satisfeita por muito tempo. Uma privação brutal do bem ou do serviço correspondente, se afetar uma só classe da sociedade e não for o resultado de um estado de urgência geral, guerra, bloqueio, etc., provoca um sofrimento moral de tal maneira agudo, que os mecanismos biológicos entram em jogo, tal como se se tratasse de uma falta de alimentos ou de proteção adequada contra o frio. Além disso, acontece em determinada altura que certas necessidades criadas pela civilização se tornaram de tal maneira usuais e prementes, que o operário prefere diminuir a sua alimentação ou o vestuário a passar sem o bem ou o serviço correspondente. Nessa altura, um salário que não permitisse satisfazer ambas as coisas, equivaleria a um salário inferior ao mínimo fisiológico, logo impossível. Os. consumos rígidos por natureza, tais como, por exemplo, a habitação, constituem casos semelhantes. Não é possível mudar de casa sempre que se verifica uma variação do salário, mesmo se o alojamento atual ultrapassar o mínimo fisiológico e se a alimentação que o salário atual permitiria comprar, após pagamento da renda de casa, se encontrar abaixo desse mínimo.

É por isso que o salário pode variar imenso no espaço, mas pouco no tempo. A experiência histórica mostra-no-lo.

3. As flutuações para cima são igualmente limitadas. Com efeito a força de trabalho não é uma mercadoria como outra qualquer. É uma mercadoria, por assim dizer, instantaneamente perecível. O operário não a pode conservar para beneficiar de uma conjuntura do mercado favorável. Cada hora que passa é uma hora perdida [32] .

4. Existem no mercado de trabalho, pressões morais consideráveis. Apesar de tudo, o capitalismo conserva alguns vestígios pessoais herdadas do regime feudal. Não se muda de operário como se muda de fornecedor. Tem-se orgulho em poder comprar as suas matérias-primas mais barato do que os outros; não é motivo de orgulho pagar os seus homens menos bem do que os concorrentes. A primeira proeza é atribuída … à boa organização da empresa e à capacidade dos seus dirigentes. Ela constitui motivo de prestígio. A segunda e atribuída a uma fraqueza financeira e abala o seu crédito. No outro sentido as pressões extraeconómicas são menos fortes, mas existem.

5. A luta sindical da classe operária e as reações das organizações patronais impedem o livre jogo do mercado neste campo.

 

Resulta de todos estes fatores que a margem de elasticidade da taxa geral de salários, abandonada à influência possível do mercado, não é considerável no tempo. Ora, o esquema precedente – cujos dados numéricos nada têm de irrealistas – mostra-nos que a flutuações mínimas dos preços de equilíbrio (da ordem de 4 por cento nos ramos II e III) corresponde uma variação muito forte (50 por cento) da taxa geral dos salários. Se os preços de equilíbrio fossem determinados pelo mercado, semelhantes flutuações podiam verificar-se quotidianamente. Seria absurdo supor que os salários tivessem então de as acompanhar com variações de 50 por cento para mais ou para menos.

Mas há outras razões essenciais para rejeitar a determinação a partir dos preços das mercadorias. Se se admitisse esta determinação, bastaria que se alterassem os preços de equilíbrio de dois artigos, por pouco importantes que fossem, para que todos os salários de todos os ramos de produção, e, portanto, a taxa geral de lucros, sofressem uma modificação correspondente, mas igual para todos os ramos.

Bastaria que os gostos dos consumidores mudassem das couves para as cenouras, para que mudassem todos os salários e todos os lucros e também todos os preços de equilíbrio de todas as mercadorias! Não existe nenhum mecanismo que possa transmitir um tal efeito. Admitir a sua existência seria tão absurdo como admitir que se pudesse modificar o comprimento de onda de um posto emissor manipulando os botões do seu próprio posto recetor.

É concebível, a priori, que os salários estejam ligados ao desenvolvimento geral da produção ou a conjuntura e ao nível de emprego e, por uma via qualquer de consequência, ao nível geral dos preços. É absolutamente inconcebível que eles possam estar ligados aos preços relativos. Dada a atual disparidade dos salários entre regiões pobres e regiões ricas do mundo, tal levar-nos-ia por exemplo a admitir que as curvas de indiferença de todos os consumidores pobres do mundo são feitas de forma a favorecer inevitavelmente os produtos de alta intensidade capitalista e a desfavorecer os outros. Dado que, em virtude do desenvolvimento desigual. da técnica, os produtos passam constantemente de um grupo para o outro, seria necessário que os gostos respetivos dos consumidores pobres e ricos mudassem constantemente num sentido correspondente, o que é o cúmulo do absurdo.

É por isso que aqueles que acreditam nesta determinação são obrigados em última análise a admitir que há tantos fatores como ramos de produção. Nesse caso, se mudarem os preços relativos das couves e das cenouras, somente mudarão as remunerações dos que produzem as couves e as cenouras, o que é aceitável. São, pois, obrigados a rejeitar toda e qualquer perequação, a dos salários bem como a dos lucros.

Se admitirmos tais perequações, teremos necessariamente de admitir que as remunerações dos fatores são o determinante e os preços de equilíbrio o determinado, dado que o equilíbrio é definido pelo momento em que essas perequações são realizadas.

Dissemos atrás que a razão pura parecia insuficiente para justificar a nossa escolha, e que seria necessário recorrer a argumentos empíricos. Temos, no entanto, aqui algo que é quase uma prova de razão pura, isto é, uma conclusão que decorre necessariamente das nossas próprias definições e hipóteses.

Nas condições de existência de dois fatores homogéneos e concorrentes, os preços não podem ser a causa e as remunerações dos fatores o efeito, pelo menos pela simples razão de que só certas combinações de preços é que são compatíveis com ambas as perequações. Se dividirmos os ramos de produção em dois grupos, aqueles em que a composição orgânica é superior à média e aqueles em que a composição orgânica e inferior à média, então, sejam quais forem os gostos e as necessidades dos consumidores, os preços dos artigos pertencendo ao mesmo grupo não podem em caso algum variar em razão inversa uns dos outros, e os preços dos artigos pertencendo a grupos diferentes não podem em caso algum variar paralelamente, ou então não são preços de equilíbrio. Verifica-se além disso que em cada grupo a taxa de variação dos preços é função crescente da diferenciação das composições orgânicas respetivas a partir da composição orgânica média. Seja qual for o sinal ou a medida de uma variação dos preços, um artigo variará tanto mais, num ou noutro sentido, quanto a sua composição orgânica estiver mais distanciada da composição orgânica média.

Há, portanto, uma lei anterior ao mercado que liga os artigos por grupos e estes grupos são definidos sem qualquer referência às necessidades dos consumidores. Não existe para além disso qualquer razão para que as variações das necessidades obedeçam à mesma lei.

Mas existe uma outra hipótese que poderia salvar a tese marginalista. Supusemos sempre, ao longo de toda a nossa argumentação, que as composições orgânicas eram conhecidas. Mas se essas composições fossem justamente condicionadas pelos preços? Se existisse um número infinito de combinações quantitativas dos fatores – como o supuseram por exemplo Leon Walras e Berth Ohlin – e, inclusivamente sendo todos igualmente possíveis e dependentes dos preços?

Poder-se-ia então, a cada variação do preço de equilíbrio, escolher uma combinação que satisfizesse a igualdade entre o custo de produção e o preço de venda – este último estabelecido independentemente e sendo por isso mesmo determinante – sem ter de modificar todos os salários e todos os lucros [33].

Raciocinar desta maneira, é esquecer voluntariamente todo o processo e todas as motivações da escolha das técnicas, em regime de livre concorrência.

Ao escolher a sua técnica, o empresário não procura a equivalência entre o custo de produção e o preço de venda, mas sim a minimização do primeiro. Seja qual for o preço de venda, alto ou baixo, e sejam quais forem a importância ou o sentido das suas variações, a empresa procurará a combinação ótima dos fatores, e a obtenção desse resultado ótimo não depende dos preços dos produtos, mas dos preços dos fatores.[34]

Talvez se pudesse, na base destas considerações, modificar o teorema clássico e dizer que uma modificação da taxa geral dos salários não só teria como efeito modificar os preços dos produtos em cada um dos dois grupos, mas também, conforme os casos, modificar a composição orgânica dos ramos a eles pertencentes, e, por vezes, fazer passar um ramo de um grupo para outro. Mas depois, tal como antes, os salários e os lucros continuam a não ser diretamente dependentes dos preços, são-no apenas indiretamente por meio das composições orgânicas.

Podemos, portanto, concluir, apesar da reserva formulada no início desta discussão, que mesmo num modelo de concorrência perfeita não são os preços relativos que determinam a remuneração dos fatores, mas sim as remunerações relativas dos fatores que determinam os preços, se admitirmos que ambos os fatores existentes são homogéneos e concorrentes.

As correspondências expressas pelo esquema dos preços de produção de Marx não são reversíveis. Os salários e os lucros é que são as variáveis independentes, e os preços as variáveis dependentes do sistema [35] .

 


(*) N.T. Agradeço ao meu antigo aluno e grande amigo, Júlio Gomes, um homem que se quer contabilizado como neo-ricardiano de esquerda, o apoio havido na preparação deste texto e a sua leitura atenta a eventuais gralhas imputáveis à transposição de livro para uma versão de texto em Word.

___________

Notas

[21] Cf. Primeira secção deste capítulo. Fator é um direito estabelecido a uma primeira partilha do produto.

[22] Muitos economistas, e Keynes entre outros, fizeram uma lamentável confusão entre o capital e tal ou tal bem de equipamento que lhe serve de suporte. 0 capital é um direito ou, para se ser mais preciso, uma relação de produção que se manifesta como um direito, e nessa qualidade ele é independente da forma concreta que reveste a cada momento da sua função produtiva. Sob o termo ambíguo de preço de capital, estes economistas confundiram, por vezes, as variações do lucro, ou seja, do rendimento ligado a esse direito, com as variações dos preços dos bens de capital a que estes últimos estão sujeitos enquanto mercadorias.

É evidente que com esta distorção o capital não é nem homogéneo nem concorrente, porque nada impede que, no mesmo momento, baixe o preço de equilíbrio de certos bens de equipamento e aumente o de outros, no caso de as condições das suas produções respetivas se terem alterado. Pelo contrário, se por preço do fator capital entendermos o lucro, fica excluído, por definição, que a taxa de lucro de equilíbrio difere de um capital para outro.

No entanto esta distinção, ignorada às vezes pelos economistas, está sempre presente no espírito dos homens de negócios e no texto de todas as legislações fiscais do mundo. 0 lucro é considerado como um rendimento e sujeito a imposto como tal; o eventual benefício proveniente de uma revalorização de um capital fixo não é considerado um rendimento e é tributado de maneira diferente, ou não se encontra de todo sujeito a imposto, conforme os países. Os ingleses chamam ao primeiro rendimento ou lucro, e ao segundo chamam os ganhos em capital. Há perequação do primeiro caso; não há nenhuma no segundo.

O termo Capital não é um simples sinónimo de meios de produção; mas sim os meios de produção reduzidos a um fundo de valor qualitativamente homogéneo e quantitativamente mensurável… 0 capital só tem uma dimensão, a da sua grandeza… (Sweezy, The Theory of Capitalist Development, ed. 1956, p. 338.)

[23] Bagehot chega a fazer da mobilidade dos fatores o elemento essencial da própria definição de nação, que, segundo ele, não é mais do que um grupo de produtores entre os quais o capital e o trabalho circulam livremente.

[24] A tendência da taxa de lucro para o nivelamento foi notada não só pelos clássicos, como A. Smith a Ricardo, mas também pelos mercantilistas coma Child, North, Davenant. O mesmo se verifica também em alguns fisiocratas, como Turgot e Mercier de la Riviere. J. Stuart Mill acrescentou a ideia da perequação, uma subtileza interessante: os diferentes empregos do capital não oferecem lucros iguais, mas iguais perspetivas de lucro. (Principles of Political Economy, ed. 1867, Londres, p.249)

[25] Por intervenção proporcional à quantidade de trabalho pode entender-se ou que a quantidade de capital aplicada em cada ramo é proporcional à quantidade de trabalho por unidade de produto, ou que o lucro do capital não se mede pela sua quantidade, mas pela quantidade de trabalho que coloca em movimento. Por outras palavras, pode entender-se, segundo a terminologia marxista, ou que a composição orgânica é a mesma em todos os ramos e que há perequação dos lucros, ou que a composição orgânica é diferente, mas que os lucros são calculados sobre o capital variável e não sobre a soma do capital investido. Num caso e noutro a conjunção do segundo fator em nada modifica os valores de troca das mercadorias, tal como estes se estabelecem pela relação das quantidades de trabalho necessárias à sua produção.

[26] É certamente isso que leva Andras Brody a dizer que nas relações de produção capitalistas não são quantidades iguais de trabalho que se trocam no mercado, mas quantidades iguais de capital. Three Types of Price Systems, in Economics of Planning, nP 3, Vol. 5, 1965.

A semelhança é demasiado evidente para não se pensar numa inspiração direta da seguinte passagem de Torrens: “… desde que a sociedade foi dividida numa classe de trabalhadores e numa classe de capitalistas, o resultado obtido pelo emprego de capitais iguais, tem valor de troca iguais. An Essay on the Production of Wealth etc., Londres, 1821, p. 30.

A formulação de Torrens tem um sentido, a de Brody é sobretudo literária e não tem nenhum. Mas nem por isso a primeira deixa de ser errada. Suponhamos dois ramos, A e B. Para produzir uma unidade de produto no primeiro, são necessários 1000 francos de matérias-primas e de salários e 1000 francos de bens de equipamento cuja amortização é de 200. Se a taxa de lucro for de 10 por cento, esta unidade de produto vale 1400 francos.

Para obter uma unidade de produto no segundo; são precisos 1500 francos de salários e matérias-primas, e 500 francos de bens de equipamento cuja amortização é de 100. 0 valor da produção é de 1800. No entanto, foram utilizados capitais iguais, 2000 francos em cada ramo. Na base deste erro está uma confusão entre capital constante circulante e o capital constante fixo. As teses de Brody e de Torrens seriam corretas se a velocidade de rotação do capital fixo fosse igual a um, noutros termos, se a totalidade do capital fixo fosse consumida para obter a unidade de produto considerada. Então o valor das produções seria de 2200 em ambos os casos.

[27] Marx chama composição orgânica à relação entre a parte do capital destinado ao pagamento dos salários (capital variável) e a totalidade do capital investido vi/(ci+vi).

[28] Esta proposição permanece válida mesmo que se rejeitem as noções de trabalho pago e trabalho não pago. Seja qual for a justificação sociológica ou filosófica do lucro, o facto é que, com um certo número de horas de trabalho, um certo número de trabalhadores produz bens suficientes para cobrir o seu próprio consumo e deixar um excedente para os seus patrões. Sendo dada a quantidade de bens produzida, a taxa deste excedente (mais-valia segundo Marx), é inversamente proporcional à taxa dos salários. E como se admite uma taxa de salários igual em todos os ramos, a taxa da mais-valia deverá sê-lo igualmente. Portanto, nas condições postas, isto é, anteriormente à introdução das diferenças das composições orgânicas, uma modificação geral dos salários só poderá acarretar uma modificação igualmente geral, mas em sentido inverso, da mais-valia. Os valores não mudam, e se os preços fossem regulados pelos valores, também não mudariam.

Continuamos a fazer abstração do consumo intermediário.

[29] As letras e as fórmulas foram inseridas por mim (A. E.) para facilitar a leitura das correspondências do esquema.

[30] Os preços de produção não seriam diferentes dos valores,

  • Se o capital constante não existisse ou fosse desprezável:
ramo Capital constante Capital variável Mais-valia Valor Taxa de lucro Lucro Preço de Produção
I 20 20 40  

R=∑[mi/(ci+vi)]

100%

20 40
II 10 10 20 10 20
III 30 30 60 30 60
60 60 120 60 120
  • Se a sua relação com o capital variável fosse a mesma em todos os ramos ou se essa relação apenas tivesse apenas diferenças tão diminutas que podem ser ignoradas:
ramo Capital constante Capital variável Mais-valia Valor Taxa de lucro Lucro Preço de Produção
I 40 20 20 80  

R=∑[mi/(ci+vi)]

33 !/3%

20 80
II 20 10 10 40 10 40
III 60 30 30 120 30 120
120 60 60 240 60 240

Estas duas eventualidades cobrem o caso (b) mencionado anteriormente no início desta secção (produção capitalista pouco desenvolvida).

Por outro lado, o preço de produção do ramo I não difere em qualquer caso do seu valor, uma vez que este ramo possui uma composição orgânica media (caso (b) quer acabámos de referir. Sublinhemos ainda que Marx, a fim de simplificar a sua fórmula, supõe uma velocidade de rotação do capital constante e igual à unidade. Assim, a totalidade do capital constante considerada como sendo consumida ao longo do ciclo de produção é o capital investido (c+v) e igual ao custo de produção. Mas isto não é necessário. No capítulo seguinte construiremos os nossos esquemas dos preços de produção abandonando esta hip6tese.

[31] Marx não deu qualquer esquema análogo ao nosso esquema acima que tivesse demonstrado a incidência da variação dos salários sobre os Preços de Produção, ainda que tenha adotado sem reservas o teorema clássico. Misère de la Philosophie, Ed. Sociales, p. 172 e Histoire des Doctrines, Edit. Costes, VII, pag .225

[32] Mas, diz J. B. Say, a necessidade do senhor é menos premente. Poucos há que não pudessem viver vários meses e mesmo vários anos sem fazer trabalhar um único operário; enquanto há poucos operários que pudessem passar várias semanas sem trabalho, sem que isso lhes criasse dificuldades extremas.

O salário, diz Eug. Buret, não tem o caracter de um contrato; porque o trabalhador não se encontra de maneira alguma, perante aquele que o emprega, na posição de um livre vendedor. Pode dizer-se que o capitalista dispõe sempre da liberdade de empregar ou não o trabalho e que o trabalhador é obrigado a vendê-lo. 0 valor do trabalho é completamente destruído desde que não seja vendido a todo o instante. 0 trabalho não é suscetível nem de acumulação, nem mesmo de poupança, contrariamente às verdadeiras mercadorias. (De la misere des classes laborieuses en Angleterre et en France, Paris, 1840, p. 49.)

[33] Empregamos, hem entendido, o termo “custo de produção” no sentido de Pareto, isto é, incluindo o lucro do capital.

[34] É preciso notar que a hipótese da existência de um número infinito de combinações dos fatores já de si é uma hipótese pouco provável. Os marginalistas comprazem-se em considerar as combinações dos fatores como o efeito de variações quantitativas continuas, mais menos como combinações químicas, e em que a adjunção de uma quantidade infinitesimal de um elemento bastaria para nos dar de cada vez uma composição qualitativamente diferente.

A partir desta posição, estudam a eficácia do operário marginal ou da máquina marginal mais ou menos como se estudaria o efeito marginal da gota de café ou da gota de leite no café com leite. Temos sérias dúvidas que a natureza seja tão continua, mas sabemos que a economia é certamente descontinua. Nas fábricas modernas, a eficácia de um operário adicional não é inferior à eficácia média; ela a simplesmente nula. 0 mesmo é valido para a eficácia de uma unidade de capital adicional. Para alterar a composição orgânica é necessário alterar a técnica. E não existem mais de duas ou três técnicas válidas a cada momento, e suscetíveis de ser adotadas em cada ramo.

[35] Mais uma vez afastamos desta discussão o argumento dos custos não-proporcionais considerando-o sem objeto. Já apontámos as razões na Introdução e no último parágrafo da segunda secção deste capítulo. A adjunção de um segundo fator em nada afeta essas razões.

 


Arghiri Emmanuel [1911-2001], nascido na Grécia,  é economista francês marxista (heterodoxo), conhecido pela sua teoria da troca desigual. Estudou na High School of Economics and Commerce de 1927 a 1932 e depois na Faculdade de Direito até 1934.

As observações sobre o Congo belga, onde viveu nos 30 e 40, (teve também contacto com o movimento de libertação chefiado por Lumumba) aparecem frequentemente nos seus escritos e podem provavelmente ajudar a explicar a peculiaridade da sua abordagem e as suas diferenças em relação ao marxismo francês comum. Tendo ido para França em 1957, Emmanuel começou como estudante de Pós-graduação sob Charles Bettelheim, sendo o tema sua teoria do intercâmbio desigual, que foi apresentada pela primeira vez em 1961-1962. Embora Bettelheim tenha sido certamente inspirado por Paul A. Baran, o mesmo não é evidente para Emmanuel. Além disso, muitas outras diferenças foram visíveis desde o início, como o desejo de Bettelheim de tornar a troca desigual devido a diferenciais salariais uma subcategoria de troca desigual devido a diferenças na composição orgânica; (ou seja, intensidade de capital), que era comum o suficiente para a compreensão marxista e continua a ser o foco dos desenvolvimentos modernos da teoria da troca desigual.

A teoria da troca desigual foi uma tentativa de explicar a tendência de queda nos termos de troca para os países subdesenvolvidos, ao mesmo tempo em que criticava as diferentes abordagens de Raul Prebisch, Hans Singer e Arthur Lewis como apenas tentativas tímidas. Afirmou, contrariamente à teoria então convencional, que eram os níveis salariais política e historicamente estabelecidos que determinavam os preços relativos, e não o contrário, e, contrariamente aos pressupostos dos custos comparativos de Ricardo, considerava que o capital era internacionalmente móvel, com  a correspondentemente igualização da taxa de lucro e com  a força de trabalho relativamente imóvel, logo pressupondo diferencial salarial à escala internacional, sendo esta diferenciação a determinante fundamental da troca desigual

O que tornou a teoria um assunto acalorado nos círculos marxistas e dependentistas foram as implicações da teoria sobre a solidariedade internacional dos trabalhadores. Emmanuel não demorou a salientar que a sua teoria se encaixava bem com a ausência observada de tal solidariedade, particularmente entre países com altos e baixos salários, e, de facto, fez dos movimentos operários nacionalmente fechados a principal causa de trocas desiguais. Por outro lado, todas as versões subsequentes da teoria, como as de Samir Amin, Oscar Braun, Jan Otto Andersson, Paul Antoine Delarue e quase todos os críticos desde Charles Bettelheim, preferiram fazer do aumento da produtividade a causa (e, portanto, a justificação) de salários mais elevados, e dos monopólios a causa de trocas desiguais.

A teoria da troca desigual de Emmanuel fazia parte de uma explicação mais abrangente da economia capitalista do pós-guerra. Na opinião de Emmanuel, uma sua segunda obra Le profit et les crises, publicada pela editora Maspero em 1974, completa a primeira. Como assinala o editor de Le profit et les crises, esta obra constitui, de certos pontos de vista, a segunda parte de um díptico, em que o primeiro foi A Troca Desigual. Nesta obra Emmanuel tinha analisado os desequilíbrios e as assimetrias que condicionam as relações económicas internacionais, especialmente entre países de diferentes níveis de desenvolvimento. Aqui, com Le profit et les crises, o autor estuda as contradições e as antinomias das nações capitalistas, especialmente dos países mais desenvolvidos. Contudo, as duas redes de contradições aparecem organicamente ligadas na base da unicidade do sistema capitalista mundial, que permanece para o autor uma realidade. O nível nacional e o internacional não são mais do que, na argumentação de Emmanuel, dois níveis da mesma estrutura de que cada um reproduz, ampliando-os, as contradições imperfeitamente ultrapassadas no outro. Isto é escrito em 1974…

Nesta obra, dissecando algumas das limitações de Marx em O Capital e em que Marx se mostra um pouco prisioneiro de Ricardo, Emmanuel propõe relativamente a estas limitações propostas alternativas. Emmanuel mostra que o sistema capitalista tende sistematicamente para situação de excedentes de produção, até mesmo no quadro da reprodução simples, uma vez que os rendimentos criados em cada ciclo de produção e que são a procura de cada ciclo tendem a ser sempre inferiores ao valor final da produção. Numa análise extremamente detalhada Emmanuel desmonta a lógica em que assenta a lei de Say. A ley de Say pressupõe que se verifica sempre a igualdade Valor da Produção=Rendimentos distribuídos na produção, enquanto Emmanuel mostra que o sistema tende à verificação contínua de Valor Final de Produção>Rendimentos ex-antes distribuído, que ele chama a desigualdade P>R, onde P representa o valor da produção e R os rendimentos distribuídos ex-ante a essa mesma produção. Neste caso o valor dos bens para venda, será sempre superior aos rendimentos injetados no sistema para a produzir, daí que em cada momento do tempo há um excesso permanente de (o valor de) bens oferecidos sobre (o poder de compra de) rendimentos no funcionamento normal de uma economia de mercado. Isso obrigou a economia a funcionar abaixo de todo o seu potencial e a tornou propensa a crises como a que ele próprio experimentou durante a Grande Depressão. Por outro lado, o boom dos trinta gloriosos anos do pós-guerra indicava que esse funcionamento normal havia sido de alguma forma evitado, e Emmanuel agora considerava o aumento institucionalizado dos salários, além de uma política de inflação permanente, como o principal estimulante que direciona o boom dos investimentos. Uma vez que nem os salários – nem os níveis de consumo dos países abastados podiam ser equalizados internacionalmente-para cima, tanto por razões ecológicas como porque consumiriam todos os lucros, e para baixo, por razões políticas, nos mesmos países ricos – a troca desigual era a consequência necessária, em certo sentido salvando a economia capitalista de si mesma.

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