Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homengaem ao Joaquim Feio — Capítulo 1 — Parte A: Texto 4 – “Ricardo e Marx: dois economistas comprometidos – Continuidade e rotura” (2/4),  por António Avelãs Nunes

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 1 – Dos Clássicos a Sraffa, de Sraffa aos neo-ricardianos

 

Nota do editor:

Dada a extensão do presente texto, o mesmo será publicado em 4 partes – hoje a segunda.


Seleção de Júlio Marques Mota

18 min de leitura

Parte A: Texto 4 – Ricardo e Marx: dois economistas comprometidos – Continuidade e rotura (*) (2/4)

 Por António Avelãs Nunes

Original aqui, Ricardo e Marx dois economistas comprometidos_ Continuidade e rotura

(*) Texto escrito para um Livro de Homenagem ao Doutor António de Sousa Franco e foi publicado (com ligeiras alterações) em Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Coimbra, Coimbra Editora, 2006.

 

(continuação)

 

5. – O mesmo ‘pessimismo’ está presente na sua teoria do salário.

Ricardo procura explicar o salário considerando o trabalho como uma mercadoria, à qual se pode aplicar a distinção de Smith entre preço natural e preço de mercado.

“O trabalho, como as outras coisas que se compram e se vendem e cuja quantidade pode aumentar ou diminuir – escreve Ricardo –, tem o seu preço natural e o seu preço de mercado. O preço natural do trabalho é aquele preço que é necessário para permitir que os trabalhadores, em geral, sobrevivam e se reproduzam sem o seu número aumentar ou diminuir.

Aquilo que torna possível a sobrevivência do trabalhador e dos membros da sua família necessários para conservar o mesmo número de trabalhadores não depende da quantidade de dinheiro que ele possa receber sob a forma de salários mas da quantidade de produtos alimentares, bens de primeira necessidade e outros artigos que se lhe tenham tornado indispensáveis devido ao hábito da sua utilização e que ele possa adquirir com o seu salário. Portanto, o preço natural do trabalho depende do preço dos produtos alimentares, bens de primeira necessidade e outros artigos para o sustento dos trabalhadores e da sua família. Com a subida dos preços dos produtos alimentares e bens de primeira necessidade, o preço natural do trabalho aumentará e descerá com a diminuição dos primeiros.” [17]

Por outro lado, o preço de mercado do trabalho define-o Ricardo como “o preço realmente pago por ele com base na relação natural entre a oferta e a procura; é caro quando escasseia e barato quando abunda”. Ricardo esclarece a seguir que o preço natural do trabalho não se confunde com o necessário para assegurar a mera subsistência biológica dos trabalhadores:

“Isto não quer dizer que o preço natural do trabalho, mesmo calculado em termos de produtos alimentares e bens de primeira necessidade, seja absolutamente fixo e constante. Num mesmo país ele varia no tempo e difere acentuadamente de um país para outro. Depende essencialmente dos usos e costumes do povo. Um trabalhador inglês consideraria o seu salário abaixo do seu preço natural e insuficiente para sustentar uma família se com ele não pudesse comprar senão batatas para a sua alimentação nem viver numa habitação que não passasse de uma choça de lama; porém, estas modestas exigências naturais são frequentemente consideradas suficientes em países onde a vida humana é barata e as suas necessidades facilmente satisfeitas. Muitas das comodidades que se desfrutam hoje numa casa inglesa seriam consideradas como luxos num período mais recuado da nossa história. Com o progresso da sociedade, a constante diminuição no preço dos produtos manufacturados e a igualmente constante subida de preços das matériasprimas cria uma tal desproporção a longo prazo no seu valor relativo que nos países ricos um trabalhador, sacrificando somente uma quantidade muito pequena dos seus produtos alimentares, pode satisfazer amplamente todas as outras necessidades.” [18]

Admitindo que o valor da moeda se mantém, Ricardo mostra que os salários variam em função de duas causas: 1) a oferta e a procura de trabalhadores; 2) o preço dos produtos em que os trabalhadores despendem os salários.

Em princípio, “o preço de mercado do trabalho é o preço realmente pago por ele com base na relação natural entre a oferta e a procura; é caro quando escasseia e barato quando abunda”. (…) “Com o progresso natural da sociedade, os salários terão tendência a descer enquanto forem regulados pela oferta e pela procura, pois a oferta de trabalhadores continuará a aumentar à mesma taxa enquanto a procura aumentará a uma taxa lenta”. De qualquer modo, conclui Ricardo, “por muito que o preço de mercado do trabalho se desvie do seu preço natural, tem tendência, como os outros produtos, a ajustar-se-lhe.” [19]

A lei da população de Malthus está na base da explicação dada por Ricardo para esta tendência:

“Quando o preço de mercado do trabalho excede o seu preço natural o trabalhador é próspero e feliz visto ter à sua disposição uma proporção maior de bens de primeira necessidade e de satisfações e assim poder sustentar uma família sadia e numerosa. Porém, quando aumenta o número de trabalhadores devido ao facto de os salários elevados estimularem o crescimento da população, os salários descem novamente até ao seu preço natural e, na realidade, algumas vezes até descem abaixo dele como reacção.

Quando o preço de mercado do trabalho se situa abaixo do seu preço natural, a condição dos trabalhadores é miserável: a pobreza priva-os, então, do conforto que os hábitos antigos tornaram necessários. Só depois destas privações terem reduzido o seu número ou de a procura de trabalho ter aumentado de modo a que o preço de mercado do trabalho se eleve até ao seu preço natural é que o trabalhador gozará o moderado conforto que lhe proporcionará a taxa natural de salários.” [20]

A teoria ajustava-se à realidade do tempo, caracterizada por salários de miséria, que Ricardo explicava com base na lei natural da população e nos mecanismos automáticos que regulam o comportamento da oferta e da procura, pois “estas são as leis que regulam os salários e que regem a prosperidade da maioria dos indivíduos duma comunidade. Como todos os outros contratos, os salários deviam ser deixados à mercê da concorrência livre e leal do mercado e nunca deviam ser controlados pela legislatura.” [21]

Em coerência com este ponto de vista, Ricardo acolhe as críticas às chamadas Leis dos Pobres saídas da “pena competente de Malthus” e defende a revogação destas Leis dos Pobres e a não promulgação de novas leis deste tipo:

“A tendência clara e directa das leis dos pobres está em completa oposição a estes princípios evidentes: não se destinam, como o legislador benevolentemente desejava, a melhorar as condições dos pobres, mas sim a piorar a situação tanto dos pobres como dos ricos; em vez de enriquecerem os pobres destinam-se a empobrecer os ricos. Enquanto vigorarem as presentes leis parece absolutamente natural que aumente progressivamente o fundo destinado à manutenção dos pobres até que absorva todo o rendimento líquido do país, ou, pelo menos, tudo o que o estado nos deixar depois de satisfazer a sua perpétua procura de fundos para fazer frente às despesas públicas. (…) As leis da gravidade não são mais verdadeiras do que a tendência de tais leis para transformar a riqueza e o poder em miséria e fraqueza; para fazerem o homem renunciar a todo o trabalho que não tenha por objectivo a obtenção de meios de subsistência; para abolirem todas as distinções quanto às faculdades intelectuais; para ocuparem continuamente o espírito com a satisfação das necessidades do corpo até que, formalmente, todas as classes sociais sejam atacadas pela moléstia da indigência universal.

É uma verdade indiscutível que o conforto e o bem-estar dos pobres não pode ser assegurado de modo permanente sem que estes se preocupem, ou a legislatura em seu lugar, com o controlo do seu crescimento numérico e com a necessidade de tornar menos frequentes entre eles os casamentos de indivíduos muito jovens e inexperientes. O funcionamento do sistema das leis dos pobres tem actuado de maneira completamente oposta. Tornou toda a moderação supérflua e convidou à imprudência ao oferecer-lhes uma parte dos salários que deviam caber à diligência e à prudência.” [22]

Considerando que o processo de formação e de fixação dos salários é o resultado (inevitável e inalterável) de leis naturais, Ricardo partilha com Malthus a atitude de resignação perante a desigualdade e a miséria degradante: “a miséria do trabalhador é inevitável”. E como “os salários são realmente determinados pela proporção entre a oferta e a procura de trabalho” (“a moeda é unicamente o meio ou a medida de expressão dos salários”), “não há lei que possa remediar [a miséria dos trabalhadores] exceptuando a importação de produtos alimentares ou a adopção de sucedâneos convenientes.” Quer dizer: é necessário revogar as Corn Laws, sacrificando os interesses dos terratenentes. [23]

Resolvida assim a questão do salário, resolvido está o problema da repartição do rendimento, uma vez que o lucro há-de entender-se como a parte que cabe aos empregadores capitalistas depois de pagas as rendas e os salários, sem necessidade de se procurar uma lei que explique a determinação dos lucros.

Ricardo limita-se a pôr em relevo que os lucros serão tanto mais elevados quanto mais baixos forem os salários:

“O valor total da sua produção [da produção dos agricultores e dos industriais] é dividido só em duas partes: uma constitui os lucros do capital, a outra os salários do trabalho.

Supondo que o trigo e os produtos manufacturados se vendem sempre ao mesmo preço, os lucros serão elevados ou baixos na medida em que os salários sejam baixos ou elevados. Mas suponhamos que o preço do trigo aumenta porque é necessário mais trabalho para o produzir: esta causa não fará aumentar o preço dos produtos manufacturados cuja produção não exija uma quantidade adicional de trabalho. Nesse caso, se os salários se mantiverem, os lucros dos industriais não sofrem alteração; mas se, como é absolutamente certo, os salários aumentarem com a subida do preço do trigo, então os seus lucros devem necessariamente diminuir.” [24]

 

6. – Analisando a dinâmica do sistema, na sequência da sua teoria da distribuição, Ricardo defende que se verifica na Inglaterra uma tendência para a baixa da taxa de lucro:

“Observa-se que a mesma causa que faz aumentar a renda, isto é, a crescente dificuldade na obtenção de uma quantidade adicional de produtos alimentares com a mesma quantidade proporcional de trabalho, também faz aumentar os salários e, portanto, se a moeda for estável, tanto a renda como os salários terão tendência para subir com o aumento da riqueza e da população.

Mas há uma diferença essencial entre o aumento da renda e o aumento dos salários. O aumento do valor monetário da renda é acompanhado de uma participação maior na produção; não só a renda monetária do proprietário da terra é maior como também a sua renda em termos de trigo; receberá mais trigo e cada medida deste será trocada por uma quantidade maior de todos os outros bens que não subiram de preço. O trabalhador terá menos sorte: auferirá de salários monetários mais elevados, é verdade, mas os seus salários em termos de trigo diminuirão; e não só disporá de menos trigo como piorará a sua situação geral por lhe ser mais difícil conservar a taxa dos salários de mercado acima da taxa natural. Apesar de o trabalhador ser na realidade menos bem pago, este aumento dos salários diminuiria necessariamente os lucros do industrial, pois os seus produtos não seriam vendidos mais caros embora as despesas de produção aumentassem.” [25]

Em síntese. O aumento da população obriga a cultivar terras cada vez menos férteis; deste facto resultaria a subida das rendas e a elevação do preço do trigo (produtos alimentares); perante o aumento do preço do trigo, os salários nominais teriam de subir, para que os salários reais continuassem a assegurar o mínimo de subsistência; simplesmente, o valor das mercadorias não aumentaria, pois o valor depende apenas da quantidade de trabalho necessária para produzir a mercadoria e não do nível dos salários pagos; quer dizer: perante a subida dos custos (salários e rendas), não subiria o produto das vendas e a taxa de lucro baixaria.

Compreende-se, assim, a visão pessimista que Ricardo extrai da aceitação do princípio da população e suas consequências, da defesa da lei dos rendimentos decrescentes, da teoria do salário, e, por último, da tendência para a baixa da taxa de lucro.

A análise que fez da Inglaterra do seu tempo levou Ricardo à conclusão de que ela se caracterizava pela tendência da população para crescer mais aceleradamente que a acumulação do capital. Ora – escreve ele [26] – “à medida que a população aumenta, os preços dos bens de primeira necessidade sobem constantemente, porque será preciso mais trabalho para os produzir”. Perante este aumento dos preços dos bens essenciais, é natural que os salários monetários – que tendem a corresponder ao mínimo de subsistência – subam o necessário para compensar os trabalhadores (a mão-de-obra não poderia reproduzir-se normalmente se, durante muito tempo, os salários fossem inferiores ao mínimo de subsistência). Sendo assim, i.é, se “o preço do trigo aumenta porque é necessário mais trabalho para o produzir, esta causa não fará aumentar o preço dos produtos manufacturados cuja produção não exija uma quantidade adicional de trabalho” e se, “como é absolutamente certo, os salários aumentarem com a subida do trigo, então os lucros dos industriais devem necessariamente diminuir”, porque, “à medida que sobem os salários diminuem os lucros.”

A classe ociosa constituída pela velha aristocracia rural é a única beneficiada. “Quem ficará realmente a ganhar serão os proprietários da terra – conclui Ricardo: receberão rendas mais elevadas, primeiro porque a produção se valorizará e, segundo, porque receberão uma parte muito maior dessa produção.” [27]

Se aumenta a parte que cabe aos proprietários da terra não só em valor como em quantidade e se tem de aumentar o salário dos trabalhadores para compensar o aumento do preço do trigo (em termos reais, a parte que cabe aos trabalhadores diminuirá, defende Ricardo), é inevitável uma diminuição dos lucros, o que afecta de modo negativo a acumulação do capital. [28]

A economia (capitalista) inglesa corria o risco de se transformar de progressiva em estacionária, uma vez que a diminuição das taxas de lucro reduz a dimensão do capital, i.é, “aquela parte da riqueza de um país que se aplica na produção e consiste em produtos alimentares, vestuário, ferramentas, matériasprimas, máquinas, etc., os quais são necessários para o trabalho se realizar”, [29] e arrasta uma diminuição do volume de investimento, provocando a estagnação da actividade económica.

Ricardo fala de modo explícito de estado estacionário apenas quando estuda os efeitos das Leis dos Pobres. Embora declare a sua convicção de “estarmos bastante distantes ainda” de tal estado estacionário, ele parece surgir, no contexto da sua obra, como o ponto de chegada da “tendência natural dos lucros para descer”, tendência que considera uma “espécie de submissão às leis da gravidade” e que explica porque, “com o desenvolvimento da sociedade e da riqueza, a quantidade de produtos alimentares necessários exige cada vez mais trabalho.” [30]

Na sua óptica, Ricardo entende que “esta tendência dos lucros, esta sua espécie de submissão às leis da gravidade, é felizmente contrariada com frequência pelos aperfeiçoamentos nas máquinas utilizadas na produção dos bens de primeira necessidade, assim como pelos melhoramentos nos processos agrícolas, os quais permitem dispensar uma parte do trabalho antes necessário, e, portanto, baixar o preço dos bens de primeira necessidade para os trabalhadores”. Mas considera-a uma ameaça permanente ao “estado progressivo”, porque, no limite, se os lucros baixarem muito, “deixará de haver acumulação, pois então nenhum capital poderá dar lucros; não será então necessário mais trabalho adicional e a população terá atingido o seu máximo”. Concluindo o seu raciocínio, Ricardo adverte, aliás, para o facto de, “muito tempo antes desta situação, a taxa de lucro mais baixa terá acabado com a acumulação, e a quase totalidade da produção do país, depois de se ter pago aos trabalhadores, pertencerá aos proprietários da terra e aos cobradores de dízimos e de outros impostos.” [31]

A tendência para a baixa da taxa de lucro há-de ser mais tarde considerada por Marx como uma das contradições do modo de produção capitalista, contradições que hão-de levar à substituição do capitalismo pelo socialismo. Ricardo, porém, nunca põe em dúvida a perenidade do sistema, apoiado nos elementos optimistas da sua teoria: a impossibilidade de crises de sobreprodução, nos termos da lei de Say, e as vantagens inerentes ao livrecambismo.

 

7. – O raciocínio que conduz Ricardo à ameaça do estado estacionário – e que expressa uma crítica radical à velha sociedade feudal e às suas classes dominantes – parece comprometer o optimismo antropológico de Adam Smith e a sua confiança num progresso sem limites graças à mão invisível. Mas a verdade é que este optimismo ressurge em Ricardo através da lei de Say, de que foi um defensor entusiástico:

“Os produtos compram-se com outros produtos ou com serviços; a moeda é só um meio através do qual se efectua a troca. Pode produzir-se em excesso um determinado bem e pode haver uma tal superabundância dele no mercado que não chegue para remunerar o capital nele aplicado. Mas isto não se verifica em relação a todos os bens. A procura de trigo é limitada pelo número de bocas que o devem comer, a de sapatos e de casacos pelo número de pessoas que os usam; mas, embora a sociedade, ou uma parte da sociedade, tenha tanto trigo e tantos chapéus e sapatos quantos os que possa ou queira consumir, já não se pode dizer o mesmo a respeito dos bens produzidos pela natureza ou pelo trabalho. Muita gente desejaria consumir mais vinho se tivesse meios para isso. Outros, que dispõem de vinho suficiente para o seu consumo, desejariam ter mais móveis ou possuir outros de melhor qualidade. Outros desejariam embelezar os seus jardins ou aumentar as suas casas. O desejo de fazer tudo isto, integralmente ou em parte, é próprio de todos os indivíduos. Mas é necessário dispor de meios e só o aumento da produção os pode fornecer. Se tivesse ao meu dispor produtos alimentares e bens de primeira necessidade, não me faltariam trabalhadores que me forneceriam alguns dos bens mais úteis ou mais desejáveis para mim.” [32]

Ao contrário de Malthus, Ricardo acreditava que não haveria qualquer limitação ao desenvolvimento económico da Inglaterra decorrente da deficiência da procura efectiva:

“Say demonstrou do modo mais satisfatório que não há nenhum montante de capital que não possa ser investido num país, porque a procura só pode ser limitada pela produção. Ninguém produz se não tiver a intenção de consumir ou de vender e ninguém vende se não tiver a intenção de comprar outros bens que possam ter utilidade imediatamente ou que possam contribuir para a produção futura. Deste modo, um indivíduo, pelo facto de produzir, torna-se ou consumidor dos seus próprios produtos ou produtor e consumidor dos produtos de outro indivíduo qualquer. Não se deve supor que ele permaneça indefinidamente mal informado sobre os bens que pode produzir, com lucro para alcançar o fim que tem em vista, ou seja, para adquirir outros bens e, portanto, não é provável que ele continue a produzir um bem para o qual não há procura.” [33]

As limitações à acumulação do capital só poderiam resultar, pois, da baixa da taxa de lucro:

“Deste modo, num país só se pode acumular uma quantidade qualquer de capital desde que este possa ser utilizado produtivamente até que se verifique uma subida tão grande dos salários, em consequência do aumento dos preços dos bens de primeira necessidade, que, por conseguinte, fique tão pouco para lucros do capital que deixe de haver motivos para acumular. Enquanto os lucros dos capitais são elevados, os indivíduos têm um motivo para acumular. Enquanto um indivíduo tiver um desejo por satisfazer, terá necessidade de mais bens e a sua procura será efectiva sempre que tiver ao seu dispor um novo valor qualquer para trocar esses bens. (…) O facto deste crescimento da produção e da consequente procura que ela determina fazer ou não diminuir os lucros – conclui Ricardo [34] – depende unicamente da subida dos salários, e esta subida, excepto por um período limitado, depende da facilidade em se produzir os produtos alimentares e os bens de primeira necessidade para os trabalhadores. Eu disse durante um período limitado porque nada é menos indiscutível do que o princípio de que a oferta de trabalhadores é sempre, em última análise, proporcional aos meios para os sustentar.”

 

8. – Embora aceite a teoria da renda de Malthus, Ricardo defende a necessidade de impedir a subida das rendas. Por outras palavras: defende a necessidade de pôr termo aos privilégios feudais dos proprietários de terras que viviam das respectivas rendas.

É aqui que se insere a defesa que fez da revogação imediata das Corn Laws (promulgadas em 1815 para proteger o mercado interno do trigo, proibindo a sua importação).

Ricardo foi, sem dúvida, “o apóstolo dos free-traders ingleses” (Marx [35]), fazendo da sua teoria da distribuição do rendimento a base teórica do ataque contra as Leis dos Cereais. Combatendo os interesses dos landlords, as teorias de Ricardo estavam em perfeita sintonia com os interesses da burguesia industrial (a classe mais dinâmica daquela época), à qual convinha a liberdade do comércio.

Na Inglaterra, a pressão resultante do aumento da população obrigara ao cultivo de terras sáfaras e à cultura intensiva das terras férteis, o que – já o dissemos – conduzia ao aumento dos preços do trigo, ao aumento das rendas e ao aumento dos salários nominais, com a consequente baixa da taxa de lucro. Ora, a possibilidade de a Inglaterra importar livremente trigo (alimentos) a preços mais baixos que os praticados no país aparecia a Ricardo como a compensação necessária para os rendimentos decrescentes e indispensável para afastar o fantasma do estado estacionário.

Num texto de 1819, Ricardo refere-se à “escassez e consequente subida do custo dos alimentos e outros produtos fundamentais” como o único obstáculo ao desenvolvimento económico “por tempo indefinido”. E sustenta que se os alimentos e outros bens essenciais forem “fornecidos do estrangeiro em troca de bens manufacturados, será difícil determinar o limite em que se deixará de acumular riqueza e obter lucro com a sua aplicação.”

Compreende-se, assim, que a questão relacionada com as pautas de importação de produtos essenciais fosse, para Ricardo, “uma questão da máxima importância para a economia política”: “Se nos limitarmos aos recursos do nosso próprio solo, a renda acabará por absorver a maior parte do produto que resta depois de pagos os salários, e, consequentemente, os lucros serão baixos. Preconizo o comércio livre dos cereais fundamentando-me no facto de que, sendo o comércio livre e os cereais baratos, os lucros não descerão, por muito importante que possa ser a acumulação de capital.” [36]

Daí a importância da liberdade do comércio externo enquanto factor de desenvolvimento económico. Para tanto, é essencial que os produtos importados sejam aqueles que os trabalhadores consomem, porque, se os seus preços forem mais baixos, serão mais baixos os salários e mais elevados os lucros:

“No decurso deste trabalho tentei provar que a taxa de lucro nunca pode aumentar senão pela diminuição dos salários e que esta descida não pode ser permanente se não diminuir o preço dos bens nos quais são despendidos os salários. Se com o alargamento do comércio externo ou os aperfeiçoamentos nas máquinas se puder fornecer o trabalhador com os produtos alimentares e os bens de primeira necessidade a um preço mais acessível, os lucros devem aumentar. Se, em vez de produzirmos o trigo ou confeccionarmos o vestuário e outros bens de primeira necessidade para o trabalhador, descobrirmos um novo mercado que nos pode abastecer a preços mais baixos, os salários diminuem e aumentam os lucros. Mas se os produtos obtidos mais baratos, quer pelo alargamento do comércio externo, quer pelo aperfeiçoamento das máquinas forem exclusivamente consumidos pelos ricos, a taxa de lucro não sofrerá alteração. Os salários não seriam afectados mesmo que o vinho, o veludo, a seda e outros bens de luxo diminuíssem 50% e, consequentemente, os lucros manter-se-iam inalterados.

É por isso que o comércio externo, embora extremamente benéfico para um país, visto aumentar o volume e a variedade dos produtos em que se pode aplicar o rendimento e incentivar a poupança e a acumulação de capital, devido à abundância e baixo preço dos produtos, não tem tendência a fazer aumentar os lucros do capital, salvo se os produtos importados forem aqueles que os trabalhadores consomem.” [37]

Como é sabido, a partir da teoria dos custos comparativos ou da diferença relativa de custos, Ricardo sustenta que cada país tem interesse em produzir e vender aos outros aqueles bens que pode produzir em condições relativamente mais favoráveis, i.é, aqueles bens cujos custos relativos são, no país considerado, mais baixos que no estrangeiro. Os benefícios do comércio internacional são os benefícios da especialização; e a especialização justifica-se pelo princípio da vantagem relativa.

O livrecambismo aponta para a conclusão de que a liberdade de comércio assegura ganhos para todos os países que dele participem, realizando uma perfeita harmonia de interesses:

“Num sistema de comércio perfeitamente livre, cada país consagra o seu capital e trabalho às actividades que lhe são mais rendosas. Esta procura de vantagem individual coaduna-se admiravelmente com o bem-estar universal. Deste modo, estimulando-se a indústria, premiando-se os eventos e empregando-se o mais eficazmente possível as possibilidades especiais concedidas pela natureza, o trabalho é melhor distribuído e com maior economia, enquanto que, aumentando a produção total, se espalha o bemestar por toda a parte e se ligam todas as nações do mundo civilizado com os elos do interesse e do intercâmbio. É este princípio que faz com que o vinho seja produzido na França e em Portugal, que se cultive o trigo na América e na Polónia e que se fabriquem ferramentas e outros produtos na Inglaterra.” [38]

Assim se consolidou, no primeiro país de indústria capitalista, a ideologia livrecambista, portadora de uma mensagem optimista: assente na tese de que a liberdade do comércio internacional traz vantagens para todos os países, independentemente do estado e do desenvolvimento relativo em que se encontrem, mesmo que se trate de relações entre as metrópoles e respectivas colónias.

Que a política livrecambista era a que mais convinha então à Inglaterra industrial ninguém duvidará. Por isso a Inglaterra a adoptou a partir de 1846, impondo-a, nomeadamente, às suas colónias, que assim sofreram a degradação progressiva da situação económica que tinham alcançado e a impossibilidade de elas próprias se industrializarem.

A revogação das Corn Laws (1846) simboliza a vitória definitiva da burguesia industrial sobre a velha aristocracia rural inglesa e constitui, como Marx salientou, “o maior triunfo que o livrecambismo alcançou no século XIX” [39]. Em grande parte, foi uma vitória (póstuma) de Ricardo e das suas teorias económicas.

 

9. – O ponto de partida de Marx são sem dúvida os princípios teóricos enunciados pelos clássicos ingleses, especialmente por Ricardo [40]. É o que se poderá concluir, desde logo, da análise da teoria do valor, pedra angular da teoria ricardiana e também da de Marx. Só que este, como escreveu Maurice Dobb [41], “tomou o sistema de Ricardo, despojou-o da sua armação de ‘lei natural’ e revolucionou o seu significado qualitativo”. Marx arranca da lei do valor ricardiana para explicar em que medida essa lei revela que a essência do sistema é a exploração dos trabalhadores assalariados, i.é, a apropriação pelos seus empregadores do excedente (mais-valia) por eles criado.

As mercadorias apresentam um valor de uso (uma utilidade para quem as possui) e um valor de troca, valores que se ligam um ao outro, pois nenhuma mercadoria se trocará (venderá) se não for útil a alguém. Só que o valor de troca de uma mercadoria não se reconduz à sua utilidade, uma vez que o valor (de troca) das mercadorias não é tanto maior quanto maior for a sua utilidade.

Marx sublinha que o valor de uso (laço particular entre o objecto e o indivíduo) não poderá de maneira nenhuma erigir-se em elemento objectivo, em medida comum utilizável simultaneamente pelos compradores e pelos vendedores, uma vez que, por definição, a mercadoria vendida não tem utilidade para o vendedor no momento em que a vende. O valor de troca deve medir-se por uma qualidade que seja comum para todos os produtores que aparecem a vender as suas (várias) mercadorias, uma qualidade social que permita as relações entre os vários produtores. A estas exigências satisfaz a teoria do valor de Ricardo: o valor de troca de uma mercadoria representa a quantidade de trabalho necessária para a sua produção.

Como Ricardo, também Marx sublinha que esta noção de valor de troca só se aplica aos objectos produzidos regularmente com vista à sua venda no mercado (as mercadorias). O preço das obras de arte (que são obras únicas), v.g., terá de explicar-se por considerações inteiramente diferentes.

Como Ricardo, Marx esclarece também que o trabalho utilizado na produção dos materiais e dos instrumentos de produção faz parte do valor dos bens acabados.

Preocupado em afinar bem os seus conceitos fundamentais, Marx acrescenta que o trabalho que importa, do ponto de vista da lei do valor, não é o trabalho concretamente gasto por um determinado trabalhador em uma dada empresa, mas antes o trabalho socialmente necessário à produção de uma mercadoria. E deixa bem claro que o que importa é o trabalho abstracto, ao qual se reconduzem os diferentes tipos de trabalho fornecidos pelos indivíduos que pertencem a profissões diferentes. O que não significa aceitar-se que todos os trabalhadores fornecem, no mesmo tempo, a mesma quantidade de trabalho abstracto: tanto assim não é, que a sociedade atende à qualificação e à intensidade do trabalho fornecido, pagando salários diferentes para remunerar trabalhadores de diferente qualificação ou com intensidade de trabalho diferente.

Em resumo: o que determina o valor de uma mercadoria é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produzir, o trabalho despendido por um operário de habilidade média, trabalhando com uma intensidade média e utilizando os instrumentos de produção normalmente utilizados em determinada época.

Marx retoma também a distinção de Adam Smith entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo. Entende que trabalho produtivo é “o trabalho que fecunda o capital”, que “gera uma mais-valia para o capitalista”, e esclarece que esta noção implica “uma relação social, que faz do trabalho o instrumento imediato da valorização do capital”. O próprio Marx sublinha que uma noção idêntica era a perfilhada pelos clássicos ingleses: “instintiva ou conscientemente, a economia política clássica sempre sustentou que o que caracterizava o trabalho produtivo era o facto de gerar uma mais-valia” [42]. Na categoria de trabalho improdutivo inclui, como Smith, os funcionários e as domésticas e – ao contrário do autor de Riqueza das Nações – a actividade puramente comercial, por entender que o tempo gasto pelo vendedor para obter um preço mais elevado não pode aumentar o valor da mercadoria. Considera, porém, como trabalho produtivo – além do trabalho utilizado na produção de bens materiais – o trabalho dos que se ocupam em empresas produtoras de serviços (v.g. empresas de transporte).

Ao contrário de Ricardo, Marx não identificou o valor do mercado com o valor em trabalho, o que explica a sua tese (que para Ricardo era apenas uma excepção) segundo a qual, nas condições do capitalismo, as mercadorias se não trocam pelo seu valor, mas antes por aquilo que Marx chama preço de produção (igual ao montante dos salários mais um tanto sobre o capital adiantado).

O objectivo de Marx é determinar o significado social do lucro capitalista: se se trata de excedente (no sentido fisiocrático, de valores pagos a alguém sem contrapartida), como aparece este excedente e de que condições depende o seu aparecimento?

Ricardo – como Smith – verificou, sem a conseguir explicar, a não-coincidência entre a quantidade de trabalho fornecida pelos trabalhadores e o salário que lhes é pago. Os dois autores ingleses, anotando que os capitalistas e os proprietários de terras recebem rendimentos sem trabalhar, aceitam que eles auferem uma parte do valor criado pelo trabalho. E os socialistas pré-marxistas (socialistas utópicos) defendem que os capitalistas ‘roubam’ os operários, comprando o trabalho abaixo do seu real valor.

Marx veio colocar o problema à margem das implicações morais do socialismo utópico e procurou mostrar, teoricamente, que o lucro é um elemento essencial do capitalismo e não um elemento acidental (como poderia ser o roubo), apresentando o capitalismo como um sistema de exploração necessária, desligando a exploração de qualquer atitude voluntarística, por parte dos capitalistas, e apresentando-a como um corolário lógico das próprias leis de funcionamento do capitalismo.

 

(continua)

 


Notas

[17] Cfr. Princípios, 103/104.

[18] Cfr. Princípios, 107/108.

[19] Cfr. Princípios, 104 e 111.

[20] Cfr. Princípios, 104/105.

[21] Cfr. Princípios, 116/117.

[22] Cfr. Princípios, 116-120.

[23] Cfr. Princípios, 183.

[24] Cfr. Princípios, 121/122.

[25] Cfr. Princípios, 112/113.

[26] Cfr. Princípios, 111 e 122. Esta é, para Ricardo, uma regra geral: “Em todos os casos, as mercadorias sobem de preço porque é preciso mais trabalho para as produzir e não porque encarece o trabalho necessário para as obter” (Princípios, 130).

[27] Cfr. Princípios, 138/139.

[28] Cfr. Princípios, 122/123.

[29] Cfr. Princípios, 105.

[30] Cfr. Princípios, 120 e 133.

[31] Cfr. Princípios, 133.

[32] Cfr. Princípios, 138/139.

[33] Cfr. Princípios, 334.

[34] Cfr. Princípios, 337.

[35] Cfr. Misère de la Philosophie, ed. cit., 202.

[36] Perante a facilidade com que Ricardo se desembaraça do fantasma do estado estacionário, ganha sentido a tese de autores para quem a noção de estado estacionário e a invocação da possibilidade da sua concretização poderão ter sido, na obra de Ricardo, um expediente destinado a assustar os defensores do proteccionismo e a mostrar a todos os perigos da manutenção dos privilégios feudais.

[37] Cfr. Princípios, 148.

[38] Cfr. Princípios, 148.

[39] Cfr. “Discurso sobre a questão do livre-câmbio”, publicado como anexo III da ed. cit. de Misère de la Philosophie, 197ss.

[40] Na Introdução de Michael P. Fogarty aos Princípios, escreve este (ed. cit., 8) que “O Capital [de Marx] é pura consequência da doutrina de Ricardo, desenvolvida e interpretada por um discípulo brilhante, com um fogo, rancor e habilidade na exemplificação prática que o próprio mestre nunca igualou”.

[41] Cfr. Introdução…, cit., 40.

[42] Cfr. Le Capital (trad. J.Roy), ed. cit., 365/366.

 


António Avelãs Nunes [1939-], É Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra.

Foi Director do Boletim de Ciências Económicas (1995-2012); Director da Faculdade (1996-2000); Vice-Reitor da Universidade (2003-2009).

Foi Secretário de Estado no Ministério da Educação nos cinco Governos imediatamente posteriores à Revolução de 25 de Abril de 1974.

É Agraciado com Ordem do Rio Branco (Brasil) e com a Ordem Tudor Vladimiresco (Roménia).

Foi Observador estrangeiro convidado pelo Ministério da Educação do Brasil para participar na Comissão Trienal de Avaliação dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, no âmbito da CAPES (2001, 2004 e 2007).

É Doutor Honoris Causa das Universidades Federais do Paraná, Alagoas e Paraíba e da Universidade de Valladolid, e Sigillo D’Oro da Università Degli Studi di Foggia.

É Membro Correspondente da Academia Brasileira de Letras Jurídicas; Vice-Presidente do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro (Rio de Janeiro) e Associado Honorário do CONPEDI.

(fonte: editora Almedina, aqui)

O Professor Doutor Avelãs Nunes é autor de numerosos livros e artigos, cuja listagem poderá ser consultada aqui.

 

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