Crise da Universidade: hoje, 28 de dezembro, dia do aniversário de Joaquim Feio – textos que ele certamente apreciaria se estivesse vivo — Texto 2. Algumas reflexões em torno da conferência de Sampaio da Nóvoa (1/2), por Júlio Marques Mota

Entre os intelectuais que mais se insurgiram contra a censura, encontramos Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estêvão de Magalhães (protesto contra a lei das Rolhas de 1850).

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A luta pela recuperação dos antigos, da economia dos clássicos, por um saber que documenta e interpreta os tempos, que ilumina as múltiplas faces da verdade, é uma luta bem atual, uma luta contra os ventos dominantes no ensino universitário (e não só universitário) que, em Portugal, optou pela erudição apressada em vez da maturação paciente e transdisciplinar, subjugando-se o seu rumo ao imediatismo do mercado.

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Nota de editor: dada a extensão do texto, o mesmo será publicado em duas partes, hoje a primeira.

18 min de leitura

 

Texto 2. Algumas reflexões em torno da conferência de Sampaio da Nóvoa (1/2) (*)

 Por Júlio Marques Mota

Coimbra, 28 de Dezembro de 2023

(*) Este texto foi elaborado com base na resposta por mim dada ao Professor Sampaio da Nóvoa a agradecer-lhe a disponibilização das notas/texto que constituíram a sua conferência dada em 2 de Dezembro na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. JM

 

 

Caro Professor Sampaio da Nóvoa

Obrigado pela sua atenção. Li o texto e, para mim, trata-se de um texto, não de notas para um texto. E trata-se de um texto de exceção.

Vivemos, do ponto de vista da ideia de Universidade, uma situação altamente crítica e deixe-me referir apenas algumas notas sobre as suas ditas notas:

1. Diz-nos:

Por um lado, o tempo. Por outro lado, a diferença. Todas as quatro expressões traduzem a vontade de assemelhar (e, num certo sentido, de assimilar) as universidades ao mundo social e económico. Para serem “modernas”, as universidades teriam de se ajustar aos empregos existentes, a uma ciência produtivista, a uma gestão idêntica às empresas, a um empreendedorismo presentista.”

Lamentavelmente, estamos muito aquém disto, deste sentido de modernidade e de ajustamento aos empregos existentes. Transformámos as Universidades no pior do que se poderia pensar delas:

Pela parte dos estudantes, transformámo-las em parques de estacionamento para jovens adultos onde estão não para aprender, isso custa, mas para obter um diploma. E este parque não tem nada a ver com o que Rossana Rossanda do Il Manifesto dizia dos anos setenta, em que aí se falava de um parque de estacionamento à espera de conseguir um emprego. Pela parte dos docentes, estes não estão lá para ensinar, não, eles estão lá para publicar, publicar. Exemplo: é raro o docente que na Universidade de Coimbra sobe de escalão: porque não se publica o suficiente nas revistas 3 A’s Tem-se rede ou não se tem rede, e a carreira, a estabilidade profissional, passa sobretudo por aqui.

As Universidades estão, pois, desligadas de tudo. Terminada a licenciatura, à saída da Faculdade, qualquer que ela seja, com exclusão de Medicina, desencadeia-se um processo delicado, delicadíssimo, de procurar emprego e depois, sobretudo isto, de ser capaz de o segurar.

Uma vez perguntei a um médico psiquiatra meu amigo, Pio de Abreu, que tipo de problemas a malta nova lhe apresentava: a resposta foi imediata, a angústia da procura do primeiro emprego ou a angústia de manter esse primeiro emprego, isto para quem o tem.

Se a angústia do primeiro emprego é normal, a outra já não o é. O estudante sai sem saber e, mais grave, com dificuldade em aprender a fazer. Nos tempos em que o Le Monde era Le Monde, isto é, antes da debacle do PSF, um filósofo francês, creio que era Marcel Gauchet, dizia-nos o seguinte: a escola tinha a função de ensinar a aprender; as empresas tinham outra função, a de ensinar a fazer. Ora, se o estudante sai diminuído nas suas capacidades de aprendizagem, necessariamente está diminuído nas suas capacidades de aprender a fazer. Daí se infere que, no contexto do primeiro emprego e do ponto de vista individual, é natural a tensão elevada do titular desse primeiro emprego, enquanto do ponto de vista social essa tensão deveria ser vista como anormalidade por razões externas ao próprio titular desse posto de trabalho, devida pois a razões internas à sociedade e que esta deveria assumir e corrigir com políticas de formação e de garantias de estabilidade de emprego.

 

2. Diz-nos: Naturalmente, a crítica à “universidade torre de marfim” voltou à ribalta. Num certo sentido, ainda bem.

Na expressão ainda bem, eu discordo. A expressão torre de marfim era claramente depreciativa, como se o que lá se aprendesse não tivesse nada a ver com o mundo real. Sou velho, a fazer 81 anos, muitos deles bem sofridos. Recuando no tempo, onde essa expressão era bastamente utilizada para dizer o que acabei de dizer, ainda me lembro de o Eurico de Figueiredo, já vão muitas décadas, se queixar disso, até pelos níveis de exigência, porque todos os seus professores queriam que eles, os alunos, estivessem à altura de quem os ensinava e com muita coisa que não era preciso! Pois é, produzíamos dos melhores médicos do mundo, o mesmo se passando com as engenharias, e poderíamos continuar. Se perguntássemos aos engenheiros suíços que trabalharam com Mariano Gago sobre as suas qualidades técnicas, dir-lhe-ão, muito provavelmente maravilhas, e isto quando se acusava a Universidade de ser uma Torre de Marfim.

O problema maior aí não seria ser a Universidade uma Torre de Marfim, o problema aí era não termos empresários à altura de perceber o ponto de vista de Marcel Gauchet, se a citação é correta. Mais recentemente: a Europa abriu as portas a turmas inteiras de enfermagem e de médicos, tudo gente saída das nossas escolas, a todos quantos quisessem sair. Dois dados: a Europa não os tinha e os nossos eram genericamente muito bons E eram aconselhados a sair da sua zona de conforto, por Passos Coelho. Pagamos as favas, agora. Pós Bolonha, a Universidade não é Torre de Marfim pelo que aí se ensina, porque, ao contrário das décadas dos anos sessenta e setenta, já quase não se ensina. Desligada está a Universidade do mundo real, isso é certo, logo é Torre de Marfim, mas pela razão inversa do que era acusada antes, está desligada não pela inutilidade do seu saber, mas por ausência do saber ensinável, daí a desvalorização dos diplomas a que se assiste, o que gera um paradoxo, assinalado por Marcel Gauchet (creio eu, pois cito de memória): quando menos vale um diploma menos vale quem o não tem. Um paradoxo que explica alguma corrida aos diplomas.

Bem mais grave que no caso anterior: o aluno sai sem condições de aprender a fazer! A angústia dos pacientes do Pio de Abreu passa por aqui.

Exagero da minha parte? Ainda muito recentemente me dizia um antigo colega meu e catedrático das Matemáticas: Júlio Mota, a coisa está preta. A minha filha e o meu genro, professores universitários, um em arquitetura e outro em engenharias dizem-me que por este andar qualquer dia não temos engenheiros para dirigir obras. Tudo dito.

 

Duas notas breves que percorrem o seu texto: a sociabilidade e a capacidade de abstração.

 

A) Abstração.

Em 2011 estou a dar uma aula de Economia Internacional e estou a explicar a relação de preços entre dois bens, bem y e bem x. A disciplina é do terceiro ano. O exemplo era mais ou menos este: a relação de troca entre os dois bens y e x é py/px=4, ou ainda y=4x. E eu dizia: o numerador representa o bem que está a ser avaliado e o denominador representa o bem que serve de unidade de medida ou de avaliação. E acrescentava: neste caso, bom, isto significa que o bem y vale o quádruplo do bem x, qualquer que seja o valor unitário do bem x. Pela cara de alguns alunos, eu estava a falar chinês. Imaginei então uma pequena história. Vivia numa aldeia e tinha um pomar distante da zona em que vivia. Peguei na pick-up e fui buscar um carregamento de maçãs. Na volta, ao passar por uma bomba de gasolina, reparei que a gasolina estava no limite da reserva. Quando vou à bomba, reparo que não tenho dinheiro. Tinha-me esquecido da carteira em casa. Vou ao balcão e relato a situação. Quanto é que precisa de gasolina? Um litro, respondi eu. Dê-me 4 maçãs e vá embora. E a pergunta foi: se a moeda for a maçã, quanto vale um litro de gasolina? A resposta foi pronta: 4 maças. Então, na igualdade anterior y é a gasolina, x é a unidade maçã. Todos perceberam a partir dali o que era um preço relativo ou uma relação de troca. Houve que descer ao raciocínio concreto para perceber o raciocínio abstrato.

Face a isto, questionei-me em plena aula: que estou aqui a fazer? Nada, foi a resposta que encontrei. E pedi a passagem à reforma. Tinha alcançado o tempo total, estava a trabalhar de borla, mas, assim, não e não.

Este tema foi mais tarde contado por mim numa conferência sobre Bolonha no ISEG: Levanta-se um professor e diz-me: Júlio Mota, a mim aconteceu-me o mesmo. Sejamos francos: há matemática até ao 12º ano, há matemáticas gerais I e II, há estatística, há econometria, há investigação operacional e o aluno não consegue entender o que é um preço relativo? O que é que falha nesta história? Possivelmente eu próprio, por isso, o melhor era sair! Talvez seja isso e foi isso que eu fiz.

Este incidente de aula, poderia contar mesmo muitos outros, obriga-nos ou deve obrigar-nos a pensar sobre o que é ensinar, sobre o que é aprender, uma vez que formalmente não poderia acontecer, mas aconteceu. A resposta mais simples e direta seria: os professores não ensinam matemáticas de jeito. Não é verdade, discuti muitas vezes com as assistentes de matemática. Esforçavam-se e de que maneira! Chamo a atenção para o que nos diz Marcel Gauchet sobre as aprendizagens:

“M. G.: O que é que sabemos sobre o significado da aprendizagem? Quase nada, de facto: passamos sem problemas do rato de laboratório e da psicologia cognitiva para as competências que interessam às empresas. Mas o essencial está entre os dois, no ato de aprender, distinto do saber, a que continuamos a referir-nos erradamente. Para a criança, aprender significa, em primeiro lugar, entrar no mundo dos signos gráficos através da leitura e da escrita e, assim, aceder aos recursos da linguagem revelados pela sua objetivação escrita.

É um processo infinitamente difícil e que nunca está terminado. Porque ler não é apenas decifrar, é também compreender. Envolve uma série de operações complexas de análise, contextualização e reconstituição sobre as quais não sabemos quase nada. Como é que conseguimos compreender o sentido de um texto?” Fim de citação

O problema das matemáticas acima assinalado é comum a muitas Faculdades e, em muitos casos, a via que se entende como melhor é a de tomar no próprio ensino da matemática esta como um meio e não como um fim em si-mesma. No campo da matemática isto é um erro. Aos matemáticos o ensino da Matemática, aos economistas o ensino em Economia e com a utilização das ferramentas que o conhecimento das matemáticas (pelos docentes e pelos alunos) permite utilizar quando as disciplinas de Economia  o requeiram  e que os docentes devem saber utilizar convenientemente. É o que sempre defendi, que sempre pratiquei e ninguém me mostrou que estava errado.

No campo das outras ciências, nas ciências onde a matemática é uma ferramenta de apoio e não um fim em-si mesma, deve-se dar utilização “concreta” às ferramentas adquiridas em matemática. Mas quando digo isto sublinho que estou totalmente contra qualquer ensino nas disciplinas onde ela, matemática, seja tomada como um fim e a matéria da disciplina onde a matemática é utilizada seja tomado como um meio! Aberrante. Há quem o faça assim. Ora, isto é o que se faz no ensino de elevado nível em Economia pelos economistas da linha de pensamento neoliberal, a nível de mestrados e doutoramentos, onde se usa e abusa da matemática e de tal modo que o estudo das matemáticas abafa a matéria de Economia a ensinar.

Contava-se uma história no ISEG curiosa: alguém terá utilizado exclusivamente o Manual de James M. Henderson – Richard E. Quandt na cadeira de microeconomia no segundo ano e o resultado era: os alunos saíam sem saber matemática e sem saber microeconomia. Antes a sebenta da Filomena Ribeiro Gomes da FEUC no final dos anos 70 e início dos anos 80. Menos ambiciosa mas bem mais útil desde que a entendamos como texto situado no interior do modelo de ensino neoliberal. Explicava-o, era o que se lhe exigia. A crítica pertencia a outros mas nos anos seguintes. Àquele nível não se poderia fazer a análise crítica do que ainda não se sabia.

Pedi a um antigo professor de Matemática no ISEG e dos meus tempos que me revisse este texto. Sugeriu-me o seguinte acrescento com o qual concordo plenamente e sobre o qual dou a seguir um exemplo pessoal:

“A matemática é um instrumento que tem de ser bem dominado e melhor ensinado e aplicado. Lamento, mas hoje não se estuda matemática e menos ainda a sua aplicação. Não temos professores ao nível de um Bento de Jesus Caraça, de um Dias Agudo, de um Sebastião e Silva e de outros semelhantes. Pergunto: onde estão os grandes professores de hoje em dia, com capacidade para abrir a mente dos alunos e meter tudo lá dentro, sem esforços desnecessários e com clareza inesquecível.”

Sobre este acrescento que me foi sugerido dou um exemplo: em tempos recentes precisei de tirar uma dúvida à minha neta e o texto que fui procurar para me relembrar foi exatamente o manual do Sebastião e Silva. Na mesma linha, fiz matemática como um autodidata no liceu Pedro Nunes em 1962 quando estava em tratamento da tuberculose e num quase confinamento total em Fratel. Nunca mais esqueci o Compêndio de Álgebra nem a Geometria Analítica. A minha conclusão é: a matemática quando bem aprendida na idade devida nunca mais é esquecida. No máximo precisa de ser relembrada, é um pouco como aprender a andar de bicicleta quando se é pequeno. É isso que os vários casos abaixo apresentados nos mostram à evidência, com alunos que há muito tempo tinham largado os bancos dos liceus a utilizarem, de novo, as matemáticas que aí muito bem foram ensinadas e aprendidas, como se viu anos depois, com os resultados obtidos, quando se voltaram a sentar nos bancos da Universidade. Talvez nenhum deles saiba, mas o esforço por mim realizado ao querer tornar-lhes a matéria mais ou menos acessível levou a que eu próprio tenha aprendido a dominar muito melhor a matéria do que antes. Explicar a alunos destes a condição ou efeito Laursen-Metzler-Harberger não era tarefa nem fácil de ensinar, nem fácil de aprender e eles aprenderam-na! Alguma coisa lhes devo também.

Este é um terreno que merece estudos pedagógicos e não só, em profundidade em vez do que se faz agora que é eliminar o problema, ou escondê-lo. O que aqui está em jogo é não só a arte de ensinar a aprender, pelo lado dos docentes, e pelo lado dos alunos, a criação das capacidades para aprender a aprender, é também a um outro nível a descoberta das vias e dos mecanismos mentais de aprendizagem eficazes pelas quais isto pode ser feito ! São tarefas complexas, assumamo-lo de uma vez por todas.

Deixem-me apresentar alguns casos que evidenciam a complexidade do que acabo de dizer.

 

Caso 1.

Tive em Economia Internacional um aluno italiano em Erasmus: Creio que este caso se passa numa altura em que o curso era de 5 anos. O aluno vinha de um curso de engenharia em Turim e com boa média. Foi integrado em avaliação contínua num grupo com dois portugueses. A disciplina era anual. A discussão do trabalho foi espantosa, e tão espantosa que parecia que os dois portugueses sabiam tanta matemática quanto ele. Tiveram nota máxima e os bons conhecimentos em matemática do aluno italiano serviu poderosamente como ferramenta e com benefício para todos eles, mesmo para os que à partida saberiam menos matemática que o aluno italiano. Há aqui um efeito difusor de conhecimentos e de estímulo entre eles, o que explica a prova realizada. A ferramenta de base estava lá bem aprendida, a Matemática, como estava lá também a capacidade de abstração que com a aquisição daquela tinha sido obtida e a passagem de uma ciência para a outra tornou-se assim extremamente fácil. Daí a nota elevada que foi obtida. Pense-se neste caso.

 

Caso 2.

Em Economia Internacional tive um aluno chinês que na prova escrita teve 13 valores em 20. Pediu, não revisão de prova, pediu uma ida à oral. Alertei o aluno de que com uma ida à oral punha em risco a nota da escrita uma vez que a nota final seria a média de prova escrita e da prova oral. Insistiu. Na altura tinha como assistente o irmão do ex-ministro das Finanças. João Leão, um tipo complicado mas inteligente.

A oral foi puxada. Tratava-se de ultrapassar a linha divisória, a classificação final de 14 valores. Foi uma oral brilhante. Tomou-se como objeto da oral o capítulo mais duro da disciplina: o modelo de Stuart Mill lecionado em profundidade. A meio da oral, o meu assistente diz-me baixinho: este tipo não percebe nada disto. Respondi-lhe: já vais ver. E viu. Viu logo a seguir que a sua opinião sobre o aluno estava errada. Chegado ao fim de uma longa demonstração matemática, o aluno escreve no canto inferior direito as três letras mágicas, a atestar a confiança do aluno: cqd ! A demonstração, a explicação dos passos, tudo era feito de forma rápida e dito com clareza. No fim, este aluno ainda pede desculpa pela sua lentidão quando era mais rápido que o próprio assistente que o estava a examinar!

Feita a oral, perguntei-lhe como é que estava ali. A explicação é curiosa: tinha uma bolsa do governo chinês, e tinha vindo para o curso de Relações Internacionais. Depois, pediu autorização ao seu governo para se transferir para a licenciatura em Economia. Aí irritei-me e terei dito mais ou menos isto: não esteja a brincar comigo. Nenhum aluno de Relações Internacionais poderia fazer esta oral como o senhor fez. A resposta foi imediata porque ele percebeu bem que eu não estava a dizer mal dos alunos de Relações Internacionais e diz-nos: “Sabe, no meu país temos todos as mesmas matemáticas até ao último ano do liceu”.

Percebi, disse eu. As matemáticas ensinadas e aprendidas de forma decente e na altura própria, e utilizadas depois como ferramenta de forma brilhante, foi o que aquela oral mostrou. E deve ter tido 18 valores na oral pois julgo que terá saído com média de 16. Mais tarde este aluno foi ao programa Ponto de Encontro do Henrique Mendes contar a sua história de vida. O programa pagou a vinda dos pais que ele não via há alguns anos.

 

Caso 3.

Este diz-me respeito. Um amigo meu e dos meus pais tinha o filho a estudar em Lisboa. Este aluno, bom aluno, começou a patinar na matemática. Não saía da zona complicada do 3 em 5 de hoje. O pai, de alcunha o José Ferrador, perguntou-me se eu lhe podia dar umas explicações. Estamos no final dos anos sessenta início dos anos 70. Disse que sim. Ao fim de semana eu deslocava-me a Mem-Martins para lhe tirar dúvidas e o António Pinto Bonifácio [1] passou genericamente para a nota de 4/5 em Matemática. Ofereci-lhe na altura, como reconhecimento do seu mérito escolar, o livro Os Esteiros de Soeiro Gomes. Adorou. Curiosamente deixou de precisar de explicações e nunca mais deixou o patamar da escala 4/5. Várias décadas depois, obtém o grau de mestre com uma tese defendida no ISEC de Coimbra que me é dedicada, facto de que eu tive conhecimento há cerca de dois anos.

Um grão de areia na máquina mental de um estudante que se tirou e foi um estudante brilhante que se criou. O mérito é meu? Claramente que não. O mérito é exclusivamente do aluno em questão, eu tive apenas a sorte de carregar no botão certo para incentivar os mecanismos de aprendizagem. Presumo, presumo apenas, que esse mecanismo terá sido a transmissão do meu entusiasmo pela matemática, apenas isso e esse entusiasmo ainda hoje dura.

Mas na sua nota o António Bonifácio vai mais longe, fala da importância das ditas explicações no seu futuro quando nos diz:

“e não tenho qualquer dúvida que foram um dos pilares do sucesso e eficácia posterior. Especialmente como adulto.”

Podemos ver a situação inversa, a de hoje, com os confinamentos devidos ao Covid e os seus efeitos no futuro das crianças de agora. Estes confinamentos geraram nas crianças não grãos de areia nos mecanismos mentais e nos caminhos da aprendizagem, mas enormes pedregulhos que a maioria das crianças não pode evitar.

Devido aos confinamentos a maioria dos alunos da escola primária tiveram uma má primeira classe, a que se seguiu cumulativamente uma má segunda classe e, desta forma, não poderiam vir a ter uma boa terceira ou quarta classe a menos que a falta do ensino presencial fosse substituída por um forte apoio escolar por parte da família que evitava assim os referidos pedregulhos. Neste último caso os efeitos dos referidos pedregulhos sobre o crescimento intelectual das crianças seriam mínimos e ultrapassáveis já a curto prazo. Mas a maioria da população não tinha a possibilidade de evitar essas dificuldades, e, convenhamos, retirar esses pedregulhos do caminho dessa juventude uma vez no seu caminho colocados é coisa muitíssimo mais difícil do que retirar o grão de areia nos mecanismos de aprendizagem do António Bonifácio. Exige dinheiro que as famílias não têm para gastar e que os Estados não querem gastar, na linha das contas certas.

Não foi criada nenhuma medida de retificação da potencial redução da criação de capacidades cognitivas na nossa juventude em tão tenra idade porque qualquer medida que se tomasse custaria muito dinheiro ao Orçamento público e chocaria com a ideia neoliberal das contas certas de que tanto ouvimos falar. Quando se responde a uma crise como aquela que passámos, e de que ainda não saímos, com a aplicação de contas certas, é certo que estas contas certas serão incertas no futuro. Veja-se: no tempo de Passos Coelho reinou a lógica das contas certas: queremos ir mais longe e mais rápido que a Troika, dizia Passos Coelho. O resultado: veja-se agora os seus efeitos sobre a educação, sobre a saúde, sobre o desinvestimento público, sobre a desestruturação das competências de mão-de-obra, sobre o bloqueamento de muitas funções nos serviços do Estado, sobre a justiça, etc. Dito de outra forma, depois das contas certas, as contas ficaram brutalmente incertas e para muito tempo. Nada disto ficou certo!

As contas certas na educação significam que a prazo iremos ter muito insucesso escolar a todos os níveis de ensino, com particular realce para um ensino que já está em muito mau estado, o ensino profissional. Mas que importa isso, se são os filhos dos pobres as vítimas? É o que pensam, mas não dizem, os neoliberais assumam-se eles de esquerda ou de direita.

Dir-me-ão que estou a exagerar. Não creio. Basta olhar para um calceteiro a trabalhar: Olha para o espaço onde tem que colocar a pedra, olha para as pedras que já lá estão, olha para a pedra que tem de cortar e perceber de imediato por onde tem de a cortar se é que tem de o fazer. Olhem para um ladrilhador a colocar ladrilhos em zonas angulosas. Olha para o espaço a cobrir, olha para o azulejo e percebe de imediato como tem de cortar. Olhem para um carpinteiro a colocar rodapés em zonas angulosas. Quanto à madeira a cortar e de como cortar é tudo calculado num ápice. Percebe-se o elevado nível de abstração e o ritmo com que esta capacidade é exercida.

Falamos apenas de atividades que são consideradas puramente manuais. Mas não são puramente manuais: exigem um grau relativamente elevado de abstração. Sem formação adequada e na idade adequada estas capacidades não serão desenvolvidas. Com os miúdos a terminarem este ano a quarta classe não vejo que a maioria deles possa vir ser artista nestas artes manuais exatamente pela amputação nas capacidades cógnitas e de abstração a que foram sujeitos num período chave do seu desenvolvimento mental, efeitos estes que não foram a seguir imediatamente minimizados. A fatura dessa negligência será no futuro bem pesada.

Mas a fatura pode ser muito mais pesada do que pensamos agora se tivermos em conta os ventos que já começam a soprar sobre o mundo das competências profissionais, ventos estes que nos vêm do futuro, a acrescer aos problemas do mundo do trabalho de hoje. Sobre isto diz-nos um economista de referência, Dan Rodrik:

“ (…) A natureza do emprego de uma pessoa tem implicações que vão muito para além do seu orçamento. O emprego é uma fonte de dignidade pessoal e de reconhecimento social. Estas ajudam a definir quem somos, a forma como contribuímos para a sociedade e a estima que esta, por sua vez, nos concede (…)

Em termos mais gerais, os empregos são o cimento da vida social. Quando os empregos decentes da classe média desaparecem – devido à automatização, ao comércio ou às políticas de austeridade – não há apenas efeitos económicos diretos, mas também efeitos sociais e políticos de grande alcance. A criminalidade aumenta, as famílias desagregam-se, as taxas de dependência e de suicídio disparam e o apoio ao autoritarismo aumenta.(…)

De facto, o facto de as pessoas passarem de maus empregos para melhores empregos engloba todo o processo de mudança estrutural que impulsiona o desenvolvimento económico. É crucial desbloquear este processo de forma rápida e sustentável, e a industrialização, historicamente, tem sido o principal motor para o fazer. (…)

O problema agora é que as indústrias transformadoras já não são os sectores absorventes de mão de obra que foram no passado. Uma combinação de fatores – em especial a acrescida intensidade em competências e em capital dos métodos de fabrico modernos e a forte concorrência internacional para aderir às cadeias de valor globais – tornou muito difícil para as economias em desenvolvimento aumentar o emprego na indústria transformadora formal.( O sublinhado é nosso)

A consequência inevitável destas tendências é que a maior parte dos melhores empregos terá de ser gerada nos serviços, tanto nos países em desenvolvimento como nos países desenvolvidos. (…)

Por muito difícil que seja, os governos têm de aprender a aumentar simultaneamente a produtividade e o emprego nos sectores de serviços de mão de obra intensiva.(…)”. Fim de citação

Nesta perspetiva, a pergunta que imediatamente se levanta é a seguinte: que mão-de-obra profissionalmente competente, na agricultura, na indústria e nos serviços de alto valor acrescentado iremos ter no futuro com estes jovens a que acabo de me referir?

 

Caso 4. Licenciados em Direito e a Economia

Dois licenciados em direito, o saudoso Aníbal de Almeida da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Catarina Frade da Faculdade de Economia. O primeiro teve umas explicações de Matemática com o Professor Delgado, depois arrancou por si e ainda me lembro de lhe ter explicado o método dos subsistemas para o tratamento da obra de Sraffa, explicação esta que ele mais tarde veio a utilizar num trabalho sobre Sraffa. E com clara mestria das ferramentas utilizadas. A segunda foi minha aluna naquela que era considerada a disciplina mais difícil do Mestrado; Macroeconomia da Economia Aberta. Aqui, ao contrário do aluno italiano ou do aluno chinês não havia a ferramenta matemática nem a abstração que a aquisição da Matemática gera, mas havia uma outra coisa que era equivalente em termos de capacidade de abstração: as estruturas formais de pensamento que se desenvolvem com um bom curso de Direito feito. A aquisição da ferramenta Matemática torna-se assim mais fácil, dado o quadro de pensamento lógico já antes alcançado, e foi o que aconteceu com Aníbal de Almeida e com Catarina Frade, com a diferença que esta tinha contra si um tempo curto para tudo isto: para aquisição das ferramentas e para o estudo da Macroeconomia. Saiu-se bem ela e ironia, direi eu, eu também.

No fundo estamos sempre a falar da capacidade abstração e não se pense que estou a exagerar. No quadro da exemplificação que temos vindo a seguir quanto à importância da capacidade de pensamento abstrato e dado que acabo de falar de gente formada em Direito deixem-me reproduzir uma situação curiosa passada entre Piero Sraffa, formado em direito e autor da obra mais importante de teoria económica da segunda metade do século XX, Produção de Mercadorias através de Mercadorias, e Geoffrey Harcourt, formado em economia e doutorado por Cambridge em 1960. É um exemplo extremo de um homem formado em Direito face a matemáticos altamente especializados que o contestavam, a mostrar a importância da capacidade de raciocínio lógico na ciência,

Harcourt diz a Sraffa que há por aí um americano, Levhari, a demonstrar com o seu teorema de não-substituição a impossibilidade do retorno ( ou reversão) das técnicas quando a matriz de produção é indecomponível. Ah, eu estou errado! Não, tu vais-lhe mostrar que quem está errado é ele. Eu, questionou Harcourt. Eu? Eu não sei nada de matrizes, acrescentou. E a resposta de Sraffa para Harcourt impressiona: eu também não sei. E é assim que entram outros, agora matemáticos de alto calibre, a demonstrar e demonstraram com desenvolvimentos matemáticos complexos o que Sraffa, do ponto de vista lógico, previamente já sabia, que Levhari e Samuelson estavam enganados. Dito de outra maneira, a Escola de Cambridge inglesa com a reabilitação dos clássicos venceu a Escola de Cambridge americana, um dos bastiões da teoria neoclássica.

 

Caso 5. Uma professora de Geografia, Lúcia Catarino, do Liceu D. Duarte, em Coimbra

Tive na disciplina de Mestrado Macroeconomia da Economia Aberta uma professora de Geografia. Lúcia Catarino. De base teria tido um bom ensino secundário, alínea C, com Matemática A (matemática A?) que terá sido bem compreendida e melhor aprendida. A sua formação em Economia seria, pois, mínima e conseguiu fazer a disciplina de Macroeconomia da Economia Aberta com muito boa classificação. Fez a disciplina com uma classificação de 15 valores e um dado curioso: fez o melhor caderno de apontamentos de que tive conhecimento até essa altura. Vi-os, revi-os e na sua elaboração denotava uma disciplina de trabalho e até de rigor. A disciplina de Macroeconomia ter-lhe-á dado algum trabalho comparativamente com outras disciplinas, mas repare-se não trazia grandes conhecimentos de economia na sua bagagem intelectual, mas trazia nela a capacidade de abstração que um bom 11º ano de matemáticas lhe permitiu adquirir, que anos de ensino em Geografia e com qualidade lhe permitiu consolidar e aprofundar e uma força de vontade enorme. Uma trilogia de qualidades a garantir o sucesso. A classificação obtida diz tudo.

 

Caso 6.

Lecionei em Gestão uma disciplina intitulada Negócio Internacional. Era uma disciplina constituída a partir de duas disciplinas da licenciatura em Economia, Economia Internacional e Finanças Internacionais, adaptadas as matérias à estrutura dessa licenciatura. Não era uma cadeira fácil, no dizer do coordenador da Licenciatura em Gestão de então, exigiria bem mais trabalho do que a média e, por isso, foi eliminada, o que não é de estranhar. Os alunos de Gestão eram ao nível das aprendizagens muito diferentes dos de Economia e salvam-se algumas exceções como as duas Patrícias, hoje professoras na FEUC, o Filipe Soveral e o Filipe de Almeida e pouco mais.

Mas houve um caso que vale a pena aqui citar. Tive um aluno da Guiné chamado Brenner (com um n ou dois, não sei). Tinha como professor das práticas o Luís Peres Lopes. O aluno foi à oral, com uma prova escrita cotada em 8 valores em 20. O assistente diz-me, antes da oral começar: vai ver, este aluno é muito bom. Não acredito, mas vamos ver, terei respondido. Fiz uma pergunta de teste. Deu bem. Estiquei então a oral e foi uma oral brilhante, brilhantíssima.

Face a este tipo de oral perguntei-lhe como é que explicava a nota tão baixa na escrita e a resposta foi mais ou menos isto: aleijei-me, tive que ser internado no Hospital e saí na véspera da prova escrita. Disse-lhe a nota final, altíssima para a média e disse-lhe mais: vai para o quinto ano (os cursos ainda eram de 5 anos) peço-lhe que me dê o prazer de lhe oferecer as sebentas do 5º ano e toda a bibliografia de base recomendada pelos seus professores do 5º ano, esperando que passe a mais disciplinas com o brilho com que passou agora nesta. E paguei a fatura no início do ano seguinte. Não me lembro de quanto, direi apenas que foi uma boa nota como se diz na minha terra, mas isso é aqui o que menos interessa. Depois de liquidada a fatura dos livros e das sebentas terei ficado com a leve sensação de que este evento representava uma réplica do que aconteceu comigo no liceu Pedro Nunes por volta de 1962. Talvez sim, talvez não.

Este último caso parece ser irrelevante, mas não o é e de modo nenhum. Vejamos porquê:

Este aluno vai para o ISEG onde se inscreve no Mestrado que creio designar-se por Mestrado em Teoria do Crescimento e Desenvolvimento. Soube depois pela voz da Professora Paula Fontoura que ele era o melhor aluno do curso. Desta história sabe apenas o assistente que assistiu à oferta e a Dona Maria José dos textos porque foi ela que recebeu das minhas mãos o pagamento das sebentas que gratuitamente lhe foram entregues, não o dos livros, claro. Mas sublinho que ele fez na FEUC o curso de 5 anos, o que é aqui bem relevante, e como bom aluno que era, foi equipado em capacidades cognitivas para mudar de comboio, de Gestão para Economia, e com o sucesso referido.

 

(continua)

 


Notas

[1] Perguntei ao António Bonifácio se autorizava falar no seu nome. Depois de limpa de uma imprecisão eis a resposta:

“Viva,

Não me importo que diga o meu nome no texto, porque são recordações que me são caras e das quais guardo grande gratidão e não tenho qualquer dúvida que foram um dos pilares do sucesso e eficácia posterior. Especialmente como adulto.

– Eu estudava na Cacém, morava em Mem-Martins, mas a quase totalidade das suas explicações (Matemática e Francês) eram dadas essencialmente na sua casa em Lisboa. No intervalo, você assava um petisco no álcool e rodava os seus discos de cantigas de intervenção (foi a primeira vez que ouvi falar de democracia e fui para casa ver o dicionário da porto-editora que dizia que era “… o voto do povo…”).

– Os Esteiros (já o li 3 vezes), mas na altura incomodava-me o final, realista. Mas a dificuldade desses miúdos, facilmente as via nos meus colegas mais humildes, por alguns tostões tinham que ir fazer os trabalhos sazonais:- gramar o linho, trabalhar para a debulhadora, apanhar lande e azeitona, guardar as cabras e no tempo da escola, faziam os deveres à noite à luz da candeia. Se adormeciam sem os fazer, tinham o respetivo “corretivo” no dia seguinte.

– Mas não me esqueço também que num belo domingo decidiu que fazíamos gazeta à explicação (eheheh), considerando que fazia parte da cultura de um jovem, irmos ao Mundial ver “A volta ao mundo em 80 dias” com o Cantiflas (Roberto Moreno). A primeira vez que fui ao cinema. Não é esquecível.

– Recordo também que num outro domingo a explicação foi dada numa mesa de café, (?), onde você se ia virando para me orientar nos exercícios e na outra mesa ao lado liderava a conversa com um grupo de jovens universitários. Despertou-me a atenção do tema porque não era trivial. Algo como arrancar pedras da calçada para lançar à polícia e quando essas acabassem, já havia outro monte noutra rua com o mesmo fim. Fiquei a pensar na coragem que era necessária para tal ato, mas como miúdo não percebia o motivo. Só o percebi depois de Abril de 74.

Forte abraço,

AB”

 

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