Crise da Universidade: hoje, 28 de dezembro, dia do aniversário de Joaquim Feio – textos que ele certamente apreciaria se estivesse vivo — Texto 2. Algumas reflexões em torno da conferência de Sampaio da Nóvoa (2/2),  por Júlio Marques Mota

Entre os intelectuais que mais se insurgiram contra a censura, encontramos Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estêvão de Magalhães (protesto contra a lei das Rolhas de 1850).

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A luta pela recuperação dos antigos, da economia dos clássicos, por um saber que documenta e interpreta os tempos, que ilumina as múltiplas faces da verdade, é uma luta bem atual, uma luta contra os ventos dominantes no ensino universitário (e não só universitário) que, em Portugal, optou pela erudição apressada em vez da maturação paciente e transdisciplinar, subjugando-se o seu rumo ao imediatismo do mercado.

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Nota de editor: dada a extensão do texto, o mesmo será publicado em duas partes, hoje a segunda.

18 min de leitura

 

Texto 2. Algumas reflexões em torno da conferência de Sampaio da Nóvoa (2/2) (*)

 Por Júlio Marques Mota

Coimbra, 28 de Dezembro de 2023

(*) Este texto foi elaborado com base na resposta por mim dada ao Professor Sampaio da Nóvoa a agradecer-lhe a disponibilização das notas/texto que constituíram a sua conferência dada em 2 de Dezembro na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. JM


 

(conclusão)

 

Os casos que acabámos de referir têm em comum o facto de estes alunos terem tido todos eles uma sólida formação de base que lhes trouxe a longo prazo, mesmo sobre matérias que estavam fora da sua área de formação, uma boa capacidade de aquisição de novos conhecimentos.

Ora a boa base de conhecimentos a que me refiro começou a faltar desde a reforma dita de Bolonha e é curioso que até a linha de resistência das Universidades que eram os Mestrados Integrados terão desaparecido por imperativo legal [2]. E aqui levanta-se a mesma questão que colocámos a propósito do texto de António Bonifácio: É preciso ser-se competitivo, atrativo, no mercado da educação e, portanto, situemo-nos no ensino de baixo nível, ensino lowbrow, no ensino de elevada simplificação e, se possível, em inglês para captar mais gente. Que gente?

É preciso que nos adaptemos aos alunos que temos é o que ouvia dizer nos corredores, como crítica ao meu posicionamento como docente. No fundo a questão que aqui se nos coloca é: quais os efeitos negativos a médio e longo prazo sobre a juventude de agora com os efeitos (negativos) gerados pelo ensino que se pratica atualmente?  Daqui a uma década será possível presenciar percursos escolares como aqueles que acabo de descrever? Não, não creio que isso seja possível. Podem encher as Faculdades de Doutorados, podem ter muitos catedráticos na casa dos 40-50 anos, podem ter tudo isso, mas nessa altura e pelo caminho que se continua a seguir, um doutoramento em termos de conhecimentos gerais, e em qualquer licenciatura, valerá então menos que uma licenciatura de 5 anos de antigamente.

Se utilizarmos a metáfora dos comboios diremos que estaremos a criar viajantes admitidos apenas em comboios de terceira classe cujas paragens serão apenas apeadeiros. Alguns destes estudantes, muito poucos, poderão ganhar acesso aos comboios ditos Intercidades, com paragens nas grandes estações nacionais, e alguns felizardos, menos que no caso anterior, poderão viajar em comboios Alfa ou melhores ainda, tanto no espaço nacional como no espaço internacional, mais por mérito da genética e/ou do esforço pessoal do que pela arte de crescer nas nossas escolas do futuro que se avizinha.

Este é um cenário que me assusta, que me mete algum medo, uma vez que este cenário, a verificar-se, representa a morte das Universidades, e disso não tenhamos dúvidas. Talvez nos reste apenas a esperança cantada por Bruce Springsteen quando no auge da crise provocada pelo choque Volcker (elevação drástica dos juros nos EUA, após o segundo choque petrolífero em 1979, quando era presidente do Fed) cantava no álbum Nebraska (1982), na canção Atlantic City:

“Well, now, everything dies, baby, that’s a fact

But maybe everything that dies someday comes back”

Estes exemplos mostram-nos como é complexa tanto a arte de aprender a aprender, como a arte de ensinar a aprender e mostram-nos também que há previamente um conjunto de requisitos a satisfazer, e estes requisitos custam dinheiro, exigem fortes investimentos em educação e em formação. Só assim se poderá conseguir que estas duas artes  sejam bem sucedidas nos seus objetivos. É por isso que eu gosto da expressão de Gauchet, à Escola cabe a obrigação de ensinar a aprender, às Empresas, à Sociedade, a obrigação de ensinar a fazer.

Quando estava à procura da citação de Gauchet que não encontrei, antes encontrei um texto curioso (na entrevista a Marcel Gauchet conduzida por  Virginie Leray – original aqui) que se liga com o seu texto e com as minhas notas. Reproduzo:

“Estamos numa altura de recomposição de um novo equilíbrio pedagógico, que deve fazer o balanço do duplo fracasso do modelo tradicional de transmissão e do modelo da liberdade de aprender. O primeiro, caricatural, só se preocupava com o que os alunos teoricamente precisavam de saber, sem qualquer preocupação com o que realmente ficavam a saber. Quanto ao segundo, que se tornou a norma hoje em dia, colocou a atividade do jovem no centro, sem se preocupar suficientemente com os conteúdos a adquirir. Sem ser nostálgico, o desafio consiste em ligar o ensino e a aprendizagem, em vez de continuar a opô-los. Para isso, é necessário clarificar o novo papel da transmissão e elucidar o ato de aprender.

Que alavancas estão à disposição dos educadores?

Os avanços da neurociência estão a abrir uma janela muito interessante para a caixa negra do ato de aprender. Os professores têm de aproveitar esta oportunidade para conceberem a sua própria abordagem para animar grupos em aula, elaborar em progressões, etc.

Para além da nossa amnésia de adultos, trata-se também de perceber a dificuldade intrínseca das aprendizagens ditas elementares. Essenciais e de base, a leitura, a escrita e a contagem revelam já o poder misterioso da abstração, conduzindo-nos ao labirinto do sentido e depois ao labirinto da interpretação. A relevante importância da palavra escrita nas aprendizagens mostra claramente que não se trata de um processo natural, mas cultural. Requer um treino necessariamente fastidioso, e cabe ao professor torná-lo excitante.” Fim de citação

Passa por aqui tudo o que entendemos por necessidade de abstração e não vale a pena continuar com este tema, mas há qui uma questão central que devemos colocar em evidência: como é que se faz de uma criança um jovem quase adulto, de um jovem quase adulto um adulto no sentido estrito do termo, tanto quanto a criação das capacidades de abstração são uma chave dessa dupla transformação, dessa passagem de uma idade a outra.

Em meia dúzia de linhas digo-lhe como foi a minha passagem: venho do mundo dos que não têm quase nada, analfabetos, mas não analfabrutos. No final da sua vida passaram a ser pequenos comerciantes. Não sabiam ler, não sabiam escrever. Com o seu livro de fiados em branco, registavam tudo na cabeça e nunca houve enganos. Vá-se lá perceber como.

Saio da primária e entro para uma moagem/padaria local até aos 12 anos. Depois, porque queria estudar emigro então para Lisboa, num emprego arranjado pelo meu pai: marçano, hoje dir-se-ia distribuidor. Passei a viver num país novo, onde tudo me era estranho, exceto a língua. Como marçano corri as ruas de Lisboa, corri pelas vidas de muitos dos meus clientes que servi, com um livro de fiados a atestar a pobreza. Revoltei-me contra Deus pela injustiça que vivia e que via os outros viver e em Seu nome ia perdendo o emprego porque alguém me pediu 400 gramas de atum e eu escrevi no caderno das minhas encomendas diárias 400 gramas de filosofia. Depois fui operário numa fábrica de borracha na rua Centro Cultural em Alvalade, Lisboa, onde fui protegido pelo meu patrão. Samuel Ramiro Sequeira. E tanto assim que, um dia em que a PIDE me foi buscar à fábrica de borracha Monsanto para me levar para a António Maria Cardoso enfrentou os esbirros que me levaram interrogando-os sobre o que se passava. Dessa pergunta não obteve resposta e declarou-lhes mais ou menos isto: fiquem sabendo que me levam um dos meus melhores trabalhadores. Um ar de espanto do outro lado. Naturalmente assim. Numa fábrica de gente precária os seus melhores trabalhadores não poderiam ser gente comunista. Uma intervenção que me terá ajudado a ser libertado no dia seguinte depois de prolongado interrogatório.

Depois comecei a estudar. Fiz exames como aluno externo no Pedro Nunes Depois…. Depois chego a uma oral do sétimo ano. A prova escrita estava toda ela sublinhada a vermelho. A oral decorreu exclusivamente sobre as notas a vermelho do avaliador. Correu muito bem. Quando terminou perguntaram-me o que é que fazia. Talvez com a voz embargada e tensa disse mais ou menos isto: sou operário fabril. Estou com baixa por tuberculose em tratamento ambulatório e venho da minha terra aqui fazer exame. De repente, como se projetados por uma mola, os 3 elementos do júri levantaram-se e vieram-me felicitar. Cada um deles deu-me uma lembrança daquele exame, uma esferográfica, uma revista e o terceiro elemento do júri, uma professora, até se atrapalhou a tirar um livro da sua mala para me oferecer. Terei tido na oral 17 ou 18 valores, já não sei bem. Quando me levanto, toda a sala se levanta e sai para me abraçar ou beijar. Eu tinha acabado de dizer que estava em tratamento de tuberculose. Nenhum daqueles que me abraçaram, nenhuma daquelas que me beijou soube quão importante foi essa manifestação de humanidade: Senti-me jovem adulto e ao descer sozinho a rua Álvares Cabral naquela tarde de temperatura amena e de céu de azul pintado com farrapos de nuvens brancas, senti-me um homem, e não um homem só, mas um homem almofadado pelo mundo das ideias na oral defendidas e, curiosamente, almofadado também pelo efeito daquela enorme e inesperada manifestação de afeto.

Mas à volta desta tuberculose dois detalhes diversos e bem espaçados no tempo ocorreram, que talvez seja curioso serem aqui relatados. O primeiro destes detalhes mais parece saído de um conto de fadas do que outra coisa, enquanto o segundo anunciava os tempos de uma Europa que iria ficar moribunda com a crise da dívida pública e com a aplicação das políticas austeritárias que ainda não terminaram: a crise do SNS é disso um claro exemplo, por muito que o Dr Pangloss da modernidade, o ministro Manuel Pizarro, nos anuncie que vivemos no menos mau dos mundos possíveis com o seu sistema em rede.

Detalhe a)

Dois ou três dia depois dessa oral, os pais de duas raparigas que terão estado na sala de exames e que se conheciam ou eram de famílias amigas, encontraram-se ao balcão de uma dependência do banco Totta junto à cervejaria Portugália, no cruzamento da Almirante Reis com a Pascoal de Melo. Falam das filhas, dos seus exames e…depois referem-se a um exame estranho de que lhe falaram ambas as filhas. Dizem que gostavam de ajudar o rapaz do tal exame, mas ninguém sabia quem era. O caixa do banco, o Vítor Coelho Martins ouviu, pediu desculpa por se meter na conversa e disse-lhes: eu conheço o rapaz a que se estão a referir. É da minha terra, Fratel, é filho de um amigo meu, de nome Adriano Mota. Terão falado sobre o assunto e decidiram ajudar esse rapaz que eu era com 100 escudos mensais cada um deles. Estávamos em 1963-4 e 100 escudos era a pensão de velhice-reforma de um camponês. Esta ajuda era dada com a condição de ser anónima. Durante anos ia ao banco Totta levantar os 200 escudos. Depois, pedi que não me dessem mais.

 

Detalhe b)

Quase cinquenta anos depois, estava eu com a minha neta num parque infantil da cidade de Coimbra, um dos raros com qualidade e bem conservado. Estava frio e de repente houve uma queda brutal de temperatura. Foi o que senti. Comecei a ter muito frio e voltamos em velocidade para casa. Pedi a pessoa amiga que fosse à farmácia comprar medicamentos para o ataque de frio. Quando a pessoa foi à farmácia já eu estava com 40 graus de temperatura. O farmacêutico perguntou o que se passava e face à temperatura que lhe foi comunicada foi rápido: não lhe vendo nada. Ele que vá rapidamente ao Hospital. Isto passava-se por volta de 2010-2011.

Foi o que fiz. No Hospital levei pulseira amarela e esperei quatro horas pela consulta. Era um dia normal, não havia acidentes de especial, não chovia, parecia que não se passava nada para quem estava na sala de espera. Chegou a chamada para a consulta. Recebido por duas médicas. Medem-me o nível de oxigénio no sangue: estava baixo. Faz-se a história clínica e surge a palavra tuberculose. Tocou o sinal de alarme: fica cá internado para exames. Percebe-se o alarme: a tuberculose tinha voltado aos lares em Portugal e os médicos já tinham perdido o hábito de tratar este tipo de doença. Portanto, todos os cuidados eram poucos, terão pensado as duas médicas. Foi uma noite de horror e uma bateria de exames feitos. A calma das salas de espera tinha-se sumido. Em vez disso assisti à violência do trabalho de quem está nas urgências, sejam médicos ou enfermeiros. O pessoal parecia andar de patins. Fiquei com imenso respeito por todos aqueles que naquela maldita noite estavam de serviço nos HUC. No dia seguinte saí.

Não era nada de especial, o que houve foi apenas medo das duas médicas de que a tuberculose de há cinquenta anos tivesse reaparecido porque esta era de novo uma doença de que se voltava a falar nos Hospitais, mas não nos corredores de Bruxelas, onde só havia um discurso: a dívida tem de ser paga, tenha-se ou não se tenha condições para pagar. Foi assim que Passos Coelho colocou Portugal à venda, reduziu drasticamente os investimentos na saúde publica e levou a que centenas de profissionais de saúde abandonassem o país. Deviam sair da zona de conforto e esta era a palavra de ordem do governo Passos Coelho, ou melhor, em nome da dívida, os que ficavam deviam ser colocados na situação de desconforto. Não o esqueçamos.

Um professor do ISEG do meu tempo e meu amigo ao rever este texto sugeriu-me o seguinte comentário que aqui vos deixo e com o qual concordo plenamente:

“Pois é Júlio e não tivemos a sorte de nos cruzarmos com um grande escritor que compreendesse isso e o fixasse para a posteridade; nem os novos realistas que infelizmente nasceram pequeno-burgueses.”

 

O que acima descrevo constituía minha passagem à idade adulta, uma passagem que não se inscreve no texto de Marcel Gauchet. Foi feita fora da Escola. Tratou-se uma passagem que não desejo a ninguém, mas olhando bem, era uma passagem à idade adulta feita à custa do sofrimento, à Hegel, diríamos. Estávamos em plena longa noite escura do fascismo, e precariedade e sofrimento era o que o sistema produzia e injetava diariamente na maioria dos quase sem nada. Os outros, uma minoria, constituíam a base de onde saíam as elites, uma segunda minoria, constituída a partir da primeira minoria. Mas criavam-se elites, tanto à esquerda como à direita e, por confronto, olhe-se para a nossa classe política de agora. Que diferença! No tempo de fascismo e no plano político até à direita havia gente saída das universidades com grande classe como, por exemplo, Teixeira Pinto, Pinto Barbosa, Francisco Leite Pinto, Galvão Teles, Veiga Simão, Franco Nogueira, Adriano Moreira, Freitas do Amaral. Quanto à esquerda são tantos que é melhor não citar nenhum para não me sentir embaraçado na escolha. Mas agora, líderes como os de outrora, tanto à esquerda como à direita, podem-se procurar que dificilmente se encontram. Os múltiplos escândalos, de um lado e do outro são um bom exemplo de que o país precisa do que as Universidades não formam: elites com forte capacidade técnica e com elevado sentido de cidadania.

Mas o país precisava bem mais do que elites, precisava de elites abertas, em vez de elites fechadas como no tempo do fascismo, e não só, precisa que o elevador social esteja a funcionar e corretamente, reconheça-se. Esta é uma necessidade pela qual nunca vi essa Universidade de outrora bater-se, que eu saiba apenas vi um transviado do sistema e por dentro do sistema, Inocêncio Galvão Telles.

 

Marcel Gauchet indica a via democrática para a reorganização coletiva do ensino, uma reorganização obrigatoriamente a ser feita de alto a baixo, que permita à maioria de todos nós obter as “ferramentas” intelectuais que ajudem a família e, sobretudo, cada jovem a encontrar conscientemente a sua resposta a essa grande questão individual: como é que se faz de uma criança um jovem quase adulto, de um jovem quase adulto um adulto no sentido estrito do termo, tanto quanto a criação das capacidades de abstração são uma chave dessa dupla transformação, dessa passagem de uma idade a outra. Nesse trajeto individual, sempre complexo e muitas vezes doloroso, os jovens em franco crescimento intelectual ou, ao contrário na falta dele, precisarão de estruturas sociais de apoio. Não podemos esquecer que são jovens, muitas vezes distantes das famílias ou pior ainda longe de famílias quase sem possibilidades de os apoiar. Aqui relembro duas pequenas histórias:

a) Em tempos fui falar com o António Luzio Vaz dos Serviços Sociais da Universidade de Coimbra, um homem que terá ficado na memória de muitos estudantes que viveram situações de precariedade, sobre que tipo de ajuda é que os estudantes em dificuldade lhe pediam, A resposta era mais ou menos a que esperava: ajuda para questões alimentares, especialmente para alunos oriundos de África, e para problemas de saúde e outros, com uma particularidade bem especial: havia muitos desequilíbrios psicológicos (depressões) entre estudantes das ilhas e do sul do país, facto que ele atribuía a ausência prolongada de visitas à família. Algo que parece irrelevante, mas que é, curiosamente, cada vez mais relevante.

 

b) Numa das sessões da Iniciativa Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios realizada durante anos na FEUC, convidámos o Secretário Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Falámos muito sobre o desenraizamento dos estudantes de origem africana e sobre a necessidade de recuperar linhas de apoio a estes mesmos estudantes outrora existentes e que poderiam bem ser melhoradas contra o vazio a que se assiste agora. Porque não criar um centro de apoio a estudantes africanos, que lhes funcionasse como uma espécie de lar africano que incluísse vários tipos de serviços de ajuda, entre os quais serviços médico-sociais. Um exemplo emblemático: tive um estudante originário da Guiné-Bissau cujo registo académico me chamou a atenção porque tinha sempre boas notas no segundo semestre e notas quase sempre fracas no primeiro semestre. Perguntei-lhe sobre que explicação dava para aquele facto: a sua resposta deixou-me pregado ao chão quando meio envergonhado me respondeu: sabe, de inverno faz muito frio, estudo na cama!

 

Isto são histórias do passado, é certo, mas que se ligam por inteiro ao texto da conferência proferida pelo professor Sampaio da Nóvoa: Não podemos nem devemos tratar os estudantes com algodão em rama, mas não podemos ignorar que não são adultos em plenitude e que ao longo do seu trajeto escolar precisam, por isso mesmo, de múltiplos apoios por direito e não por caridade. A contrapartida, como é evidente, serão os resultados escolares, cuidadosamente analisados em caso de não corresponderem ao esperado, pois há sempre acidentes de percurso, uns grandes, outros pequenos que devem ser levados em conta.

Preparar coletivamente essa reorganização é dever de todos nós e o seu texto, caro Sampaio da Nóvoa, insere-se nesta mesma via. Bem haja.

Não defendemos a Universidade de outrora, nem nas suas estruturas, nem nas suas práticas cívicas, a democracia interna não existia, nem no seu elitismo, nem no seu objetivo principal, produzir elites. E só neste contexto é que poderiam ser consideradas torres de marfim. Quanto à qualidade do ensino prestado, ensino no sentido restrito, não as consideraria torres de marfim e, reconheça-se, que com exceção das ciências sociais, fascismo é fascismo, ensinava-se a sério e/ou, pelo menos, exigia-se a sério. As elites produzidas neste contexto, sejam à direita ou à esquerda, mostram isso mesmo. E os alunos saíam das Universidades a serem capazes de aprender a fazer, ao contrário de hoje, em que a maioria deles pensa que é rei, que no melhor dos casos não quer aprender, mas sim apenas conhecer, e a quem as estruturas universitárias se estão lamentavelmente a conformar com esta nova realidade.

Mas também não defendemos a Universidade de agora, em muitos aspetos pior que a de outrora. Na Universidade de hoje, vivemos em termos de lógicas do aprender, de saber, um período coletivamente muito difícil em que é cada vez mais tardia a passagem da infância à adolescência, da adolescência à idade adulta e de tal modo que não estaremos muito longe da verdade se caracterizarmos as Universidades de hoje como imensos parques de diversão/distração de adolescentes em idade quase adulta, onde permanecem nessa qualidade 3 anos, com direitos, muitos direitos, e responsabilidades poucas, muito poucas [3]. Evidentemente há exceções, mas estas são cada vez menos e confirmam assim o que penso ser a regra que acabámos de descrever. Tudo isto se passa no quadro de uma situação paradoxal criada pela Administração, talvez devido à lógica das contas certas de Centeno, Costa e Medina: ao mesmo tempo que as estruturas do Ensino garantem à nossa juventude o direito à diversão/distração, não garante condições económicas decentes a todos aqueles originários de meios económica e socialmente menos favorecidos que querem chegar à Universidade não para nela “estagiarem” mas para nela se fazerem técnicos e cidadãos de primeira de que tanto precisa a sociedade portuguesa, e aqueles são uma grande parte da tal minoria a que me refiro acima.

Sobre estas questões vale a pena reproduzir aqui um outro texto de Marcel Gauchet, recolhidas de uma entrevista dada em conjunto com Philippe Meirieu:

P.Meirieu. Uma vez que alguns pais já não educam os seus filhos tendo em conta o coletivo, mas sim a sua própria realização pessoal, individual, devemos nós lamentar que a cultura tenha deixado de ser um valor comum na Europa e o que fazer para que a cultura recupere a sua centralidade?

M.Gauchet. O conhecimento e a cultura eram vistos como instrumentos para alcançar a humanidade plena, num contínuo que vai da simples civilidade à compreensão do mundo em que vivemos. Era isto que alimentava o ideal do cidadão democrático. Perderam esse estatuto. Foram reduzidos a um papel utilitário (ou de distração).

A ideia de humanidade dissociou-se da ideia de cultura. Não precisamos dela para existir. Estamos a ser dominados por uma onda de privatização que nos diz para vivermos para nós próprios e, sobretudo, para não perdermos o nosso tempo a tentar compreender o que nos rodeia.

Por detrás do slogan aparentemente libertário “faz o que quiseres”, esconde-se uma premissa niilista: não vale a pena saber, não há forma de dominar o mundo. Contenta-te com o que é necessário para te manter acima da linha de água e, quanto ao resto, cuida, mas é de ti!

A escola é apanhada neste grande movimento de desculturação e desintelectualização das nossas sociedades, o que não facilita a sua tarefa. Os alunos limitam-se a fazer-lhe eco com a sua objeção: para quê? Pois é este o grande paradoxo das nossas sociedades, que se pretendem “sociedades do conhecimento”: perderam de vista a verdadeira função do conhecimento.

É por isso que temos a impressão de uma sociedade sem piloto. Já não há cabeça para tentar compreender o que se passa: reagimos, gerimos, adaptamo-nos. O que precisamos é de redescobrir o sentido do conhecimento e da cultura.”

 

P.Meirieu. Por conseguinte, reinventar a escola significa também reexaminar de forma crítica os nossos instrumentos de ensino.

M.Gauchet. É essencial definir o espaço e o tempo, estruturar os grupos, estabelecer rituais capazes de sustentar a atenção e de suscitar a intenção de aprender.

É preciso então, estar contra o saber imediato e utilitário, contra todos os excessos da “pedagogia bancária”, (Paulo Freire) recuperar o prazer do acesso ao conhecimento. A missão da escola não deve reduzir-se à aquisição de uma soma de competências, por mais necessárias que sejam, mas deve ser a do acesso ao pensamento. E é através da mediação de obras artísticas, científicas ou tecnológicas que o pensamento se estrutura e descobre uma fruição que não é de domínio, mas de partilha.

(…) Os filhos da modernidade querem saber. Até querem saber tudo. Mas não querem realmente aprender. Por isso, o sistema escolar serve os alunos que querem saber, mas já não querem realmente aprender. Alunos que não fazem nenhuma ideia de que a aprendizagem pode ser uma fonte de prazer.

Alunos que se concentram na eficácia imediata dos conhecimentos instrumentais adquiridos ao mais baixo custo e que nunca experimentaram a fabulosa satisfação de uma investigação exigente. É por isso que a obsessão das competências é um erro. É uma forma de “produtivismo escolar” que reduz a transmissão a uma transação e esquece que toda a aprendizagem é uma história…

 

P.Meirieu. Então, reinventar a escola significa também reexaminar criticamente as nossas ferramentas educativas?

M.Gauchet. O que é que sabemos sobre o significado da aprendizagem? Quase nada, de facto: passamos sem problemas do rato de laboratório e da psicologia cognitiva para as competências que interessam às empresas. Mas o essencial está entre os dois, no ato de aprender, distinto do saber, a que continuamos a referir-nos erradamente. Para a criança, aprender significa, em primeiro lugar, entrar no mundo dos signos gráficos através da leitura e da escrita e, assim, aceder aos recursos da linguagem revelados pela sua objetivação escrita.

É um processo infinitamente difícil e que nunca está terminado. Porque ler não é apenas decifrar, é também compreender. Envolve uma série de operações complexas de análise, contextualização e reconstituição sobre as quais não sabemos quase nada. Como é que conseguimos compreender o sentido de um texto?

Empiricamente, podemos constatar que algumas pessoas o conseguem fazer sem esforço, enquanto outras permanecem num impasse inexplicável. Em todas estas questões, estamos perdidos: agarramo-nos a uma mistura de rotinas mais ou menos obsoletas e de invenções pedagógicas mais ou menos cegas.”

 

P.Meirieu. Tal como nenhuma profissão pode ser reduzida à soma das competências necessárias para a exercer, também nenhum conhecimento pode ser reduzido à soma das competências necessárias para o dominar. As competências gráficas, escriturais, ortográficas e gramaticais são suficientes para entrar numa cultura letrada? Penso que não, porque entrar na palavra escrita significa ser capaz de transformar os constrangimentos da língua em recursos de pensamento.

Esta interação entre constrangimentos e recursos é uma tarefa pedagógica que não pode ser reduzida à acumulação de saberes ou à prática de exercícios mecânicos. Exige a capacidade de inventar situações geradoras de sentido que ligam estreitamente a descoberta e a formalização. No entanto, hoje em dia, estamos a dar grandes passos em frente com cadernos de competências que justapõem competências tão diferentes como “saber ser criativo” e “saber anexar um ficheiro a um e-mail”.

Numa altura em que passamos do conhecimento às competências, quais são as alavancas políticas que nos permitiriam reinventar a escola?

M.Gauchet. A escola precisa de se reinventar, mas não o pode fazer sozinha. Não se trata de um domínio de especialização como outro qualquer que possa ser deixado aos especialistas para encontrarem as soluções. O problema da educação não pode ser resolvido nestas condições. É um assunto da maior preocupação para a vida pública, que envolve o futuro das nossas sociedades, e só pode ser tratado como uma responsabilidade coletiva que nos diz respeito a todos, e não apenas aos pais das crianças em idade escolar.

Um dos desenvolvimentos atuais mais preocupantes é o facto de uma visão puramente económica do problema, desenvolvida a nível internacional, estar agora no lugar do condutor.

É o que resume o eco dado aos resultados dos inquéritos do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), pilotados pela OCDE. Tudo o que o Ministério da Educação faz agora é transmitir ideias altamente discutíveis sobre o tipo de desempenho que os sistemas educativos devem ter como objetivo a alcançar.

Muito discutíveis, devo acrescentar, mesmo do ponto de vista do emprego e da eficiência económica. Quem pode levar a sério a caderneta de competências introduzida no colégio com o objetivo de avaliar melhor o que os alunos aprenderam?

No trabalho, como no resto da vida, é com o pensamento que se pode progredir, a todos os níveis. O papel da escola é, muito simplesmente, ensinar as pessoas a pensar, a introduzir-lhes a alegria de dominar as coisas que fazem, sejam elas quais forem. Esta é, de longe, a abordagem mais eficaz. A ilusão do momento é acreditar que obteremos melhores resultados práticos se abandonarmos esta dimensão humanista”. Fim de citação

 

Em suma, vivemos numa sociedade sem piloto educativo, numa Universidade sem Reitor, com este a não ser expressão da Universidade junto do governo e perante a sociedade, vivemos numa Universidade onde ensinar não pode ser a preocupação maior do docente, vivemos numa Universidade onde o professor é substituído pelo leitor (de powerpoints) e os estudantes se assumem como portadores de direitos e quase sem deveres. Vivemos numa sociedade assim caracterizada por Philippe Meirieu:

“Pela primeira vez, vivemos numa sociedade em que a grande maioria das crianças nascidas são desejadas. Isto representa uma inversão radical: no passado, a família “fazia as crianças”; atualmente, é a criança que faz a família. Ao satisfazerem o nosso desejo, as crianças mudaram de estatuto e tornaram-se nossos senhores: não lhes podemos recusar nada, sob pena de nos tornarmos “maus pais”. (ver original aqui)

 

B) Sociabilidade

Para terminar esta nota deixe-me falar do segundo ponto e que emerge do que acabo de contar, sobre a sociabilidade.

A via assinalada por Marcel Gauchet não tem nada a ver com o que assistimos hoje,

Mesmo aqui situo-me perante um exemplo curto. Em 85 estava eu em Paris numa casa de um emigrante e a dona da casa pergunta-me se conheço o fulano x, cujo nome já não me lembro. Disse-lhe que não e pergunto porquê. Sabes, uma amiga minha tem lá (na Faculdade de Economia) o filho… Era para saber se o podia ajudar, é isso? É, respondeu ela. Bom, diz à tua amiga que diga ao filho para ir falar comigo ao meu gabinete. E assim foi. O miúdo, estava no terceiro ano, creio que o curso era de 5 anos ainda, e não conhecia ninguém. Apresentava um sinal de riqueza que era puro efeito de demonstração: andava de Mercedes para ir para a Faculdade. Talvez o sentido de algum dinheiro lhe permitisse arranjar alguma amiga, terá ele pensado!

Um rapaz do Soito em frente a um professor que mal conhecia. Senti que havia ali alguma semelhança com o menino marçano que eu fui. Tão solitário em Coimbra quanto eu o era em Lisboa. O primeiro passo seria tratar da sua integração escolar, depois se veria. A grande diferença para além da base económica era que, felizmente, os tempos eram já outros, eram já tempos de Democracia.

O que lhe disse foi: a cadeira de Economia Internacional funciona também em regime de avaliação contínua. Vou integrá-lo num grupo de trabalho e fica sujeito aos mecanismos próprios deste tipo de avaliação. Vou integrá-lo num grupo de 2 estudantes e tem-se de se habituar a trabalhar em conjunto. Assim se fez, o miúdo passou à minha disciplina, passou a tudo nesse ano e nunca mais teve problemas.

A sociabilidade atravessa todo o seu texto, tal como a sua ausência e depois a sua presença, atravessaram a vida académica deste estudante do Soito. Mas esta sociabilidade é hoje tão difícil entre alunos como o é entre docentes: são concorrentes, não nos esqueçamos.

O seu texto é tão, tão rico, que só posso dizer: subscrevo com muita honra tudo o que escreveu sobre o tema.

Bom, gostaria muito de publicar o seu texto em «A Viagem dos Argonautas», como texto ou como notas de leitura para o tema Crise da Universidade no dia 28 de dezembro, em conjunto com um texto meu de homenagem ao Joaquim Feio, que faria anos nesse dia se estivesse entre nós, e com um texto de Ben Fine com um título sugestivo: Um passo em frente, n passos atrás para caracterizar o ensino de economia na atualidade. Estes dois textos estão já prontos para serem publicados. Mando-lhe o texto de Ben Fine, mas só para dar uma olhadela pois, convenhamos, é um texto duro mesmo para mim, que sou formado em economia. Se calhar o problema é meu, que também terei sido malformado, segundo os cânones de agora, uma vez que não me doutorei!


Notas

[2] Dizia o Reitor da Universidade de Coimbra, Amílcar Falcão em Outubro de 2022: “Amílcar Falcão antecipou uma possível diminuição da quantidade e qualidade de alunos a ingressarem na Universidade de Coimbra. Em causa, está o aumento de vagas em mestrados de universidades “mais atrativas”.

“Aqui na Faculdade de Ciências e Tecnologias estamos a viver um momento muito complicado”: foi assim que o reitor da Universidade de Coimbra (UC) alertou para o “problema” da extinção dos mestrados integrados nas áreas das engenharias e das ciências, durante a cerimónia de celebração dos 250 anos da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra (FCTUC).

Desde o ano letivo 2021/2022, os mestrados integrados, que pressupõem uma formação conjunta de licenciatura com mestrado, passaram a ser permitidos apenas nas áreas de arquitetura, ciências farmacêuticas e medicinas, excluindo assim quase todos os cursos pertencentes à Faculdade de Ciências e Tecnologias. Segundo Amílcar Falcão, está à vista uma escassez de estudantes em instituições de ensino superior como a Universidade de Coimbra”. Fim de citação (original aqui)

[3] Percebe-se, pois, que para muitos jovens de hoje, partidos políticos como o Chega e a Iniciativa Liberal apareçam como forças de renovação suscetíveis de entusiasmar os jovens e formar ativistas e executivos para difundir a sua ideologia a todos os estratos da sociedade e os seus discursos enraízam-se nos bairros mais populares do país, nos sectores dos trabalhadores informais, dos trabalhadores e trabalhadoras independentes e, sobretudo, nos estudantes de Universidades públicas ou privadas. Uma atratividade que é tanto mais intensa e eficiente quanto mais frágil é a política de apoio da sociedade, com os seus direitos e os seus deveres, a essa juventude e quanto mais degradado estiver o ensino. Um paradoxo: a juventude é assim atraída para os políticos defensores da fragmentação social, em nome da autonomia do indivíduo, quando o caminho para a solução dos seus graves problemas passa antes por uma maior coesão social e por um mais profundo envolvimento do Estado na vida económica e social, envolvimento esse que a esquerda pertencente ao arco do poder se tem recusado a criar.

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